segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Portugal e a corrupção

Considero as disputas políticas entre a esquerda e a direita como sendo mesmo muito importantes. Se quisermos olhar para a razão pela qual, nos últimos 40 anos, a humanidade foi incapaz de garantir que o impacto ambiental da actividade económica fosse minimamente sustentável (agravando para lá do limiar do aceitável a ameaça existencial que o aquecimento global representa, entre outros problemas), a razão pela qual a Democracia e o Estado de Direito têm estado em retrocesso na última década, ou porque é que as desigualdades de rendimento e património se agravaram tanto dos países ocidentais, enquanto o salário mediano dos trabalhadores praticamente estagnou constituindo agora uma proporção muito menor da sua produtividade, a deriva de direita das últimas 4 décadas que tenho vindo a referir neste espaço é uma das razões mais importantes.

No entanto, se a nossa preocupação for explicar o atraso de Portugal face a outros países da UE e encontrar a melhor forma de superar esse atraso, o debate entre esquerda e direita terá muito pouca relevância. A nível ideológico, Portugal apresenta poucas diferenças face aos outros países da UE, está sensivelmente à direita de metade, está sensivelmente à esquerda de outra metade. O peso do estado na economia está muito próximo da média europeia, e se o número de funcionários públicos hoje está um pouco abaixo da média europeia, a verdade é que já chegou também a estar um pouco acima. A estrutura fiscal de Portugal não é radicalmente diferente e a legislação laboral também não. Portugal era um dos países com maior desigualdade de rendimento, mas também um dos países com maior atraso no domínio da instrução; esse hiato ao nível da instrução está a fechar e isso tem atenuado a diferença entre as desigualdades de rendimento em Portugal e as que existem no resto da UE. Portugal não se destaca pelo tipo de serviços públicos que oferece e o financiamento destes serviços é perfeitamente típico atendendo ao rendimento do país.  Não podemos explicar o atraso português com "o socialismo" nem com "o liberalismo". 

Claro que Portugal tem à partida, algumas desvantagens que poderiam afectar a nossa produtividade e por conseguinte o nosso desenvolvimento: posição geográfica periférica, condições menos propícias para a agricultura, etc. Mas Portugal também tem importantes vantagens, por ser um país costeiro e solarengo com uma latitude muito apetecível. Muitos portugueses sentem que Portugal é um país aquém do seu potencial, e creio que com razão.

É comum que Portugal esteja, entre os países desenvolvidos, entre aqueles onde existe maior percepção de corrupção, mas será que essa percepção corresponde à realidade? Existem alguns indícios de que sim, mas eu queria centrar-me num indício que me parece muito importante: a forma como o eleitorado português e a classe política lidam com este problema. 

Num sistema democrático funcional, duas coisas tenderiam a ocorrer: por um lado existiria um consenso que ultrapassasse as divergências ideológicas de que a corrupção é um mal a combater e quem o quiser fazer com propostas concretas e exequíveis merece ser aplaudido, e que cabe à classe política dar as condições ao sistema de justiça para identificar e punir os crimes de corrupção com eficácia, bem como definir os crimes de corrupção de forma a garantir que não se pode "corromper legalmente". Como qualquer partido ou força política que fizesse propostas concretas e consequentes para combater o problema da corrupção seria beneficiado eleitoralmente, os maiores partidos, nos seus naturais esforços para aumentar a sua votação, já teriam feito um conjunto de propostas consequentes e adequadas para resolver este problema. Por outro lado, também existiria um consenso de que a denúncia fundamentada de grosseiros conflitos de interesses, fortes indícios de corrupção ou até mesmo de actos corruptos seria legítima e deveria dar lugar a maior escrutínio. Seria natural que um grande partido fosse penalizado eleitoralmente se figuras cimeiras fossem culpadas ou indiciadas, coadunando-se a dimensão do dano eleitoral com a força dos indícios em causa e a gravidade do acto em questão. Isto iria encorajar os maiores partidos a evitarem ao máximo estar associados a situações deste tipo, o que os levaria a serem particularmente cuidadosos e a fazerem as maiores diligências para prevenir situações desse tipo. Uma "lealdade clubística" que levasse as pessoas a não ajuizar adequadamente as acções dos seus camaradas seria social e eleitoralmente penalizada.

Aquilo que não poderia ter lugar seria o seguinte:

-uma proporção relativamente elevada dos eleitores ter uma atitude excessivamente cínica perante a relação entre os actores políticos e a corrupção, afirmando serem "todos iguais". Uma disposição deste tipo prejudica os políticos com mais vontade de atacar este problema, acabando por beneficiar em primeiro lugar os actores políticos mais corruptos. 

-uma proporção relativamente elevada dos eleitores mais informados ter uma atitude excessivamente displicente face ao problema da corrupção; ou até mesmo pedante, acusando de populismo (palavra invariavelmente usada com a mais negativa das conotações possíveis) todos aqueles que manifestem vontade de atacar este problema. 

Seria à partida de esperar que uma sociedade onde prevalecessem os dois comportamentos acima fosse vítima de um grave problema de corrupção, uma vez que os dois comportamentos acima resultam num atrofio do "sistema imunitário" da Democracia, necessário para evitar que a questão da corrupção assuma uma gravidade excessiva. Ora é exactamente isso que acontece em Portugal. 

A generalidade das elites portuguesas ignora ou ataca qualquer tentativa de dar destaque ao problema do combate à corrupção e aqueles que mais rejeitam as elites reagem com um cinismo que equipara todos os políticos e protege os mais mais corruptos. A situação não poderia portanto ter deixado de se agravar sucessivamente.

A questão da corrupção acabou por ser aproveitada pela extrema direita, algo que só se tornou inevitável pela escolha das elites nacionais de ignorar o problema, o que é particularmente irónico. Tipicamente, é de esperar que aos partidos maiores e mais poderosos estejam associados mais casos e indícios de corrupção, irregularidades e conflitos de interesse. Acontece que o partido de extrema direita português mais mediatizado, apesar da sua ínfima dimensão, está já associado a várias situações deste tipo. O partido que mais fala sobre corrupção é aquele que tudo indica ser aquele com maior "densidade de corrupção". Isto significa que não lidar devidamente com este problema já não tem apenas como consequência o impacto negativo no nosso desenvolvimento e na convergência com o resto da UE: também pode pôr em risco a Democracia. 

