domingo, 18 de dezembro de 2011

O poder de mercado e a mão de obra - I

Num mercado perfeito, com infinitos produtores e consumidores de um determinado produto e sem quaisquer barreiras à entrada, o lucro económico esperado (já descontando custos de oportunidade) pela produção é nulo. O bem é transaccionado a um preço que por um lado reflecte a oferta e a procura, e por outro sinaliza aos agentes a forma mais eficaz de alocar os seus recursos, de tal forma que sobrevivem aqueles produtores com a dimensão e métodos mais eficientes, tudo na proporção certa para maximizar os valores de todos os agentes. Transacciona-se a quantidade óptima ao preço óptimo. É a mão invisível do mercado.

Claro que há poucas semelhanças entre esta abstracção teórica e a realidade. Entre muitas outras diferenças, no mercado perfeito assume-se que cada produtor e cliente tem um poder de mercado nulo. No mundo real, o poder de mercado dos produtores é frequentemente muito significativo, e em algumas situações o dos clientes também.
Quem tem maior poder de mercado transacciona a preços diferentes daqueles que ditariam a maximização do valor para todos. Se o produtor detiver maior poder de mercado, venderá menos do que a quantidade óptima, e venderá a preços superiores. Se for o comprador aquele que possui maior poder de mercado, comprará menos do a quantidade óptima, a um preço inferior ao preço óptimo. O máximo de poder de mercado para o produtor atinge-se na situação de monopólio, cujos prejuízos para o bem comum são conhecidos por todos. O máximo poder de mercado para o cliente atinge-se na situação de monopsônio.


Diagrama relativo à transacção de horas de trabalho. Explicação detalhada no fim do texto.

O mercado, entregue a si próprio, tende a evoluir no sentido do aumento da concentração do poder de mercado. Um produtor que compre o negócio de outro poderá aumentar a riqueza de ambos, visto que o lucro dos negócios na mão do mesmo proprietário é superior ao seu lucro conjunto em situação de concorrência, pese embora a dimensão conjunta não ser a mais eficiente.
Quem acredita que o mercado se auto-regula tende a acreditar que esta concentração do poder de mercado cria fortes incentivos à entrada de novos agentes - o lucro aumenta com a concentração do poder de mercado. Tal crença esquece que quem tem maior acesso ao capital (que é geralmente o caso de quem conseguiu maior poder de mercado) pode impedir a entrada no mercado de um novo agente através de uma política de preços suicida, que dure o suficiente para que o novo agente, se não for à falência, perceba que tem lucros superiores a fazer noutro sector. E isto poderia nem chegar a acontecer: o agente não entraria num mercado lucrativo para não se envolver numa guerra de preços, preferindo investir noutro negócio.

As leis que existem que impedem a prática de preços inferiores ao custo de produção, a cartelização, e a excessiva concentração da produção de um determinado bem são tudo leis essenciais que testemunham a necessidade de regular o mercado. Apesar de evitarem extremos, elas não impedem que os agentes económicos detenham frequentemente um poder de mercado não negligenciável.

Um exemplo relevante desta situação é o da compra de mão de obra.


PS- Sobre a figura desenhada acima:
O eixo vertical corresponde ao preço a que é transaccionada a hora de trabalho, e o eixo horizontal corresponde à quantidade de horas de trabalho transaccionadas. A linha azul é a linha da oferta: quanto maior o salário, mais horas de trabalho estão disponíveis para venda. A linha vermelha é a linha da procura: quanto menor o salário mais horas de trabalho encontram comprador. w' é o salário óptimo. Nesse ponto o compradores (empregadores) ganham um valor que corresponde à área entre a linha vermelha, o eixo vertical e a linha a tracejado, e os vendedores (trabalhadores) ganham um valor que corresponde à área entre a linha azul, o eixo vertical e a linha a tracejado.
Se os compradores tiverem o  monopsônio, podem determinar o salário a que transaccionam, e vão escolher o preço que maximiza o seu valor: neste caso é w: perdem a parte a amarelo acima do tracejado, mas ganham à custa dos trabalhadores toda a parte a cinzento, portanto ficam a ganhar. Os trabalhadores não só perdem essa parte a azul claro, como ainda perdem a parte a amarelo abaixo do tracejado. No total, o conjunto dos dois perde toda a parte a amarelo.
O benefício em que o comprador incorre por deter o monopsônio é inferior ao prejuízo que causa aos vendedores, e isso ocorre também na transacção de mão de obra.

15 comentários :

Ricardo Alves disse...

Parece-me útil que desenvolvas mais esse conceito de «poder de mercado». Os «neoliberais» falam sempre como se todos os agentes no mercado tivessem o mesmo poder.

NG disse...

