quarta-feira, 13 de maio de 2020

Porque é que o programa do PAN está à esquerda do programa do PS?


Por vezes tenho referido o PAN como sendo um partido de esquerda. Tanto qualquer membro do PAN como o Ricardo Alves, como muitas outras pessoas, me têm dito que não, que o PAN não é um partido de esquerda. O PAN - dirão - não se revê nessa dicotomia, e portanto não pode ser considerado um partido de esquerda.

Existe alguma razão nessa alegação. Mas vale a pena esmiuçar um pouco essa questão, porque isso toca em vários pontos interessantes.


1) Não é por alguém não se rever na dicotomia esquerda-direita que não tem um posicionamento ideológico nesse eixo. 

Dizia-se há alguns anos que quando alguém dizia que não era de esquerda nem de direita, é porque era de direita.
Mas sempre existiram excepções a essa regra. Por exemplo, muitos anarco-sindicalistas (extrema-esquerda) recusavam o termo "esquerda" por evocar o parlamentarismo da democracia representativa.
Muitas vezes as pessoas não se identificam com o eixo esquerda-direita não porque não dêem importância às questões a que esse eixo corresponde, ou não tenham convicções que permitam facilmente localizá-las nesse eixo, mas sim porque não são suficientemente politizadas para conhecerem o significado desses termos, ou porque têm tanta aversão ao conflito que não querem assumir que as suas posições as colocam em confronto com outras com uma opinião diferente.


2) Um partido tende a ser de "centro" nas questões que não considera prioritárias

Suponhamos um partido que foi criado com o objectivo específico de pôr fim ao acordo ortográfico. Vamos supor que essa "causa" é tão importante para a generalidade dos seus membros, que eles subordinam a esmagadora maioria das outras questões a esta em específico.
Se essa causa for, em grande medida, independente das questões associadas à "esquerda" e "direita", o partido será composto por uma amostra representativa da sociedade no que concerne ao eixo esquerda-direita. Vai incluir uma pequena proporção de gente de extrema-esquerda e extrema-direita, mais gente de centro-esquerda e centro-direita e uma fatia razoável de gente de centro.
O "centro de gravidade" no eixo esquerda-direita será o centro.

O partido em causa tenderá, numa fase inicial, a ser extremamente plural em tudo o que diz respeito às questões que não estejam directamente ligadas à causa essencial.
No exemplo em causa, se o partido não conseguir forjar uma aliança entre todos aqueles que acreditam na necessidade imperiosa de acabar com o acordo ortográfico, não importa a sua perspectiva ideológica no campo esquerda-direita, o partido não terá força para vencer os enormes obstáculos que tem pela frente.
Quando o partido precisar de tomar posições em domínios fora da causa essencial, a posição tenderá a aproximar-se do "centro de gravidade" que está no centro. Os elementos com perspectivas ideológicas mais distantes priorizam o suficiente a causa essencial para tolerar essas diferenças em nome do compromisso e da união.


3) As propostas do PAN são de centro

O PAN enquadra-se em grande medida na situação descrita no ponto 2). O animalismo e o ecologismo são questões tão cruciais para os seus membros, que - para conseguirem ter um movimento capaz de ter força nestas áreas - eles estão dispostos a aceitar um enorme pluralismo nas restantes questões.
Assim, enquanto os militantes e simpatizantes do PAN reflectem o pluralismo ideológico da sociedade portuguesa, cobrindo quase todo o espectro esquerda-direita, as propostas do PAN são propostas de centro.


4) As propostas e a governação do PS são de centro-direita

O PS é um partido com militantes de centro-esquerda. Estes militantes, bem como grande parte da sociedade portuguesa, são capazes de assegurar que o PS tem feito uma governação de centro-esquerda.
Infelizmente, esta afirmação não resiste a um escrutínio adequado. Nos últimos 40 anos, nos países ocidentais, suposta alternância centro-esquerda / centro-direita não tem mantido o grau de desigualdades num patamar relativamente constante - como aconteceria se aquilo a que se chama "centro" o fosse efectivamente.
Ao invés, a proeminência de políticas neoliberais foi tão forte que o próprio FMI se interroga se elas não estão já a prejudicar o próprio crescimento económico (uma bandeira da direita). Ao invés, as desigualdades têm aumentado de forma galopante. As desigualdades estão muito acima daquilo que a população em geral imagina ser o caso, e a quase totalidade da população acredita que as desigualdades de rendimento e património que existem são excessivas. Se apesar disso elas se têm agravado, temos de concluir que no ocidente a alternância não tem sido entre uma governação de centro-esquerda e centro-direita, mas sim entre uma governação de centro-direita e de direita.
Portugal que, apesar de desigualdades de rendimento muito superiores, não destoa pelas suas políticas dos restantes países da UE (no que concerne a peso do estado na economia, quantidade de funcionários públicos, papel do estado na economia, etc.) está nas mesmas circunstâncias.
De facto, poderemos verificar que a "Geringonça" foi, no seu global, uma governação de centro no campo económico. Não existiram alterações relevantes na legislação laboral, na progressividade fiscal, no peso do estado na economia, etc. Mas se a governação da Geringonça foi de centro, e três dos parceiros puxaram as políticas para a esquerda, qual era a posição original do PS?


