- «No de Dickens, Ebenezer Scrooge transforma-se radicalmente. Aprende quanto pode fazer por si e pelos outros e, com isso, torna-se numa pessoa melhor. O João César das Neves não é um Charles Dickens, obviamente, mas também não era preciso fazer o oposto. Num texto apressado, conta como um tal André lida com a crise: «Queres saber o segredo da minha calma? Queres saber como consigo não ficar desesperado? É que o meu Pai é dono disto! […] Estou a referir-me Àquele a quem digo todos os dias ‘Paí Nosso’, que é dono de tudo o que tenho e sou, de tudo o que vejo e existe no universo. Nada me preocupa porque Deus é dono da minha vida. A confiança em Deus é a melhor coisa da existência.»(1) A mensagem parece ser que, ao contrário do que se passou com Scrooge, o melhor para nós é aceitar tudo como é: «esta crise tem me feito muito bem. Ao princípio assustou-me, mas um dia percebi que acima dela está Deus [e] desde que Lhe entreguei, mais uma vez, a minha vida senti uma liberdade e alegria profundas [...] ‘Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus’ (Rm 8, 28)».
Além de promover a bovinidade, a historieta salienta algumas inconsistências do fatalismo cristão. O André não se preocupa porque o seu “Pai” está encarregue de tudo, mas também não estranha que o “Pai” trate os filhos de forma tão injusta. É difícil imaginar que um pai fique indiferente ao filho que passa fome numa cubata na Somália enquanto outro vive luxuosamente num chalé suíço. Pior, esse tal André diz-se descansado da vida porque «se ao Seu Filho Deus deixou que nós O crucificássemos, tudo o que eu sofrer é pouco». Chiça. Felizmente sou ateu e não acredito ser filho de um pai desses. Senão é que andava aterrorizado.(...)
A crença pessoal num deus, na vida depois da morte ou afins é um direito de cada um e não faz grandes estragos. Mas, à volta disso, há sempre quem invente religiões para controlar os outros, disfarçar injustiças e ir mantendo tudo como lhes convém. Promessas de paraíso além-morte, o pai celestial que criou o universo mas precisa que se gaste dinheiro em igrejas imponentes e luxos para os seus representantes, e a ideia de que os miseráveis têm muita sorte por sofrer, são tudo embustes. O ateísmo tem a grande vantagem de nos inocular contra tais aldrabices, e encorajar-nos a enfrentar os fantasmas dos natais futuros como algo que temos o dever de tornar tão bom quanto pudermos. Se o André da historieta não se preocupa, isso não é sinal de fé. É sinal de irresponsabilidade.» (Ludwig Krippahl)
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
Revista de blogues (20/12/2011)
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5 comentários :
Tiveste a mesma ideia que eu. Por instantes o ER teve dois posts seguidos a citar esse texto do Ludwig :)
Mas acho que omitiste precisamente a parte que citei, que me parece a mais política:
«Quem se diz infalível, vive num palácio e veste roupa bordada a ouro tem de louvar a humildade e a pobreza. Ponham a vida nas mãos deste deus, dizem, e dêem graças pelas migalhas que vos calham. Sobretudo, portem-se bem.
Mas nós somos pessoas, não somos ovelhas, e esta crise não é obra dos deuses. Não é o nosso destino nem um teste para ganhar uma nuvem mais fofa no céu. É um problema humano, de actos e de atitudes. É o problema de estar tudo a mando de Scrooges e não de um “Pai” que nos ama a todos. E nota-se nos detalhes. Quem enaltece os mártires com histórias da carochinha não se martiriza a si próprio; quem elogia a pobreza não vive na miséria; e quem exorta a que cada um aceite, sorridente, a sua condição goza geralmente de condições melhores do que as dos outros. É a estes que convém a crença generalizada do destino como obra divina em vez de tarefa humana. Caso contrário, teriam de se assumir responsáveis por terem ficado com a maior parte daquilo que é de todos.»
«Nós somos pessoas, não somos ovelhas» teria sido o meu título de eleição.
Epá, não dei conta. ;)
Mas eu gosto dessa parte, só gosto muito desta frase: «É o problema de estar tudo a mando de Scrooges e não de um “Pai” que nos ama a todos.»
É que até posso achar que «um "Pai" que nos amasse a todos» seria uma coisa boa (o da Bíblia não é bondoso, mas o ponto não é esse). Simplesmente, prefiro um mundo em que cada ser humano tem que assumir as suas responsabilidades e fazer pela vida, ao invés de ter a protecção do tal «pai bondoso».
Queria dizer que NÃO gosto muito dessa frase do Ludwig.
Ah era uma frase...pensei que fosse um escarro no pater famiglia...desejo de pertença....etc etc
Zeus que corta o progenitor em fatias para não ser engolido pela figura pater na
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