Antes das eleições havia dois programas em confronto. Sei que é complicado chamar "programa" às propostas do PSD, mas todos sabem qual era a prioridade de Manuela Ferreira Leite: o combate à dívida. Alegava que estamos sobreendividados, e queria a reavaliação das obras públicas. Perante uma situação destas, sabemos o que faria: basta consultar o PEC III.
Os portugueses preferiram o programa do PS. Sócrates orgulhava-se da sensibilidade social em criar um apoio extraordinário para os desempregados; afirmava que o investimento não deveria parar, que essa seria a saída para a crise; alegava que perante uma recessão como aquele que o país tinha atravessado não haveria pior altura para apertar o cinto.
Depois, alega que o mundo mudou em 15 dias, e quer cumprir o programa alheio. Diz hoje sobre o subsídio de desemprego aquilo que Manuela Ferreira Leite dizia antes das eleições. O problema disto é que não parece senão o reconhecimento cabal de que afinal ela e o PSD tinham toda a razão. Ela estava muito à frente, antecipando os problemas que haveriam de "mudar o mundo" poucos meses depois. Com a sua vitória, parece, os mercados teriam acalmado muito mais cedo, sabendo que o país tinha eleito alguém que tinha a redução da dívida como a sua prioridade principal.
Sócrates poderia ter feito algo diferente. Diferenciação do IMI para imóveis de luxo, impostos sobre grandes fortunas, 50% de IRS para um novo escalão a criar, fim do paraíso fiscal na Madeira, nova taxa de IVA sobre bens de luxo, e por aí fora. Com uma maioria de esquerda no parlamento, e uma crise que o governo alega ser exógena, não haveria melhor oportunidade para passar estas medidas. Não teria Passos Coelho de braço dado, mas poderia dizer «discordo» quando este último, em nome do PSD, dissesse «eu bem te avisei».
14 comentários :
João,
diz-me um governo europeu que não tenha radicalmente alterado o seu programa o seu programa nos últimos meses.
As circunstâncias mudaram subitamente, e sem reconhecer isso não me faz muito sentido a análise que fazes.
Não está em questão terem mudado o programa. O que se coloca em causa é um governo supostamente socialista aproveitar a protecção deste guarda-chuva (a crise) para reduzir o estado social, em vez de aproveitar para aumentar a justiça com as medidas que o J Vasco enumerou.
Luciano
Luciano,
concordo, podemos debater se não havia outros métodos. E o João faz isso.
A minha crítica dirigia-se ao início, onde se dá a entender que houve uma mudança de atitude contrária ao programa. Dirigia-se quando ele diz que úm PS mudou a visão da saída para a crise.
A crise hoje não é a mesma que há vários meses, quando o programa foi feito.
João,
uma coisa que me esqueci e que já disse ao Ricardo. O governo não alterou a sua posição sobre o subsídio de desemprego, nem vai alterar o subsídio de desemprego. Apenas antecipou o fim do período extraordinário (que desde o início era dado como curto e limitado) onde as regras foram alteradas.
JV, acho que o miguel tem razão e a tua análise não colhe completamente.
o estado por si só não está sobre-endividado, e as última alterações foram força de condições exteriores. aliás, condições exteriores que afectaram todos os países da zona euro, com mais ou menos défice ou dívida. ter avançado com um PEC2 ou 3 em setembro não teria alterado significativamente o ataque especulativo ao euro, nem as condições que daí resultaram sobre todos os membros da moeda única.
até porque, o problema não é tanto a dívida pública, mas mais a dívida privada --- sobre o qual o PSD nunca se pronunciou. e porque as "soluções" do PEC são impostas pela comissão que, convém recordar, é um governo de direita. isto causa, naturalmente, a aberração de um governo de direita europeu obrigar um governo de esquerda nacional a tomar medidas que não estão nada em ressonância com o seu programa eleitoral.
em qualquer caso, concordo com o último parágrafo: o PS podia ter tentado ser muito mais ambicioso nos seus objectivos (agradar à comissão pela via esquerda). não sei se teria resultado: teria que manter um acordo com PCP e Bloco, que me parece negociavelmente impossível. mas, bom, pelo menos devia ter tentado.
Miguel,
É verdade que o cenário pode mudar, mais ainda dentro duma perspectiva europeia. O que eu acho é que se o PS tivesse tomado medidas mais justas poderia ter-se mantido mais perto de algumas das direcções propostas no programa eleitoral, como o apoio social e o investimento público.