Ó João Vasco,
É precisamente o excesso de regulamentação e burocracia que aumenta o poder de mercado dos poucos agentes sobreviventes. Não são estruturas pulverizadas que conseguem conviver com a pesada indústria legislativa e regulamentar de Bruxelas. Têm que ser empresas capazes de contratar os grandes escritórios de advogados que as defendam da hiper-regulação que os próprios, na sua transfega de pessoal com a política, ajudaram a redigir. Acho já lhe disse isto algumas vezes: A economia, como a biologia, evolui enquanto houver diferenças. A consanguinidade tarde ou cedo dá para o torto. Tudo o que promova diferença é benéfico. Acho que, para isso, menos regulamentos são mais favoráveis do que mais regulamentos.

Ricardo Alves disse...

Nuno Gaspar, quem tem mais capital tem mais poder de mercado, quem tem um monopólio também. São factos.

João Vasco disse...

Nuno,

Que alguma regulamentação é útil suponho que qualquer pessoa concorda, que o «excesso» de regulamentação é pernicioso é algo que decorre necessariamente da definição de «excesso».

A realidade é que tanto existe regulamentação em falta (por exemplo, o fim de regulamentações financeiras que limitavam a alavancagem foram parte da causa da crise de 2008) como em excesso (a ASAE fazia um bom trabalho porque a lei deve ser cumprida e aplicada, mas algumas leis que ASAE fazia cumprir nunca deveriam ter existido, e só a acção da ASAE pôs essa regulamentação excessiva a nu. Esse era um perfeito exemplo do uso de legislação para colocar entraves à entrada no mercado, perniciosa para a concorrência, e portanto de regulamentação excessiva).

Posto isto, parece-me que não existe nenhuma divergência a apontar quanto a estes princípios básicos.

João Vasco disse...

Ricardo,

Sim, nos próximos posts quero mostrar os impactos do «poder de mercado» na transacção de mão de obra, e porque é que o declínio dos sindicatos prejudicou as pessoas.

NG disse...

"quem tem mais capital tem mais poder de mercado, quem tem um monopólio também. São factos."

Não são factos, Ricardo.São sinónimos. O que interessa é saber o que conduz a monopólios e o que conduz a dispersão de mercado. Autoridades da Concorrência e Entidades Reguladores de Mercado são adereços para inglês ver e cadeiras para ocupar uns amigos em mercados já monopolizados, onde toda a academia e literatura apenas produz no registo "fusões e aquisições". Desregular, desburocratizar,informalizar, podem ser factores de introdução de variedade.

João Vasco disse...

«Desregular, desburocratizar,informalizar, podem ser factores de introdução de variedade.»

Caso se desregule o que se deve desregular. Se não, acontece como nos EUA onde as mortes em minas dispararam com o fim das regulamentações que obrigavam a indústria a tomar certas medidas de segurança.
Porque se não existe um controlo democrático atento, e são os amiguinhos que fazem favores uns aos outros, seja a regular ou a desregular, são sempre os poderosos a ganhar. Neste caso concreto, esses lucros foram pagos com sangue.

José M disse...

pequena nota: a imagem carece de legenda

João Vasco disse...

Já acrescentei :)

Miguel Carvalho disse...

"O mercado, entregue a si próprio, tende a evoluir no sentido do aumento da concentração do poder de mercado"

esta frase carece de alguma argumentação. por exemplo, o "mercado mais velho do mundo" que, tal como o nome indica, exista há milénios não tendeu ainda para uma concentração do mercado.
e obviamente que há muitos outros exemplos mais.. "modernos"

João Vasco disse...

Miguel,

No post exponho como é que a concentração tende a surgir.

Esse mecanismo torna-se muito mais determinante para negócios do tipo «capital intensivo». Por isso escolheste um contra-exemplo que está no extremo oposto. Mas mesmo aí existe alguma concentração... As redes organizadas de prostituição representam uma fatia cada vez maior no negócio da prostituição de acordo com o livro «O lado obscuro da economia».

Miguel Carvalho disse...

Também poderia escolher um exemplo de um mercado intensivo em capital. Sei lá... padarias.

De qualquer modo o que queria sublinhar é que essa tendência para a concentração não é assim tão clara - ao contrário do que muitas vezes se escreve.

João Vasco disse...

Miguel,

Ou muito me engano ou no mercado da panificação também ocorreu alguma concentração nos últimos anos (já não sei onde vi esses dados).

Além disso, lembro-me que a ASAE andou a investigar umas suspeitas de cartel (há coisa de 4-6 anos).

Miguel Carvalho disse...

As pastelarias então...

(cartel e concentração são coisas diferentes... o que é importante neste caso concreto. No caso das suspeitas de cartel eram devido a suspeitas de combinação de preços, o que pode acontecer com 2 ou mil empresas)

João Vasco disse...

«No caso das suspeitas de cartel eram devido a suspeitas de combinação de preços, o que pode acontecer com 2 ou mil empresas»

Pode acontecer com mil, mas é muito mais difícil do que com duas...