Assim, é absolutamente necessário, para a saúde da Democracia, alterar radicalmente esta situação.  As eleições presidenciais podem dar uma oportunidade de o fazer. 


sábado, 14 de novembro de 2020

O Presidente mais impopular de que há registo

Apesar de poderem existir excepções pontuais num momento ou outro, quando consideramos a globalidade do primeiro mandato (o único que podemos comparar), pelo menos desde 1945 que nenhum Presidente dos EUA foi tão impopular como Donald Trump. 

Acrescente-se que antes de 1945 os EUA foram presididos por uma das figuras mais populares de sempre (Franklin D. Roosevelt), a afirmação anterior apenas se restringe ao período posterior a 1945 porque é desde essa altura que existem registos da popularidade de cada Presidente. De facto, se subtrairmos à "taxa de aprovação" de cada Presidente a sua "taxa de desaprovação" iremos verificar a tremenda impopularidade de Donald Trump:




Estes resultados podem ser consultados aqui. Os resultados são ainda mais evidentes se nos limitarmos à "taxa de desaprovação", embora sejam ligeiramente menos claros se nos limitarmos à "taxa de aprovação". A meu ver, é o diferencial entre ambos que nos dá mais informação sobre a popularidade ou impopularidade de um governante. 

Muitas pessoas ficam impressionadas com a quantidade de votos que Donald Trump conseguiu conquistar nos EUA, e essa é de facto uma realidade perturbadora que merece reflexão. Mas muitos acreditam que se Trump foi, ao longo do seu mandato, uma figura popular nos EUA. Os dados desmentem esta afirmação com muita clareza. 

E se é verdade que tem existido um enviesamento sistemático nas sondagens (que tem sido explicado com o facto da atitude geral de desconfiança face aos outros membros da sociedade, que se correlaciona com a probabilidade de recusar responder a sondagens, também se ter começado a correlacionar com a identificação política da pessoa), a verdade é que os resultados são tão claros e evidentes que se torna pouco razoável negar a extraordinária impopularidade de Trump. 

As pessoas que acreditam que a terra é plana e Trump ganhou as eleições ainda estão longe de ser a maioria. 





terça-feira, 3 de novembro de 2020

A "impostura liberal" e a saúde

Há algum tempo atrás comentei um mapa de um cartaz da "Iniciativa Liberal" que me pareceu particularmente desonesto e bastante exemplificativo de uma forma de comunicar desse partido. 

Não tinha grandes intenções de voltar tão cedo a falar da IL até porque agora é altura de preparar o champanhe que a humilhação eleitoral de Donald Trump se aproxima. 

Mas eis senão quando, começo a ver várias partilhas de uma página da IL explicando que os liberais não querem acabar com o SNS. A página está bem feita: o grafismo está bom, a linguagem é adequada para comunicar com pessoas pouco politizadas, e o conteúdo em geral é persuasivo para quem confie minimamente nos autores. E aí é que está o problema: é que os autores não merecem nenhuma confiança. 




Vale a pena destacar o mapa apresentado. Aqui já parecem reconhecer que quase todos os países "liberais" no mapa anterior afinal têm um sistema "estatista". Portugal, que era apresentado como o único país socialista da Europa (o que revela alguma falta de pudor...) afinal está agora na mesma lista que a maior parte dos supostos países liberais europeus (países nórdicos, Reino Unido, Irlanda, etc.). Mas esqueçamos as outras dimensões de "liberalismo" e foquemo-nos apenas na saúde. 

A imagem diz que, de acordo com o ranking EHCI 2018, Portugal aparece apenas em 13º lugar. Podemos fazer melhor! 

Mas demos uma vista de olhos no EHCI 2018, e logo por acaso eles têm também um mapa. 

Portugal aparece no grupo a verde, no grupo dos melhores. Isso não é usual. Estamos à frente da Espanha, da Itália, do Reino Unido, da Irlanda e de toda a Europa de Leste. Nada mau!

Curioso também é que, de acordo com este índice, parece muito difícil de argumentar que os sistemas defendidos pela IL ajudem o que quer que seja: os países nórdicos com sistemas públicos de saúde estão também no topo, enquanto Grécia, Bulgária, Hungria, Roménia e Croácia, todos com sistemas como a IL defende, estão na pior das categorias (duas abaixo de Portugal). 

Portanto, em resumo, com tanta coisa para mudar profundamente neste país, a IL propõe-se desmantelar uma das poucas em que temos resultados acima da média europeia (de acordo com a avaliação que eles próprios referenciaram!). E argumentam a favor disso numa página onde esclarecem não querer acabar com o SNS, apenas transformá-lo num sistema onde países com um desenvolvimento económico comparável ao nosso têm muito piores resultados!

Mas isto nem é uma crítica à proposta da IL. É uma crítica a esta forma de comunicar politicamente, desinformando as pessoas menos politizadas. Dando a entender que é mau aquilo que é bom, escolhendo quem é "liberal" ou "socialista" de forma arbitrária conforme as conveniências. 

Claro que a crítica mais profunda a estas propostas prende-se com o financiamento. A IL propõe uma enorme redução das receitas fiscais e alega não querer diminuir o financiamento dos serviços públicos, mas também não defende o aumento da dívida pública. Nessa questão, todos os outros partidos de direita são mais honestos. 

Não costumo chamar "impostura liberal" à IL, mas neste post, escrito depois de ter lido aquele conteúdo tão enganador, achei por bem fazê-lo. 

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Cidadania: sem objecção

Foi divulgado um manifesto “Em defesa das liberdades de educação” [1], pedindo que se respeite “a objecção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento”. O manifesto não especifica o porquê de essa objecção dever existir para esta disciplina (e muito menos porque não a estender a outras), e mesmo as declarações dos assinantes pouco concretizam o que realmente incomoda e justifica um pedido tão extremo. Para que o debate seja honesto e portanto avance, é exigível que os assinantes do manifesto sejam bem mais explícitos, sob risco de a discussão ser quase abstracta.

