sábado, 12 de agosto de 2023

Sim à Laicidade, não à Concordata

Portugal assiste por estes dias a um evento católico assumidamente promovido pelo Governo da República e por muitas autarquias. Uma grande parte dos cidadãos critica o apoio financeiro do Estado e a submissão simbólica da República à Igreja organizadora, mas não a realização do evento (que decorre da liberdade religiosa). A jornada da juventude católica, um acontecimento pontual, permite lançar um olhar para formas mais sistemáticas de favorecimento.

A Laicidade existe para nos proteger da ditadura da maioria, inclusivamente em liberdades tão fundamentais como as de consciência, expressão e circulação, mas nem é certo que a maioria hoje concorde com a promoção estatal deste evento ou com outras excepcionalidades católicas. O catolicismo foi, no passado, a religião oficial do Estado português, imposta sem piedade. Não espanta portanto o automatismo com que 78% dos residentes se identificam como "católicos" ao censo. Mas deve reflectir-se em como o comportamento social é radicalmente incongruente: 60% das crianças nascem fora do casamento, 70% dos casamentos são civis e existem 60 divórcios por cada 100 casamentos (metade dos quais de casamentos religiosos).

No caso concreto da jornada da juventude católica, uma sondagem concluiu que 48% dos respondentes consideram que o apoio financeiro deveria ter sido menor, enquanto só 6% defendem que fosse maior e 42% concordam com o apoio dado. Existe portanto uma cada vez maior contradição entre a reverência institucional e o anacrónico favoritismo com que o poder político lida com a ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), e o comportamento social e a vontade política dos cidadãos.

A indignação contra a promoção simbólica e financeira desta jornada pode orientar-se para mudar este estado de coisas. O privilégio estrutural da ICAR em Portugal tem desde 1940 um instrumento jurídico, actualizado em 2004: a Concordata. Estabelece um regime de excepção que, ao contrário de todas as outras comunidades religiosas, reconhece automaticamente a ordem interna dessa Igreja (o "Direito Canónico") por exemplo na criação, extinção e modificação de associações e fundações, compromete a República com a oferta de "Educação Moral e Religiosa Católica" em todas as escolas públicas com professores nomeados pela autoridade eclesiástica mas contratados e pagos pelo Estado, e garante a "afectação permanente", livre de encargos, para o culto católico de uma parte significativa do património monumental do Estado. Portanto, a Concordata não confere direitos: atribui privilégios.

Um passo decisivo para afirmar a igualdade de tratamento das comunidades religiosas (e também dos cidadãos) será revogar a Concordata, como pede a petição da Associação República e Laicidade à Assembleia da República, e aplicar a Lei da Liberdade Religiosa à ICAR. Todos os direitos necessários ao livre exercício de qualquer religião estão garantidos pela Constituição de 1976, lei fundamental do Estado português que garante as liberdades de religião e de culto, assim como as liberdades de expressão e de reunião.

Um outro passo necessário será suprimir o n.º5 do artigo 135 do Código Penal, que coloca o segredo religioso acima do sigilo das profissões laicas, e também revogar o artigo 5.º da Concordata, que estipula que os "eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério".

Finalmente, é claramente necessário discutir se a liberdade de consciência de cada um é realmente respeitada enquanto os impostos de todos os cidadãos financiam templos e cerimónias de uma qualquer confissão religiosa, seja a católica, a islâmica, a judaica ou a evangélica. Mais de um século depois, volta a compreender-se o sentido do artigo 4.º da Lei de Separação das Igrejas do Estado de 1911: "A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum".

(Público, 3 de Agosto de 2023)