5) O PAN está à esquerda do PS?

Depende.
O PS afirma-se de esquerda e o PAN afirma-se como não sendo de esquerda, mas isso é uma observação bastante superficial. A simbologia e a retórica valem o que valem, e remete para o ponto 1 deste texto: a auto-identificação de alguém no espectro esquerda-direita não tem de corresponder à sua posição efectiva.
O PS está à esquerda do PAN no sentido em que os militantes do PS são, em geral, de centro-esquerda. O militantes do PAN, por outro lado, são uma amostra da sociedade portuguesa, com todo o seu pluralismo.
Mas eu argumentaria que o PS está à direita do PAN naquilo que mais importa (pelo menos que diz respeito à avaliação mais relevante para um eleitor): nas suas propostas, e no seu impacto político efectivo.
Um voto no PAN conduz a políticas mais à esquerda do que um voto no PS.
Por vezes continuarei a chamar ao PAN "um partido de esquerda", mas a razão de o fazer é esta: é um partido que contribui para deslocar a política para a esquerda do actual status-quo. Pode ser um partido "de centro", mas quando o status quo está à direita, isso é, em termos relativos, uma guidada à esquerda.



6) E os outros partidos nisto?

O PS não é o único no qual se verifica uma discrepância entre o posicionamento dos militantes (centro-esquerda) e as propostas efectivas do partido (centro-direita).
O BE e o PCP/PEV são três partidos cujos militantes são, em geral, comunistas. Mas as propostas destes partidos são, em geral, de cariz social-democrata, ou seja, de centro-esquerda.
O PSD também encerra uma enorme diversidade ideológica, cujo centro de gravidade corresponderá ao centro-direita, mas tem feito uma governação de direita.

Interrompendo este padrão (de partidos com uma actuação à direita daquilo que corresponderia às perspectivas ideológicas dos seus militantes) temos o CDS.
Também com uma razoável diversidade ideológica, o "centro de gravidade" dos seus militantes estará à direita daquilo que são as suas propostas e governação. Aliás, durante o mandato de Passos Coelho, o PSD chegou a ultrapassar o CDS pela direita, apesar do mesmo não ter acontecido com os militantes nem de um, nem do outro partido.

O LIVRE, tendo também uma enorme diversidade ideológica (atendendo ao seu tamanho ínfimo), terá o centro de gravidade dos seus militantes no centro-esquerda, como o PS, mas ao contrário do PS, apresenta também propostas de centro-esquerda, como o BE e PCP/PEV.
Outros partidos, além do LIVRE e do PAN, onde também existe consistência entre o posicionamento dos militantes e as propostas do partido são o PCTP-MRPP e o MAS. Em ambos os casos, os militantes são comunistas e as propostas destes partidos também.

Ainda não conheço o suficiente o CHEGA, a Iniciativa Liberal e o Aliança para fazer uma análise à existência ou não de discrepâncias neste domínio.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Deriva de Esquerda

Há quase 10 anos publiquei aqui um conjunto de posts sobre a deriva de direita que tem ocorrido nas últimas décadas no mundo ocidental, magistralmente descrita por Freitas do Amaral:

«quer o socialismo democrático quer a democracia cristão viraram tanto à direita (nos últimos 30 anos) que se converteram em aliados das classes superiores, quando a sua doutrina lhes apontava o caminho da aliança com as classes médias e com o povo mais pobre. O resultado global é triste, mas fácil de detectar: enquanto a social-democracia nórdica continua a favorecer os mais desfavorecidos, a generalidade dos governos socialistas e democratas-cristãos protegem sobretudo os mais ricos e poderosos, castigando sistematicamente a sua principal base de apoio - as classes médias.
Voltámos ao capitalismo no seu pior: Leão XII e Bernstein foram esquecidos pelos seus seguidores; quem influencia os políticos de hoje é Adam Smith, na sua versão neoliberal que o desfigura, é Gizot, apesar de não ser bem conhecido, e é Friedrich Hayek, quase sempre mal interpretado. Por isso as desigualdades aumentam, a corrupção alastra e o poder económico deixou de estar subordinado ao poder político. Platão e Aristóteles já explicavam muito bem porque é que as democracias degeneravam em oligarquias, e estas em plutocracias. Mas quem os lê hoje em dia? E quem reflecte sobre os sábios avisos que nos legaram?»