O programa da disciplina vai dos Direitos Humanos ao bem-estar animal, do empreendedorismo ao mundo do trabalho, da segurança rodoviária à educação ambiental, da sexualidade às instituições democráticas, da literacia financeira ao voluntariado, da educação para o consumo à diversidade cultural e religiosa. Responde a um conjunto vasto de preocupações recorrentes na sociedade portuguesa e às quais se exige frequentemente que a escola responda – como a toxicodependência, a sinistralidade rodoviária, a violência sexual ou a intolerância religiosa ou cultural. Apetrechar os futuros cidadãos para enfrentarem estes problemas é “totalitarismo ideológico [em] matérias sensíveis e de cariz moral”, como afirma um dos autores do abaixo-assinado [2]? Ensinar a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição (ironicamente, muito citadas no manifesto) é “programar ideologicamente o ensino"? Ensinar para a liberdade, para a pluralidade e, no fundo, para a cidadania, não é nunca a imposição de uma ideologia, mas sim a consciencialização de que na sociedade existem várias opções ideológicas em diálogo.

O que haverá portanto de tão grave no programa desta disciplina que justifique a sua rejeição? Um dos autores do manifesto parece querer negar ao Estado um papel na educação sexual [3]. E o manifesto foi gerado pelo caso de duas crianças de Famalicão que reprovaram por, primeiro, os pais as terem impedido de frequentar a totalidade das aulas da disciplina e, segundo, por os mesmos pais terem recusado o plano de recuperação proposto pela escola (conforme já explicado pelo secretário de Estado Adjunto e da Educação [4]), pais esses que rejeitam justamente a educação sexual escolar. Uma alínea entre muitas de um programa amplo justifica que se objecte à totalidade? A existir, a objecção de consciência proposta serviria para cidadãos de cultura tradicional cristã, cigana ou islâmica esconderem às suas filhas – com a conivência do Estado – que vivem num país com igualdade de direitos entre homens e mulheres, ou para ocultar a criminalização das mutilações genitais, no limite para rejeitar o ensino da evolução ou da origem do universo. Alguns dos grupos mais fechados da sociedade ficariam reforçados no seu isolamento, e os indivíduos desses grupos desinformados dos seus direitos e deveres, e das leis e cultura da sociedade em que se inserem. É preferível termos cidadãos conscientes, esclarecidos e intervenientes.

A terminar: a Lei de Bases do Sistema Educativo tem nos seus princípios “assegurar a formação cívica e moral dos jovens” (artigo 3.º, alínea c). Quando coloca o objectivo de “proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição de noções de educação cívica e moral” (artigo 7.º, alínea n), não garante certamente um direito de objecção à cidadania (aliás, a objecção de consciência, quando existe, é exercida pelos próprios e não por terceiros, mesmo que pais). Garante, entende-se, que a matéria desta disciplina não é um dogma que requer adesão. Fica-se portanto no âmbito do fornecimento de informação e da recomendação, e não da doutrinação. E ainda bem que assim é, porque formar não é formatar: os futuros cidadãos têm que saber quais são os seus direitos e deveres, mesmo que, lamentavelmente, não consigam exercer plenamente os seus direitos ou não cumpram os seus deveres.

(Ricardo Gaio Alves, Associação República e Laicidade, Público, 7/9/2020)

[1] http://diocese-aveiro.pt/cultura/documento-em-defesa-das-liberdades-de-educacao/

[2] Manuel Braga da Cruz citado por Isaura Almeida em “Cidadania. Direito à objecção de consciência ou não à educação ‘self-service'?” (Diário de Notícias, 2/9/2020)

[3] idem

[4] João Costa em “A cidadania não é facultativa” (PÚBLICO, 3/9/2020)

sábado, 11 de julho de 2020

TCE: um tratado para aquecer o planeta

Não existe nenhum obstáculo tão poderoso ao combate às alterações climáticas na UE como o Tratado Carta da Energia (TCE), apesar do mesmo ser quase desconhecido.  
Este tratado recorre ao sistema de justiça paralela e privada ISDS, já mencionado neste blogue, e na verdade nenhum tratado internacional é responsável por tantas queixas conhecidas através deste mecanismo como o TCE. O objectivo do Tratado é proteger o investimento associado à produção de energia eléctrica ou extracção e transporte de combustíveis fósseis. Proteger daquilo que veio a ser considerado "expropriação indirecta": medidas legislativas ou acções governativas que possam diminuir a expectativa de lucro dos investidores estrangeiros. 
Por exemplo, a Holanda quer - para combater as alterações climáticas - proibir a produção de electricidade a partir do carvão a partir de 2030. Como tal uma empresa estrangeira quer recorrer a estes tribunais privados para exigir uma indemnização superior a mil milhões de euros. Com toda a tinta que a TAP fez correr, é fácil compreendermos que não estamos a falar de trocos.
O que é que isto representa na luta contra as alterações climáticas? Uma total e completa incompatibilidade. O Tratado Carta da Energia (TCE) obriga a União Europeia a emitir um volume de dióxido de carbono (ou equivalente) que é cerca do dobro daquele que é compatível com a meta de 2,0º C associada ao Acordo de Paris. Ou um volume de emissões que é cerca de cinco vezes superior à meta de 1,5º C referida no mesmo documento. Ou se cumpre o Acordo de Paris, ou se cumpre o TCE: não é possível cumprir ambos. 

Esta estimativa do volume de emissões protegidas pelo tratado é apresentada num relatório da autoria de Yamina Saheb, uma das autoras principais dos relatórios do IPCC, com um currículo todo ele na área energética. Esta estimativa não foi, que eu tenha conhecimento, disputada. 
Neste momento estão a decorrer negociações para a "modernização" do Tratado, e estas negociações podem atenuar ligeiramente os seus efeitos perversos, se forem bem sucedidas. Mas é muito pouco, muito tarde. O abandono deste tratado é que se torna cada vez mais urgente. 

As previsões falhadas dos negacionistas do aquecimento global

Só alguns exemplos das mais recentes (5 minutos):

segunda-feira, 8 de junho de 2020

A extrema-esquerda e o autoritarismo


Quem vai acompanhando o que escrevo (há pelo menos um leitor a quem estas abstracções não o deixam indiferente) sabe que discordo profundamente que a divisão esquerda-direita corresponda grosso-modo ao eixo horizontal na divisão dos eixos popularizada pela "bússola política".
Na "bússola política" as convicções políticas são mapeadas em dois eixos: um vertical associado ao binómio autoritário/libertário e um horizontal associado ao binómio pró-redistribuição/pró-mercado. Muitas vezes diz-se que o eixo esquerda-direita corresponde ao eixo horizontal, e era também essa a minha convicção há muitos anos atrás. Em vez disso costumo dizer que (pelo menos nos países ocidentais) o eixo esquerda-direita corresponde à diagonal que que vai do extremo libertário e pró-redistribuição até ao extremo autoritário e pró-mercado.



