terça-feira, 20 de novembro de 2018

Numa República não há etnias, só cidadãos

A reivindicação de movimentos e personalidades anti-racistas de que os censos nacionais incluam uma questão sobre a pertença étnica (ou até “racial”) está a ser ponderada pelo governo. O argumento é que a recolha desses dados sobre a totalidade da população portuguesa permitiria conhecer melhor as desigualdades que prejudicam desproporcionalmente os cidadãos de origem africana ou cigana. Todavia, essas desigualdades já foram e são documentadas numa grande variedade de estudos, científicos e outros, que permitem inclusive abordar um conjunto de questões mais vasto e obter um conhecimento mais preciso e aprofundado do que é possível obter através das questões censitárias. Para além disso, não se pode concluir que todas as desigualdades entre grupos se devam à discriminação ou ao racismo estrutural, da mesma forma que uma posição social relativamente favorável de uma minoria (por ex., judeus ou goeses) não indica ausência de discriminação contra esse grupo. Finalmente, a própria categorização “racial” e étnica, não tendo uma base objectiva, nem social, nem biológica, é muito mais vaga e sensível ao contexto do que uma classificação censitária poderia indicar.

Neste quadro, o Estado exigir aos dez milhões de residentes em Portugal que se identifiquem etnicamente ou “racialmente” implica renunciar ao objectivo de que a República seja cega, surda e muda quanto à etnia de cada cidadão. Porque, a ser assim, cada um de nós será confrontado em 2021 num questionário estatal com a definição das suas características étnicas, ou seja, racializado (mais ainda se o questionário não permitir a recusa de responder). Não é crível que incentivando a identificação étnica nos aproximemos de uma sociedade cega à etnia de cada um e igualitária no tratamento (acrescente-se que a premissa de que as minorias ambicionam visibilidade associada à sua identidade étnica ou racial carece de demonstração). Pior, abre-se as portas de par em par à racialização da própria política, quer através de políticas de “acção afirmativa”, quer pela simples legitimação oficial das identificações racializadas, inclusive com o grupo maioritário, tornando identidades frequentemente implícitas em identidades explícitas e assumidas. Isto provavelmente activaria comparações interétnicas de justiça no tratamento desigual pelas políticas de apoio estatal, fornecendo assim o combustível – assim como o quadro categorizador legitimado – aos populistas autoritários de cariz racista. Arrisca-se, portanto, a produzir o efeito contrário às (boas) intenções dos proponentes dessas medidas.

O racismo é certamente um problema social que tem de ser combatido, mas acreditamos que esse combate requer medidas universalistas como a nacionalidade baseada no direito de solo e não no direito de sangue, a educação para contrariar os estereótipos e preconceitos raciais e étnicos, e a punição efectiva da discriminação racial e étnica no acesso a bens e serviços. Mas, para promover efectivamente esse universalismo, as políticas de combate à exclusão social e pobreza não podem promover a diferenciação étnica.

Os censos incluem desde 1980 uma pergunta sobre religião (com categorias bastante contestáveis), que não tem impedido a manutenção da discriminação positiva da maior comunidade religiosa, aliás formalizada num documento de privilégio próprio (a Concordata). E é também possível que em Portugal, no futuro (tal como já acontece em vários países europeus), a pertença religiosa venha a ser uma questão tão sensível como a identidade étnica ou “racial”. Se, em defesa da privacidade dos cidadãos e da desejável ignorância da República sobre a religião de cada indivíduo, seria preferível que essa questão não existisse nos censos, também é preferível não introduzir uma questão que obrigue ou incentive os cidadãos a identificar-se com uma etnia ou “raça”.

(Ricardo Alves e Rodrigo Brito, Associação República e Laicidade, Público, 19/11/2018)

domingo, 4 de novembro de 2018

O Brasil não vai dar certo

O maior movimento socio-eleitoral que permitiu a vitória de Bolsonaro foi a evaporação do centro-direita brasileiro. Desde 1994(*), o PSDB ou elegera presidentes (FHC) ou estivera na segunda volta (para perder com o PT). Conseguira habitualmente 30% ou 40% numa primeira volta (o mínimo foi 23%  em 2002). Este ano Alckmin teve menos de 5% - com Bolsonaro a chegar aos 46%. A grande questão é portanto como os votos que habitualmente iriam para a direita moderada se condensaram na extrema direita. Porque o PT perder o poder para o PSDB depois de quatro vitórias consecutivas seria apenas a alternância normal numa democracia. Perdê-lo para um extremista é que coloca em perigo a paz social no Brasil e talvez a própria democracia.

Há três palavras com a mesma inicial que podem explicar a derrota do PT: crise, corrupção e criminalidade. Os governos do PT permitiram retirar da pobreza milhões de pessoas. Mas a partir do primeiro mandato de Dilma, as manifestações populares mostravam já que o governo não satisfazia as expectativas de todos, e o decrescimento do PIB em 2015 e 2016 veio tirar margem de manobra ao governo. A corrupção foi a arma principal das forças que quiseram retirar o PT do poder, coadjuvadas por um poder judicial usado perversamente. Da desorçamentação da despesa de Dilma Rousseff aos casos de corrupção propriamente dita de ministros petistas como Palocci ou Dirceu, todo o PT foi considerado culpado de corrupção por associação. Assim se transformou a luta contra a corrupção numa caça às bruxas em que não bastava já correr com o PT, era necessário mesmo virar o sistema do avesso. Finalmente, o Brasil tem uma taxa de homicídios quase cinquenta vezes maior do que Portugal (e cinco vezes maior do que os EUA). É compreensível que as pessoas esperem do governo nacional que resolva um problema que põe em causa a sua própria sobrevivência física, e o crime é dos poucos assuntos em que Bolsonaro tem um programa coerente (mesmo que monstruoso). Em resumo: a crise não foi suficiente para que o PSDB derrotasse Dilma em 2014, a corrupção foi uma maré que levou o próprio PSDB, e só Bolsonaro personalizava quer o antipetismo quer a preocupação com o crime.

Perante tudo isto, o PT cometeu um erro histórico ao manter Lula como candidato até um mês antes da eleição presidencial. Num ambiente dominado pelo combate à corrupção (e mesmo que essa acusação seja injusta no caso de Lula), dificilmente um candidato acusado de corrupção venceria. Muito mal está qualquer partido político que faça depender o seu sucesso da sorte de um único indivíduo. O culto de personalidade pagou-se muito caro no Brasil.

A terminar: o que se seguirá no Brasil? Provavelmente, violência de rua não dirigida pelo Estado (mas incentivada pelos pronunciamentos de Bolsonaro), e limitações da liberdade de associação e de expressão por via legislativa. Eventualmente, uma lucrativa venda da Amazónia e mais privatizações. Um Estado autoritário, mas não uma ditadura no sentido clássico. Tirania da maioria sobre as minorias, sem dúvida. Ainda maior judicialização da política, é possível. Bolsonaro, ao contrário de Trump, é um extremista de direita. O Brasil não vai dar certo.