terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O poder de mercado e a mão de obra - II

Geralmente as empregadas domésticas não são «exploradas». A compra e venda de mão de obra das empregadas domésticas acontece numa situação que se assemelha à do mercado perfeito: um grande número de compradores, um grande número de vendedores, pouca concentração da oferta, da procura, pouco poder de mercado.

No entanto, na transacção de mão de obra as coisas raramente se passam desta forma. Porque existe um limite ao número de horas que um indivíduo pode vender (inferior a 24h por dia) mas não existe limite ao número de horas que pode comprar (só o capital de que dispõe), tende a existir um número de compradores de mão de obra muito inferior ao número de vendedores. Tal desproporção não criaria, por si, qualquer poder de mercado: se há infinitos consumidores de batata, e por cada dez destes um produtor, podemos estar perante um mercado perfeito desde que não existam barreiras à entrada.

Mas a realidade não é infinita, e os mercados são limitados. O facto de existirem muito menos empregadores do que empregados num mercado limitado faz com que os primeiros sejam poucos, com que se possam conhecer pessoalmente, possam executar estratégias de cartelização tácitas ou concertadas, ou pelo menos partilhem um conjunto de valores que na prática possa «de facto» criar uma situação de cartelização e elevado poder de mercado. Sem qualquer interferência compensatória no mercado de mão de obra, o resultado é uma mão de obra numa situação de quase escravatura, sem férias, fins de semana, protecção social, e uma sociedade com enormes desigualdades sociais, com tudo o que de negativo isso traz ao nível da criminalidade, do bem estar, da confiança e empatia das pessoas umas pelas outras, etc. Essa chegou a ser a realidade antes dos sindicatos ganharem força.

Os sindicatos, por outro lado, cartelizam a oferta de mão de obra. Numa situação em que a oferta de mão de obra tem elevado poder de mercado, mas a procura também tem, o que é que seria de esperar? Ao contrário da situação de mercado perfeito, onde o compromisso se faria para o preço que maximizaria o valor, a negociação entre agentes humanos com elevado poder de mercado tende a fixar-se em torno de valores com significado psicológico, tendo em conta, entre outras coisas, as noções de justiça, as capacidades comunicativas dos envolvidos, as suas capacidades negociais e disposição para correr riscos.

Tomemos um exemplo onde a entidade patronal e os sindicatos tentam negociar os aumentos salariais: os sindicatos querem aumentos superiores ao aumento de produtividade, mas a entidade patronal quer dar aumentos inferiores. O compromisso entre estas duas forças com elevado poder de mercado tenderá a ser precisamente o aumento de produtividade.

Nos EUA os sindicatos eram fortemente atacados - pelo próprio estado - antes de Roosevelt assumir a presidência. A partir dessa altura, os sindicatos ganharam uma força significativa. É por isso que durante as décadas seguintes os salários nos EUA subiram a par e passo com a produtividade.
Posteriormente, as políticas de Reagan tiveram um efeito devastador nos sindicatos. Por isso podemos verificar que, tendo a produtividade continuado a aumentar significativamente, os salários reais (descontando o efeito da inflacção) pouco subiram.



É preciso alertar para um mal entendido comum. Muitas pessoas associam sindicatos fortes a uma incapacidade para o compromisso, uma predisposição excessiva para a greve e para conflitualidade social. Essa associação é errada.
Quando uma proporção menor da mão de obra está sindicalizada, é comum que os poucos que ainda dão força aos sindicatos sejam aqueles menos disponíveis para o compromisso e mais disponíveis para luta social, e que portanto tenham mais poder sobre as acções do sindicato como um todo. Em Portugal as taxas de sindicalização rondam os 25% (das mais baixas da Europa), e nos EUA aproximam-se dos 10%,  mas na Suécia chegam aos 70%. Um sindicato forte não precisa de tomar medidas tão drásticas para ser tomado em atenção pela entidade patronal, desde que, por ter muitos associados, a entidade patronal saiba que pode tomá-las. De qualquer forma, as taxas de sindicalização e o número de greves diminuíram significativamente nos países ricos ao longo das últimas décadas, o que contribuiu para o aumento das desigualdades nestes países.



É preciso reforçar que em Portugal o número de greves está longe de ser excessivo, não só quando nos comparamos com outros países, como quando olhamos para a evolução temporal nas últimas décadas.

Por fim, não nos devemos esquecer que uma parte da mão de obra viu as suas condições de trabalho melhorarem significativamente: os gestores «de topo».
O próximo texto desta série foca essa questão.

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