Um aspecto que denuncia que o eixo horizontal não é o eixo esquerda-direita é o nosso uso do termo extrema-direita.
Nós consideramos que a extrema-direita corresponde aos partidos mais autoritários, com tendências fascistas e racistas, mesmo que os seus programas económicos sejam relativamente moderados.
Por exemplo, o PNR está à esquerda do CDS no eixo económico, mas ninguém duvida que o PNR pode mais facilmente ser considerado um partido de extrema-direita do que o CDS.
O mesmo acontece em relação a Bolsonaro, Trump, etc. A perspectiva dominante do partido Republicano é mais pró-mercado que a perspectiva de Trump, e no entanto ninguém pode negar que Trump arrastou o partido republicano para a direita.

Existem outras duas razões importantes (além do uso que fazemos do termo "extrema-direita") que justificam esta minha perspectiva: as origens históricas da terminologia e a enorme correlação que existe entre a convicção de que se deve distribuir (/concentrar) o poder económico e a convicção de que se deve distribuir (/concentrar) o poder político. Ora a forma de comprimir estes dois eixos num só perdendo o mínimo de informação seria escolher um eixo com o declive da correlação. Sobre todas estas questões já tinha falado em textos anteriores, mas sempre existiu um ponto fraco nesta tese.

Se a tese do eixo horizontal tem como ponto fraco o uso do termo "extrema-direita", a tese do eixo diagonal como como ponto fraco o uso do termo "extrema-esquerda".
Efectivamente, nós consideramos regimes como o regime de Estaline ou de Mao como regimes de "extrema-esquerda", e não podemos considerar que uma ditadura está no extremo libertário, certamente.
Aparentemente, o uso que fazemos do termo "extrema-esquerda" é completamente consistente com a suposição de que o termo está associado ao eixo horizontal. Todos os regimes de transformação radical da sociedade visando uma distribuição mais equitativa da propriedade e rendimento são considerados extrema-esquerda, trate-se de uma ditadura ou de um sistema anarquista (incompatível com o capitalismo).
Há alguns anos que reconhecia esta questão como sendo o ponto fraco da minha tese. Uma peça que não encaixa. Mas as outras razões a favor desta tese parecem-me tão fortes, que mantive esta perspectiva quanto ao eixo esquerda-direita.



Mas pensemos um pouco nos regimes ditatoriais ou totalitários que resultaram das revoluções socialistas. Em tese, tratam-se de regimes marxistas revolucionários.

Estou convencido que, na prática, aquilo que os líderes destas ditaduras querem é perpetuar-se no poder, concentrando poder em si e nos seus. Mas o que é que, em tese, a sua ideologia visa? O que é que visa a ideologia marxista revolucionária? Esta ideologia visa o comunismo: uma sociedade sem classes e sem estado.

O comunismo (ou "comunismo utópico" para distinguir do significado que o termo comunista ganhou devido à prática dos "regimes socialistas") é efectivamente indistinguível da anarquia. O que separou os marxistas dos anarquistas quando ocorreu a cisão da Primeira Internacional não foi o ponto de chegada almejado: ambos tinham o mesmo sonho. O que os separou foi o caminho.

Os marxistas propunham, para chegar ao comunismo - a utopia em que o poder político e económico não podia estar mais distribuído - instaurar a "ditadura do proletariado", roubando o estado às mãos da burguesia, para então usar esta ferramenta poderosa de forma a criar as condições para a sua dissolução. Ou seja, para chegar ao canto inferior esquerdo, fazer um atalho (ou desvio) pelo canto superior esquerdo. Os anarquistas nunca acreditaram nesta estratégia, e previram logo de início que a concentração de poder dela resultante iria auto-perpetuar-se de forma a que o "comunismo" nunca seria atingido.

Quer isto dizer que devemos colocar a generalidade dos partidos de extrema-esquerda no canto inferior esquerdo? A meu ver, isso seria uma péssima ideia. À medida que se foi conhecendo o "resultado prático" das revoluções socialistas, o pensamento marxista foi-se tornando mais rico e diverso, e tornaram-se muito mais comuns linhas de pensamento que rejeitavam a estratégia da "ditadura do proletariado", ou pelo menos nos termos em que inicialmente fora proposta. E para distinguir facções com menos desconforto face à ideia de uma ditadura que dure várias gerações (suponho que não era o que Marx tinha em mente...) de outras que são radicalmente avessas a essa ideia, devemos pensar na posição dos partidos de esquerda de acordo não com a sua derradeira utopia, mas sim com aquilo que em termos práticos querem implementar. Se estão dispostos a aceitar uma concentração excessiva de poder nas mãos do estado (mesmo que hipoteticamente seja para um dia o poder dissolver), então estarão mais acima no eixo autoritário-libertário. E note-se que as correntes de pensamento marxista radical que conseguiram conquistar o poder não são uma amostra representativa das correntes de pensamento marxista radical que existem.

Seja como for, esta discrepância entre o ponto para onde vários partidos e correntes de esquerda querem ir no futuro imediato e aquele que é o seu objectivo derradeiro parece explicar a aparente inconsistência no uso que damos ao termo "extrema-esquerda".
Efectivamente, todos os partidos ou correntes de "extrema-esquerda" sonham chegar ao canto inferior-esquerdo do mapa, mesmo que alguns usem uma estratégia que pode ser considerada claramente contra-producente. 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Porque é que o programa do PAN está à esquerda do programa do PS?


Por vezes tenho referido o PAN como sendo um partido de esquerda. Tanto qualquer membro do PAN como o Ricardo Alves, como muitas outras pessoas, me têm dito que não, que o PAN não é um partido de esquerda. O PAN - dirão - não se revê nessa dicotomia, e portanto não pode ser considerado um partido de esquerda.

Existe alguma razão nessa alegação. Mas vale a pena esmiuçar um pouco essa questão, porque isso toca em vários pontos interessantes.


1) Não é por alguém não se rever na dicotomia esquerda-direita que não tem um posicionamento ideológico nesse eixo. 

