domingo, 30 de abril de 2017

O fim da política unidimensional?

Após cinco dias de silêncio, Jean-Luc Mélenchon falou finalmente sexta-feira sobre a segunda volta da eleição presidencial. Mas falou para dizer muito pouco: que vai votar, mas que não dirá o que vai votar; e pior ainda, que não diz como vota para evitar divisões no seu movimento.

Estamos portanto no momento histórico em que o candidato de esquerda mais votado na primeira volta da eleição presidencial francesa não assume que votará na «finança extrema» contra a «extrema-direita» (palavras dele). Como explicar? Compreende-se a amargura de ter sido eliminado por pouco, mas as suas referências políticas podem ter mudado. A prova circunstancial da mudança fica na figura seguinte: no momento em que escrevo, o conjunto das sondagens indicam que o eleitorado de Mélenchon é muitíssimo mais permeável a Le Pen do que o de Hamon, com as percentagens dos seus votantes que pretendem votar Le Pen bem mais perto dos resultados no eleitorado de Fillon. Numa lógica de oposição esquerda-direita, isto não faz sentido. Mas faz sentido num contexto em que o referencial unidimensional esquerda-direita se cruza com o eixo nacionalismo-europeísmo.


Aliás, e como tem sido sublinhado, os dois candidatos que passaram à segunda volta da eleição presidencial francesa representam uma clivagem que não é a (tradicional mas não defunta) entre esquerda e direita: Macron representa um europeísmo neoliberal e Le Pen o nacionalismo autoritário. Os candidatos do centro-esquerda e do centro-direita, relativamente moderados em qualquer dos eixos acima referidos, foram eliminados. A polarização na segunda volta é portanto (para uma maioria de eleitores?) entre nacionalismo e europeísmo, e estará aí a explicação para o eleitorado anti-sistema de Mélenchon incluir um sector que, em termos tradicionais, passará da extrema-esquerda à extrema-direita em duas semanas. E daí a ambiguidade de Mélenchon, todavia irresponsável e perigosíssima.

O novo referencial político bidimensional tem um enorme problema: dificilmente se imagina uma alternância entre europeístas e nacionalistas semelhante à que existiu até agora entre (centro-)esquerda e (centro-)direita - a permanência na União Europeia é binária, não é tão fluida como negociar mais estado social ou mais liberalismo económico. E portanto um voto Le Pen terá consequências irreversíveis, piores do que a Brexit, também porque esta polarização enfraquece o «cordão sanitário» ou «pacto republicano» que impedia a Frente Nacional de aceder ao poder. O que se nota ao contrastar o ambiente desta semana em França com o de 2002, quando ninguém à esquerda da Frente Nacional hesitou: era necessário votar «no escroque contra o fascista», e houve até gigantescas manifestações de rua unitárias. Quinze anos depois, não apenas há movimentos e personalidades da direita não FN que apelam ao voto em Marine Le Pen, como a esquerda perdeu uma semana com os pruridos de Mélenchon. O resultado lógico é que enquanto Jean-Marie Le Pen adicionou um magro ponto percentual na segunda volta ao seu resultado da primeira volta, este ano Marine Le Pen espera ter na segunda volta aproximadamente o dobro do resultado percentual da primeira volta. E todavia, Macron é mais centrista em questões económicas do que Chirac era no seu tempo, e é até um progressista em questões de direitos individuais. O que reforça a conclusão de que para Mélenchon e o seu movimento, a oposição principal talvez já não seja esquerda-direita nem democracia-fascismo, mas sim nacionalismo-Europa ou «povo-elites».

Pessoalmente, tenho dificuldade em situar-me num eixo que joga com adesões emocionais a identidades colectivas (como «Portugal» ou «Europa»). Prefiro aderir racionalmente. Também por isso, choca-me bastante quem acha preferível partir tudo para que algo mude, sem perceber a segunda lei da Termodinâmica. Entre a xenofobia autoritária de Le Pen e o liberalismo democrático de Macron, não há que hesitar. Só o segundo garante que a democracia e a União Europeia não terminam aqui. E quer queiramos quer não, o mundo das fronteiras fechadas e do protecionismo não volta.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Os impactos económicos do CETA

Escrevi dois textos no jornal Tornado sobre os impactos económicos do CETA.

Num deles detenho-me sobre as estimativas que foram feitas sobre o seu impacto:

«Os relatórios que estudam o impacto do CETA na economia da UE, como um todo, foram produzidos ou encomendados pelos proponentes do tratado, o que poderia alimentar a suspeita de que, a existir algum enviesamento nas conclusões, ele seria num sentido favorável ao acordo.
[...] De facto, olhando para a metodologia seguida e para as assumpções de partida, várias opções dos autores parecem confirmar tais suspeitas.

[...]

Apesar de todas estas opções metodológicas questionáveis, os estudos prevêem um impacto muito reduzido no Produto Interno Bruto da União Europeia. O «Joint Study» prevê um aumento de 0.08% no PIB, enquanto o SIA estima um valor

entre os 0.02% e 0.03% dependendo dos detalhes do acordo. Note-se que estes valores não se referem ao impacto no crescimento do PIB, mas sim ao impacto total no nível do PIB. São, como é claro, valores perfeitamente residuais que nunca justificariam todas as ameaças ao estado de direito, à soberania democrática, à privacidade dos cidadãos europeus, à coesão social, à sustentabilidade ambiental, à saúde pública e outras que este acordo implica.

Por outro lado, mais um aspecto não contemplado nestes estudos é o dos custos orçamentais do acordo. [...] Devemos também ter em conta que nenhum dos estudos mencionados considera as assimetrias regionais [...].