Quanto ao retiro do apoio extraordinário ao subsídio de desemprego, e às linhas de crédito, tem razão no que diz. Mas continua a ser uma medida questionável, não? Estas medidas extraordinárias foram introduzidas para combate à crise, numa altura em que o desemprego subiu rapidamente. Agora o desemprego continua a aumentar, ainda que mais devagar, e retiram-se estes apoios para combater a crise?
Luciano
Reparem,
eu não defendi as medidas em causa! Eu teria aumentado a receita e reduzido a despesa de outras formas.
Quis apenas fazer ver que o enquadramento não está correcto. Outra coisa ainda, o PEC não foi aprovado por um PS com maioria absoluta.. foi negociado com um PSD com um poder politico-mediático acrescido.
Miguel e Ricardo:
Se o governo do PS tem razão hoje ao agir como age, então o PSD foi profético no programa com que se apresentou a eleições.
Percebeu os riscos que existiam, e antecipou a crise que haveria de surgir. Estipulou o tipo de medidas e atitudes com que tal crise deveria ser enfrentada: cortes no investimento público, recusa de apoios sociais de emergência, etc... Se o governo do PS tem razão hoje, então eu deveria ter votado no PSD. Por ter agido desta forma antecipadamente, até evitaria que o pânico assumisse a dimensão que assumiu.
Mas não é nisso que acredito. Eu acredito que a crise é mais exógena que endógena. Acredito que as propostas do PS antes das eleições eram melhores que as do PSD.
Mas isso implica discordar daquilo que o governo do PS está a fazer agora. Acabar com o apoio extraordinário ao desemprego.
Extraordinário, sim, mas cuja insistência em defender lhe valeu muitos votos.
Aumentar a taxa mínima do IVA em vez de criar outra para bens de luxo. Aumentar o IRS em todos os escalões em vez de mudar as leis para que a taxa efectiva que a banca paga esteja mais próximo daquela que é paga nos outros sectores da economia. Em vez de atacar o paraíso fiscal na madeira, em vez de externalizar serviços que podem ser conseguidos com menos custo pelos funcionários do estado (no sector da saúde então...), etc...
Ou bem que há propostas de esquerda para reagir a este problema, ou bem que a nossa direita estava «muito à frente».
Ganhar as eleições com um programa, que depois é renegado para dar lugar ao programa do PSD, é que me parece o reconhecimento cabal de miopia político-económica.
João,
comecei por dizer que todos os governos europeus mudaram de diapasão em pouquíssimas semanas.
Não faz sentido comparar o que deve ser feito na situação de há quase um ano atrás - em que havia graves problemas de procura e de liquidez - com a de hoje - dificuldade em obter financiamento para o pagamento das dívidas pública e privada.
O PSD estava "à frente" (com acento grave) sim na defesa do controlo da dívida pública, mas não por ter antecipado os problemas actuais. Defendia esse controlo, porque faz parte do seu programa habitual em qualquer situação económica.
Miguel:
O acento grave foi provavlmente por causa do shift, que com a pressa não devo ter carregado com força suficiente.
Quanto ao conteúdo, discordo que o PSD seja sempre a favor desse controlo. Na verdade antes desta crise variação média anual do défice em governos PS e PSD era favorável ao PS. E não é apenas porque as acções contrariem as propostas: o PSD já chegou a propor "choques fiscais" que teriam feito danos bem graves nas nossas finanças se tivessem sido levados a cabo exactamente como propunham.
Mas nas últimas eleições alegavam que a razão para controlar as despesas era o excessivo endividamento. Era algo conjuntural, e precisamente aquilo que alegadamente permitiu o «ataque especulativo».
É verdade que na altura havia pouca procura, mas esse problema vai voltar a acontecer com estas políticas. Aumentar o IVA e o IRC não vai fazer maravilhas pela procura, e a crise não acabou.
A verdade é que pode existir austeridade à esquerda. Pode existir uma política orçamental responsável à esquerda. E agora há condições políticas como nunca houve. Mas Sócrates reage como se o PSD tivesse razão desde início.
Quantos votos terá ganho Sócrates a Louçã por ter demonizado a diminuição dos benefícios fiscais que depois acabou por fazer? Mas fez bem, visto que Louçã tinha razão nessas propostas.
O pior é que o mesmo aconteceu com Manuela Ferreira Leite em relação a quase tudo o que foi debatido. Ou Sócrates não tem razão hoje, ou não tinha razão ontem.