Dizia-se há alguns anos que quando alguém dizia que não era de esquerda nem de direita, é porque era de direita.
Mas sempre existiram excepções a essa regra. Por exemplo, muitos anarco-sindicalistas (extrema-esquerda) recusavam o termo "esquerda" por evocar o parlamentarismo da democracia representativa.
Muitas vezes as pessoas não se identificam com o eixo esquerda-direita não porque não dêem importância às questões a que esse eixo corresponde, ou não tenham convicções que permitam facilmente localizá-las nesse eixo, mas sim porque não são suficientemente politizadas para conhecerem o significado desses termos, ou porque têm tanta aversão ao conflito que não querem assumir que as suas posições as colocam em confronto com outras com uma opinião diferente.


2) Um partido tende a ser de "centro" nas questões que não considera prioritárias

Suponhamos um partido que foi criado com o objectivo específico de pôr fim ao acordo ortográfico. Vamos supor que essa "causa" é tão importante para a generalidade dos seus membros, que eles subordinam a esmagadora maioria das outras questões a esta em específico.
Se essa causa for, em grande medida, independente das questões associadas à "esquerda" e "direita", o partido será composto por uma amostra representativa da sociedade no que concerne ao eixo esquerda-direita. Vai incluir uma pequena proporção de gente de extrema-esquerda e extrema-direita, mais gente de centro-esquerda e centro-direita e uma fatia razoável de gente de centro.
O "centro de gravidade" no eixo esquerda-direita será o centro.

O partido em causa tenderá, numa fase inicial, a ser extremamente plural em tudo o que diz respeito às questões que não estejam directamente ligadas à causa essencial.
No exemplo em causa, se o partido não conseguir forjar uma aliança entre todos aqueles que acreditam na necessidade imperiosa de acabar com o acordo ortográfico, não importa a sua perspectiva ideológica no campo esquerda-direita, o partido não terá força para vencer os enormes obstáculos que tem pela frente.
Quando o partido precisar de tomar posições em domínios fora da causa essencial, a posição tenderá a aproximar-se do "centro de gravidade" que está no centro. Os elementos com perspectivas ideológicas mais distantes priorizam o suficiente a causa essencial para tolerar essas diferenças em nome do compromisso e da união.


3) As propostas do PAN são de centro

O PAN enquadra-se em grande medida na situação descrita no ponto 2). O animalismo e o ecologismo são questões tão cruciais para os seus membros, que - para conseguirem ter um movimento capaz de ter força nestas áreas - eles estão dispostos a aceitar um enorme pluralismo nas restantes questões.
Assim, enquanto os militantes e simpatizantes do PAN reflectem o pluralismo ideológico da sociedade portuguesa, cobrindo quase todo o espectro esquerda-direita, as propostas do PAN são propostas de centro.


4) As propostas e a governação do PS são de centro-direita

O PS é um partido com militantes de centro-esquerda. Estes militantes, bem como grande parte da sociedade portuguesa, são capazes de assegurar que o PS tem feito uma governação de centro-esquerda.
Infelizmente, esta afirmação não resiste a um escrutínio adequado. Nos últimos 40 anos, nos países ocidentais, suposta alternância centro-esquerda / centro-direita não tem mantido o grau de desigualdades num patamar relativamente constante - como aconteceria se aquilo a que se chama "centro" o fosse efectivamente.
Ao invés, a proeminência de políticas neoliberais foi tão forte que o próprio FMI se interroga se elas não estão já a prejudicar o próprio crescimento económico (uma bandeira da direita). Ao invés, as desigualdades têm aumentado de forma galopante. As desigualdades estão muito acima daquilo que a população em geral imagina ser o caso, e a quase totalidade da população acredita que as desigualdades de rendimento e património que existem são excessivas. Se apesar disso elas se têm agravado, temos de concluir que no ocidente a alternância não tem sido entre uma governação de centro-esquerda e centro-direita, mas sim entre uma governação de centro-direita e de direita.
Portugal que, apesar de desigualdades de rendimento muito superiores, não destoa pelas suas políticas dos restantes países da UE (no que concerne a peso do estado na economia, quantidade de funcionários públicos, papel do estado na economia, etc.) está nas mesmas circunstâncias.
De facto, poderemos verificar que a "Geringonça" foi, no seu global, uma governação de centro no campo económico. Não existiram alterações relevantes na legislação laboral, na progressividade fiscal, no peso do estado na economia, etc. Mas se a governação da Geringonça foi de centro, e três dos parceiros puxaram as políticas para a esquerda, qual era a posição original do PS?


5) O PAN está à esquerda do PS?

Depende.
O PS afirma-se de esquerda e o PAN afirma-se como não sendo de esquerda, mas isso é uma observação bastante superficial. A simbologia e a retórica valem o que valem, e remete para o ponto 1 deste texto: a auto-identificação de alguém no espectro esquerda-direita não tem de corresponder à sua posição efectiva.
O PS está à esquerda do PAN no sentido em que os militantes do PS são, em geral, de centro-esquerda. O militantes do PAN, por outro lado, são uma amostra da sociedade portuguesa, com todo o seu pluralismo.
Mas eu argumentaria que o PS está à direita do PAN naquilo que mais importa (pelo menos que diz respeito à avaliação mais relevante para um eleitor): nas suas propostas, e no seu impacto político efectivo.
Um voto no PAN conduz a políticas mais à esquerda do que um voto no PS.
Por vezes continuarei a chamar ao PAN "um partido de esquerda", mas a razão de o fazer é esta: é um partido que contribui para deslocar a política para a esquerda do actual status-quo. Pode ser um partido "de centro", mas quando o status quo está à direita, isso é, em termos relativos, uma guidada à esquerda.



6) E os outros partidos nisto?

O PS não é o único no qual se verifica uma discrepância entre o posicionamento dos militantes (centro-esquerda) e as propostas efectivas do partido (centro-direita).
O BE e o PCP/PEV são três partidos cujos militantes são, em geral, comunistas. Mas as propostas destes partidos são, em geral, de cariz social-democrata, ou seja, de centro-esquerda.
O PSD também encerra uma enorme diversidade ideológica, cujo centro de gravidade corresponderá ao centro-direita, mas tem feito uma governação de direita.