Se as externalidades ambientais associadas ao significativo volume de negócio acrescido fossem contabilizadas, a redução do PIB estimada talvez não estivesse tão próxima do «ruído estatístico» como acontece com as actuais estimativas de aumento. Se fossem tomadas em consideração a criação de assimetrias regionais ou o agravamento de desigualdades salariais, seria evidente que, mesmo do ponto de vista estritamente económico, este acordo é injustificável.

Mas se não pensarmos na economia como um todo, e sim nos potenciais benefícios para as grandes multinacionais, torna-se muito mais fácil compreender o envolvimento destas no processo de redacção e negociação do acordo, e a enorme pressão política para contrariar o interesse dos cidadãos.»

O outro texto que escrevi sobre o mesmo assunto foca o impacto económico do NAFTA nos EUA:

«[...] Os benefícios do NAFTA para a economia dos EUA foram, de acordo com as mais recentes estimativas (por Lorenzo Caliendo e Fernando Parro em 2014), de um «bem-estar» médio acrescido de 0.08% (associados a um aumento de 41% no volume de comércio).

Ao mesmo tempo, a análise empírica mais detalhada aos efeitos do NAFTA no mercado de trabalho (por Shushanik Hakobyan e John McLaren em 2016) mostra que os impactos salariais negativos entre a mão-de-obra não qualificada chegaram a atingir os 17%. Ou seja: o NAFTA gerou um aumento muito significativo do volume de comércio internacional, ganhos de eficiência quase insignificantes, mas teve um impacto muito perverso entre as comunidades mais afectadas, agravando assim as desigualdades. [...]»

Às informações do texto vale a pena acrescentar que o México viu a sua taxa de pobreza agravar ligeiramente entre 1994 (52,4%) e 2014 (53,2%), durante um período em que os restantes países da América Latina viram uma redução substancial da sua taxa de pobreza.

Post também publicado no Espaço Ágora.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

O mistério do terrorismo incolor e inodoro

O terrorismo do daesh e da Al-Qaeda na Europa é tremendamente diferente de vagas terroristas anteriores, nomeadamente as dos anos 70 e 80? Sim e não.

Não, porque é terrorismo: uso da violência contra civis por organizações não estatais para atingir objectivos políticos, por exemplo territoriais. 

Sim, porque tem causado menos vítimas (ver o gráfico acima) e porque usa meios muito diferentes: o IRA e a ETA do século passado plantavam explosivos sofisticados de grande potência em alvos seleccionados e telefonavam a avisar; enquanto os terroristas islamistas do século 21 usam camiões contra multidões e bombistas suicidas em transportes públicos em hora de ponta.

A reacção pública tem no entanto uma tremenda diferença, já visível há dez anos com a Al-Qaeda, mas claramente hegemónica hoje em dia: nos anos 70 e 80, ninguém negava que o IRA pretendia a unificação da Irlanda, a ETA a independência do País Basco, e as Brigadas Vermelhas um Estado comunista; pelo contrário, face ao islamofascismo há uma negação veemente de que pretendam o que dizem pretender. Muitos políticos, comentadores ou cidadãos das redes sociais nos juram que o «Estado Islâmico» não é islâmico, que os seus soldados são falsos muçulmanos, e quando forçados a explicar-nos o que pretende o daesh, tergiversam ou dizem-nos que são meros «delinquentes», «animais», «bestas», e que apenas pretendem matar por matar, aterrorizar por aterrorizar.

Não tenho qualquer problema em chamar criminosos, vermes e outros termos afins aos energúmenos do daesh. Até alivia a raiva (temporariamente). Mas o problema de fundo permanece: o que quer o daesh? E a pergunta não é nada fútil, porque só compreendendo os nossos inimigos os podemos derrotar (compreender, sublinhe-se para evitar equívocos, não é aceitar e muito menos desculpar). Ao reduzir o daesh a um mero grupo de criminosos que praticam a violência pela violência, o que se está a fazer é desumanizar o inimigo (natural), mas também negar-lhe razões e motivações próprias (irrealista). Mas só compreendendo o que motiva quem adere ao daesh poderemos conseguir que deixem de colaborar com essa organização e cometer atentados. A recusa de pensar, que já vai em pedidos de «blackout informativo», não conduz a nada de bom. A pior maneira de lidar com um problema é negar que existe.

Sejamos rigorosos: em 2015-16 morreram mais pessoas por ataques terroristas na Europa ocidental do que em qualquer biénio desde 1991-92. Portanto, a tranquilidade a que nos habituáramos diminuiu (até ver). Os ataques são reivindicados por uma organização que dá instruções via internet (os «lobos solitários» têm uma boa parte de mito), e que prosseguiu, no Iraque e na Síria, uma estratégia de conquista territorial bastante clássica. Os terroristas actuais são quase todos do sexo masculino, entre os 20 e os 45 anos, e islamofascistas (as excepções foram etnonacionalistas como Breivik ou alguns nazis). Presumivelmente, os ataques servem fins de propaganda num contexto em que o daesh está a perder território e cada vez consegue menos recrutas. Não se deve fazer nada e esperar que o daesh desapareça na irrelevância? Foi o que fizemos com a Al-Qaeda, e não resultou: seguiu-se o daesh.

A alternativa é combater ideologicamente o fundamentalismo islâmico aqui, agora e durante uns bons anos. Explicando que a religião não pode ser o centro da definição das políticas, nem da estruturação da cidadania. E por outro lado que o Islão, quando vivido pacificamente, merece ser tratado como as outras religiões: com os mesmos direitos e a mesma não imunidade à crítica. Mas para fazer isso, registe-se, há que começar por admitir que o terrorismo actual não é inodoro nem incolor.