Os posts foram quase proféticos, terminando com um "se a deriva continua, o fascismo vem a caminho..." que antecipou a existência e chegada do CHEGA ao Parlamento, mas também a ascensão política de Trump, Bolsonaro, etc.

No entanto, em paralelo com esta "deriva de direita" no campo económico, deu-se também uma "deriva de esquerda" a que as pessoas de direita, principalmente as mais conservadoras, não param de se referir, e com alguma razão.

Tal como, no campo económico, muito do discurso de Sá Carneiro - considerado um líder de direita - seria hoje considerado "demasiado extremista" na boca das lideranças do BE ou PCP (pelo menos pelos comentadores dos principais órgãos de comunicação social), também posições que eram consideradas "moderadas" ou até "progressistas" são hoje consideradas "extremistas" e "inaceitáveis" por serem vistas como excessivamente conservadoras.

O campo onde esta mudança foi mais evidente foi o das relações entre pessoas do mesmo sexo. Quando o BE surgiu como partido, a reivindicação do casamento entre pessoas do mesmo sexo era ousada, e até extremista. A posição de que o casamento seria aceitável, mas a adopção nem tanto era considerada uma posição entre o progressista e o moderado. Hoje, rejeitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou - aceitando-o - rejeitar a adopção de crianças por parte de casais do mesmo sexo é uma posição que é vista (e bem) como revelando homofobia, é considerada extremista e "inaceitável". 
Esta foi uma extraordinária vitória, e é muitíssimo importante que a esquerda aprenda as lições desta vitória, como das sucessivas derrotas que foi sofrendo. 

Mas esta não foi a única vitória da esquerda nas últimas décadas. Existiram significativas mudanças na representação do género e da etnia no cinema e na cultura popular. O enorme hiato entre homens e mulheres no que diz respeito à formação académica foi-se fechando ao ponto de já se ter verificado uma ligeira inversão, e o pensamento dominante tornou-se bem menos tolerante para com a violência doméstica. E por aí fora... Numa série de questões culturais, ditas "de valores", a esquerda foi conseguindo conquistar um conjunto de vitórias. 

Não é por acaso que a esquerda tenha conseguido obter as suas vitórias precisamente nas questões que não obstavam (ou até poderiam ajudar a promover) os lucros das principais empresas. Há medida que a esquerda ia somando derrotas no campo económico e somando vitórias naquilo a que se foi chamando o "campo cultural", seria de esperar que as vitórias no campo económico se fossem tornando mais fáceis (porque o status quo estaria mais afastado do "centro" anterior), e que as vitórias no campo cultural se fossem tornando mais difíceis (também porque o status quo estaria mais afastado do "centro" anterior). E, no entanto, a esquerda não parou de somar vitórias no campo cultural, e derrotas no campo económico. 

Sem supor que tenha havido qualquer espécie de intenção deliberada neste processo, vale a pena observar que - do ponto de vista funcional - esta actuação por parte da esquerda é precisamente aquilo que os mais ricos e poderosos melhor poderiam desejar. 
Isto não significa, de todo, que tenha sido um erro a aposta nessas lutas. Cada uma das vitórias da esquerda nestas últimas décadas foi um passo em frente para a Humanidade, essencial para nos dar esperança em relação ao futuro. 

Mas neste momento em que a extrema-direita está em ascensão, não podemos deixar de fazer um bom diagnóstico daquilo que aconteceu nas últimas décadas: uma tremenda deriva de direita no que concerne às esmagadora maioria das questões que são decididas no Parlamento, e mesmo assim um discurso que não é considerado absurdo (pelo menos ao ponto de não ser influente) de acordo com o qual "esta é a sociedade que a esquerda construiu". 
É porque, desonestidades e exageros à parte, em paralelo com a deriva de direita, houve também uma deriva de esquerda. 

Às vezes esquecemo-nos disso, e naqueles posts de há 10 anos eu certamente me esqueci disso.