Interrompendo este padrão (de partidos com uma actuação à direita daquilo que corresponderia às perspectivas ideológicas dos seus militantes) temos o CDS.
Também com uma razoável diversidade ideológica, o "centro de gravidade" dos seus militantes estará à direita daquilo que são as suas propostas e governação. Aliás, durante o mandato de Passos Coelho, o PSD chegou a ultrapassar o CDS pela direita, apesar do mesmo não ter acontecido com os militantes nem de um, nem do outro partido.

O LIVRE, tendo também uma enorme diversidade ideológica (atendendo ao seu tamanho ínfimo), terá o centro de gravidade dos seus militantes no centro-esquerda, como o PS, mas ao contrário do PS, apresenta também propostas de centro-esquerda, como o BE e PCP/PEV.
Outros partidos, além do LIVRE e do PAN, onde também existe consistência entre o posicionamento dos militantes e as propostas do partido são o PCTP-MRPP e o MAS. Em ambos os casos, os militantes são comunistas e as propostas destes partidos também.

Ainda não conheço o suficiente o CHEGA, a Iniciativa Liberal e o Aliança para fazer uma análise à existência ou não de discrepâncias neste domínio.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Deriva de Esquerda

Há quase 10 anos publiquei aqui um conjunto de posts sobre a deriva de direita que tem ocorrido nas últimas décadas no mundo ocidental, magistralmente descrita por Freitas do Amaral:

«quer o socialismo democrático quer a democracia cristão viraram tanto à direita (nos últimos 30 anos) que se converteram em aliados das classes superiores, quando a sua doutrina lhes apontava o caminho da aliança com as classes médias e com o povo mais pobre. O resultado global é triste, mas fácil de detectar: enquanto a social-democracia nórdica continua a favorecer os mais desfavorecidos, a generalidade dos governos socialistas e democratas-cristãos protegem sobretudo os mais ricos e poderosos, castigando sistematicamente a sua principal base de apoio - as classes médias.
Voltámos ao capitalismo no seu pior: Leão XII e Bernstein foram esquecidos pelos seus seguidores; quem influencia os políticos de hoje é Adam Smith, na sua versão neoliberal que o desfigura, é Gizot, apesar de não ser bem conhecido, e é Friedrich Hayek, quase sempre mal interpretado. Por isso as desigualdades aumentam, a corrupção alastra e o poder económico deixou de estar subordinado ao poder político. Platão e Aristóteles já explicavam muito bem porque é que as democracias degeneravam em oligarquias, e estas em plutocracias. Mas quem os lê hoje em dia? E quem reflecte sobre os sábios avisos que nos legaram?»

Os posts foram quase proféticos, terminando com um "se a deriva continua, o fascismo vem a caminho..." que antecipou a existência e chegada do CHEGA ao Parlamento, mas também a ascensão política de Trump, Bolsonaro, etc.

No entanto, em paralelo com esta "deriva de direita" no campo económico, deu-se também uma "deriva de esquerda" a que as pessoas de direita, principalmente as mais conservadoras, não param de se referir, e com alguma razão.

Tal como, no campo económico, muito do discurso de Sá Carneiro - considerado um líder de direita - seria hoje considerado "demasiado extremista" na boca das lideranças do BE ou PCP (pelo menos pelos comentadores dos principais órgãos de comunicação social), também posições que eram consideradas "moderadas" ou até "progressistas" são hoje consideradas "extremistas" e "inaceitáveis" por serem vistas como excessivamente conservadoras.

O campo onde esta mudança foi mais evidente foi o das relações entre pessoas do mesmo sexo. Quando o BE surgiu como partido, a reivindicação do casamento entre pessoas do mesmo sexo era ousada, e até extremista. A posição de que o casamento seria aceitável, mas a adopção nem tanto era considerada uma posição entre o progressista e o moderado. Hoje, rejeitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou - aceitando-o - rejeitar a adopção de crianças por parte de casais do mesmo sexo é uma posição que é vista (e bem) como revelando homofobia, é considerada extremista e "inaceitável". 
Esta foi uma extraordinária vitória, e é muitíssimo importante que a esquerda aprenda as lições desta vitória, como das sucessivas derrotas que foi sofrendo. 

Mas esta não foi a única vitória da esquerda nas últimas décadas. Existiram significativas mudanças na representação do género e da etnia no cinema e na cultura popular. O enorme hiato entre homens e mulheres no que diz respeito à formação académica foi-se fechando ao ponto de já se ter verificado uma ligeira inversão, e o pensamento dominante tornou-se bem menos tolerante para com a violência doméstica. E por aí fora... Numa série de questões culturais, ditas "de valores", a esquerda foi conseguindo conquistar um conjunto de vitórias. 

Não é por acaso que a esquerda tenha conseguido obter as suas vitórias precisamente nas questões que não obstavam (ou até poderiam ajudar a promover) os lucros das principais empresas. Há medida que a esquerda ia somando derrotas no campo económico e somando vitórias naquilo a que se foi chamando o "campo cultural", seria de esperar que as vitórias no campo económico se fossem tornando mais fáceis (porque o status quo estaria mais afastado do "centro" anterior), e que as vitórias no campo cultural se fossem tornando mais difíceis (também porque o status quo estaria mais afastado do "centro" anterior). E, no entanto, a esquerda não parou de somar vitórias no campo cultural, e derrotas no campo económico. 

Sem supor que tenha havido qualquer espécie de intenção deliberada neste processo, vale a pena observar que - do ponto de vista funcional - esta actuação por parte da esquerda é precisamente aquilo que os mais ricos e poderosos melhor poderiam desejar. 
Isto não significa, de todo, que tenha sido um erro a aposta nessas lutas. Cada uma das vitórias da esquerda nestas últimas décadas foi um passo em frente para a Humanidade, essencial para nos dar esperança em relação ao futuro. 

Mas neste momento em que a extrema-direita está em ascensão, não podemos deixar de fazer um bom diagnóstico daquilo que aconteceu nas últimas décadas: uma tremenda deriva de direita no que concerne às esmagadora maioria das questões que são decididas no Parlamento, e mesmo assim um discurso que não é considerado absurdo (pelo menos ao ponto de não ser influente) de acordo com o qual "esta é a sociedade que a esquerda construiu". 
É porque, desonestidades e exageros à parte, em paralelo com a deriva de direita, houve também uma deriva de esquerda. 