As condições mudaram, é certo. Mas reagir a essa mudança aceitando as propostas de quem as fazia alegando antecipar tal mudança, é dar-lhe razão em toda a linha.
É esse o discurso que o PSD tem feito, mas é a atitude de José Sócrates que lhe dá toda a eloquência.
João, para terminarmos.
1. só te estava a chamar a atenção do erro do acento, obviamente que foi distracção!
2. O facto do PSD ter um mau passado em controlar a dívida, não implica que a dívida não faça parte do seu programa ideológico (e eu apenas afirmei a segunda). O programa do PS também é muito focado no emprego, mas...
Mesmo no choque fiscal, o PSD argumentou com o aumento das receitas devido ao aumento do produto para defender que a dívida baixaria.
3. É um princípio keynesiano básico, que o Estado deve parar uma espiral de quebra de procura, gastando mais dinheiro. Essa situação já não existe. É uma situação diferente da queda de procura que virá do IRC e IRS (aliás.. qualquer medida de aumento de receita - seja de esquerda ou direita - teria um efeito de quebra da procura).
4. De resto concordo contigo (especialmente nos subsídios fiscais para a classe media/alta aos quais sou completamete alérgico), não são sequer pontos que tenha levantado.
Miguel:
1. ok :)
2. «o PSD argumentou com o aumento das receitas devido ao aumento do produto para defender que a dívida baixaria»
Sei que em eleições fizeram essa alegação, mas faço-lhes a justiça de supor que estariam conscientes da mentira que estavam a dizer...
Por alguma razão este choque fiscal não fazia parte do último programa. E o próprio PSD alegava que as propostas austeras eram devidas a uma situação mais conjuntural que estrutural (era daí que alegavam não renunciar em definitivo ao TGV, considerando o adiamento como uma possibilidade).
3. Discordo. Diferentes taxas têm diferentes influências na procura agregada, e impactos diferentes na poupança ou consumo, mesmo que o seu saldo orçamental seja igual.
De forma análoga, diferentes cortes na despesa têm diferentes saldos.
Se o estado corta em bens importados, (não renova uma frota de carros maioritariamente franceses e alemães, por exemplo) isso terá um impacto na procura agregada bem menor que a não admissão de enfermeiros num hospital.
Não estou necessariamente contra a política de não admissões, isto é apenas para dar um exemplo.
4. ok :)
JV, como disse em cima, não penso que seja simplesmente o PS a "dar razão" ao PSD mas antes o PS a fazer o que a comissão dita --- uma comissão de direita com o apoio de um PE muito maioritáriamente de direita. naturalmente que não acho que tenha agora razão!, bem pelo contrário, as propostas eleitorais de setembro faziam muito mais sentido que o actual rumo e penso que a maioria dos deputados socialistas devem mesmo pensar o mesmo...
«e forma análoga, diferentes cortes na despesa têm diferentes saldos.»
queria dizer «diferentes impactos na procura agregada».
Ricardo Schippa:
Concordo parcialmente. E na medida em que concordo, até "engoli" parte significativa do PEC II, onde apesar de tudo ainda constavam medidas de esquerda como a criação de um novo escalão para o IRS, ou um imposto sobre as mais-valias na bolsa, etc...
Mesmo no que diz respeito às privatizações, nunca cheguei a uma conclusão definitva por falta de informação (o PEC II diz qual a receita pretendida e quais as empresas que poderia alienar parcialmente, mas nunca esclarece quanto ao certo se pretende alienar, pelo que é impossível estimar se é uma boa proposta ou não - por absurdo, imaginemos que vendiam 1% de cada uma das empresas listadas e obtinham aquela receita, seria uma óptima medida! No outro extremo, da alienação total, perder-se-iam mais dividendos do que aquilo que se pouparia em juros, agravando a situação fiscal).
Mas o PEC III foi completamente desequilibrado, provavelmente para obter o mefistofélico apoio de Passos Coelho, que dará a sua facada na altura certa, enquanto hoje vai podendo dizer "eu bem avisei".
Talvez tenha sido o medo da moção de censura que agravaria tudo, não sei. O que é facto é que hoje quando os partidos à esquerda dizem que não há diferença entre PS e PSD ao nível da política económica não estão a fazer a demagogia do costume. É mesmo verdade que Sócrates está a govenar com o programa de MFL.
Ok, mais o TGV Lisboa-Madrid. Que, suspeito, ela também acabaria por fazer. É essa a grande diferença.
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