Às vezes esquecemo-nos disso, e naqueles posts de há 10 anos eu certamente me esqueci disso. 

terça-feira, 17 de março de 2020

Um Estado forte, fronteiras fechadas e suspensão das liberdades são maus princípios

Não estou convencido da necessidade de decretar o estado de emergência.

As medidas drásticas tomadas desde quinta-feira passada foram aceites pelos cidadãos e pelas empresas de forma ordeira e sem revolta. Por enquanto. (Tirando excepções muito mediatizadas que foram devidamente criticadas nos media e nas redes sociais.) Portanto não vejo a necessidade de chamar as Forças Armadas para as ruas.

Todas as medidas restritivas que faltam tomar (encerrar completamente restaurantes e cafés e negócios não essenciais, por exemplo) podem ser tomadas sem estado de emergência. E presumivelmente serão respeitadas se a responsabilidade for de cada um e não imposta pelo Estado.

A responsabilidade individual tem servido até agora. O estado de emergência só fará sentido se houver revolta e desobediência, o que não é (ainda) o caso. O estado de emergência será passar da «limitação» de direitos por decisão individual (assumirmos a responsabilidade pelo colectivo) para a suspensão de direitos por decreto estatal. A diferença é que o juízo sobre o que se pode fazer passará de nós para o Estado. E quando voltará para nós? É que o estado de excepção abre um precedente que pode vir a ser muito complicado evitar que se volte a repetir. E em tempos de populismos, calma.

A liberdade que o estado de emergência cerceará imediatamente será a de circularmos nas ruas. Poderemos já quinta-feira ficar sujeitos a multas ou eventualmente prisão por nos desviarmos do caminho normal para o caixote do lixo. Pois, tenham paciência: não podemos dar este poder ao Estado de ânimo leve. Um dia, que desejo que venha o mais rapidamente possível, voltaremos a ter a liberdade, decidida por nós e permitida pelo Estado, que tínhamos até há menos de uma semana.

E mais: esta crise vai matar cem vezes mais empregos do que pessoas. Tão entretidos que andamos a pedir mais autoridade do Estado, talvez devêssemos parar um pouco para pensar nas pessoas que perderam o emprego já ontem (logo no primeiro dia efectivo de limitação de liberdades), e que perderão o emprego ou verão o salário reduzido nestas próximas semanas.

Se os governos nos querem fechados em casa ou em teletrabalho (este é um privilégio de intelectuais), que nos dêem um desconto significativo na factura da electricidade e eventualmente na do gás ou das telecomunicações. E que protelem legalmente o pagamento de empréstimos e hipotecas, enquanto a crise sanitária durar. Nem todos temos salários fixos, contratos de trabalho ou sequer papéis escritos que garantam um rendimento. O que se está a fazer terá consequências tremendas, e sociais muito mais rapidamente do que julgam.

Repito: podemos estar em quarentena sem ir presos por a infringir. Basta bom senso. Pensem duas vezes antes de dar ao Estado o privilégio de nos retirar liberdades que custaram a garantir.

sábado, 7 de março de 2020

O ISDS poderia ser aceitável?

Quando os sistemas ISDS surgiram, eles não permitiam o tipo de “assaltos” às finanças públicas de governos interessados em proteger o ambiente, a saúde pública, os direitos laborais ou outros valores fundamentais que viemos a conhecer nas últimas décadas.

Ao  invés, os tratados limitavam-se a salvaguardar o investidor estrangeiro em caso de expropriação (directa e arbitrária) sem devida compensação. Subjacente à ideia estaria a noção de que, mesmo que as leis do país oferecessem protecções à propriedade privada que deixassem o investidor confortável, este não poderia contar com os tribunais desse país para aplicar essas mesmas leis, na medida em que a independência dos mesmos não estaria assegurada. O tribunal poderia estar sujeito ao poder executivo, o que deixaria o investidor sem adequado recurso e sujeito à arbitrariedade do governo.

Nestas circunstâncias, o investidor abdicaria de investir, o que seria supostamente pior para o país em causa. Para evitar esta situação, o país assinaria um acordo internacional que garantiria uma forma de indemnizar o investidor em caso de arbitrariedade grosseira, sendo que a avaliação dessa situação não estaria nas mãos do governo ou do poder legislativo, mas sim de uma terceira parte que faria cumprir adequadamente o acordo - tipicamente três árbitros pagos ao caso, um escolhido por uma parte, outro pela outra e um terceiro de comum acordo.

Sabemos como é que a história continuou, movida pelo conflito de interesses no cerne do sistema: os árbitros, por serem pagos ao caso, beneficiam pessoalmente de mais queixas, sendo que no ISDS elas só podem partir dos investidores, pelo que se os árbitros derem razão aos investidores recolherão benefícios pessoais - estão a ser “juízes em causa própria”. Assim, com o passar das décadas, os termos vagos dos tratados internacionais foram sendo interpretados de formas sucessivamente mais amplas e favoráveis aos investidores. É aí que surge e se expande o conceito de “expropriação indirecta” segundo o qual leis que possam afectar os lucros futuros do investidor também são passíveis de gerar avultadas indemnizações. À medida que o sistema se foi tornando mais favorável aos investidores, o número de queixas por via dos sistemas ISDS foi aumentando sucessivamente, apresentando um crescimento explosivo.



Parece inequívoco e evidente que o sistema ISDS tal como existe hoje é disfuncional, absurdo e muito pernicioso. A amplitude ideológica da oposição é tremenda (deste as forças anti-capitalistas, aos sectores mais conservadores e sectores mais "pró-mercado", passando por forças moderadas à esquerda e à direita) e mesmo a revista Economist escreveu: «Se a sua intenção fosse convencer o público de que os acordos comerciais internacionais são uma forma das empresas multinacionais ficarem ricas à custa da população em geral, eis o que poderia fazer: conceder às empresas estrangeiras o direito extraordinário de aceder a um tribunal secreto, de advogados empresariais altamente remunerados, pedindo indemnizações sempre que um governo aprovasse uma lei para, por exemplo, desencorajar o hábito de fumar, proteger o meio ambiente ou impedir uma catástrofe nuclear. No entanto, isso é precisamente o que fazem milhares de tratados de comércio e investimento ao longo do último meio século, através de um processo conhecido como “Resolução de litígios entre investidor e estado” ou ISDS.»

Sendo tão claras as falhas do sistema ISDS, tal como ele existe (que é a questão relevante do ponto de vista político), coloca-se uma questão que pode ser politicamente irrelevante no actual contexto, mas parece mais interessante do ponto de vista meramente intelectual: será que o sistema ISDS, se fosse fiel ao seu propósito original, seria um sistema desejável e benéfico?

Acredito que não. Mesmo que sucessivos abusos não tivessem distorcido o sistema ultrapassando todos os limites do razoável, ele continuaria a ser indesejável.

Na realidade, o sistema original pretendia responder a um grave problema institucional (a alegada falta de independência dos tribunais face ao poder executivo) enfraquecendo ainda mais as instituições do país (por um lado, enfraquecendo o poder legislativo, por outro lado limitando os mecanismos de prestação de contas) e sob processos ainda menos transparentes e escrutináveis.

Pior, este sistema, na melhor das hipóteses, anularia um potencial incentivo importante para a independência e solidez de instituições cruciais, já que - graças a esse sistema - o investimento chegaria em qualquer dos casos, houvesse ou não houvesse independência do sistema de justiça.

Na pior das hipóteses (e que muita investigação empírica sugere ser mais realista), este sistema atrairia precisamente o tipo de investimento mais predatório e especulativo, aquele que menos contribuiria para o desenvolvimento do país, podendo mesmo prejudicar a sua economia.

É natural que muitos não me acompanhem nesta apreciação. É possível rejeitar sem hesitações o ISDS tal como existe hoje, mesmo acreditando que o propósito original não era tão nefasto. Ainda assim, concedendo que cerca de 99% dos problemas do ISDS resultam da enormidade dos abusos que o sistema sofreu ao longo das últimas décadas, creio ter boas razões para fundamentar a minha rejeição do propósito original do sistema.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

A necessidade de um «cordão sanitário» contra a extrema-direita em Portugal

Na quarta-feira, o parlamento do Estado alemão da Turíngia elegeu um presidente de governo com o apoio da extrema direita: Thomas Kemmerich, um liberal, contou na terceira volta com os votos dos democratas cristãos da CDU mas também com os votos da AfD, os extremistas anti-imigração e anti-europeístas.

No dia seguinte, Angela Merkel falou a partir da África do Sul: disse que a eleição de Kemmerich fora «um acto imperdoável», «um mau dia para a democracia» e que se deveria deixar claro que «aquilo que a CDU acredita não pode ser associado à extrema-direita». Funcionou: o presidente do governo da Turíngia demitiu-se antes do final do dia.

O consenso dos partidos democráticos alemães é portanto que a AfD, mesmo continuando um partido legal, deve ser mantido afastado dos centros de decisão, isolado por um «cordão sanitário». O termo usa-se há décadas na Bélgica, onde implica desde a condenação parlamentar dos atentados aos Direitos Humanos contidos no programa dos extremistas, até à exclusão dos media dos protagonistas do extremismo anti-democrático. Em França, fala-se em Frente Republicana para designar os acordos que permitem que na segunda volta das eleições locais ou nacionais (decididas em círculos uninominais), se evite a eleição de autarcas ou deputados da Frente Nacional, através de desistências cruzadas da esquerda ou da direita democráticas a favor do candidato mais bem colocado. Em Espanha, ainda esta semana PSOE e PP puseram-se de acordo para excluir o VOX das mesas das comissões parlamentares, por questão de «higiene democrática».

Não é cedo para começarmos a falar em Portugal de fazer um cordão sanitário constituído pelos partidos democráticos e que isole a extrema direita. Para começo de conversa, temos que nos deixar de politicamente correcto e chamar os bois pelos nomes: o Chega e André Ventura são extrema-direita. É essa a designação da sua ideologia que deve ser usada por políticos, comentadores e órgãos de comunicação social. Em segundo lugar, não pode haver lugar para protagonismos do candidato a caudilho em programas simpáticos de TV ou nesses programas de bola que elevam a virtudes o sectarismo e o fanatismo (acrescento que a cultura futeboleira tem uma auto-crítica profunda a fazer, que deve começar pelo papel que desempenha na promoção de um discurso político tribalista e anti-republicano). Em terceiro lugar, os partidos democráticos devem comprometer-se a não dar lugar à extrema-direita em coligações, arranjos de governação (mesmo que locais), ou muito menos no governo da República.


Os sinais, para já, não são animadores: Rui Rio diz que «é um bocadinho exagerado classificarmos o Chega de fascista ou de extrema-direita» e não toma partido perante o racismo, Morais Sarmento que o Chega «faz falta», e Pinto Luz que está disponível para alianças com o Chega. Quanto ao CDS, deu um sinal negativo ao eleger um dirigente simpatizante da Frente Nacional e mais explicitamente salazarista do que alguma vez tivera, e um sinal positivo quando o mesmo se demitiu. PSD e CDS teriam muito a aprender com o exemplo de Merkel.

É certo que há personalidades isoladas à direita - de quem muito me separa - que já perceberam que há um abismo civilizacional entre a direita democrática e a extrema direita. Também muito me separou de Angela Merkel durante a troika, mas reconheço que esta semana foi antifascista. A partir de agora, há que distinguir muito bem o que são debates entre esquerda e direita - que podem ser sensatos e construtivos - sobre o Estado social, o papel da escola pública, a política fiscal e os direitos laborais, de ideias políticas que atacam direitos fundamentais e portanto estão para lá de uma fronteira civilizacional, como é o caso da pena de morte, da castração química, da deportação de deputados negros ou da estigmatização de minorias étnicas. O PSD, o CDS e a IL têm que definir de que lado da fronteira entre a civilização e a extrema-direita é que estão. Para começar, se aceitarão fazer coligações autárquicas em Outubro de 2021 com a extrema-direita, e se contam governar com o seu apoio. Ou se até lá continuarão a fazer de conta que não vêem o monstro que está mesmo à frente dos seus olhos.

domingo, 5 de janeiro de 2020

A minha Santarém: Cisterna do Convento de Nossa Senhora da Piedade -...

A minha Santarém: Cisterna do Convento de Nossa Senhora da Piedade -... Sou arqueólogo e estou interessado no passado de Santarém. Tenho recolhido livros e artigos sobre a cidade e, naturalmente, informação da internet. E vinha-lhe perguntar onde era este convento da Piedade, que não consigo encontrar em lado nenhum.



Com os melhores cumprimentos,

Filipe Castro