segunda-feira, 28 de março de 2011

Crucifixos: uma decisão que não decide por nós

É tão pacífico que não haja símbolos religiosos permanentes nas escolas públicas portuguesas que ninguém pede que sejam colocados. Compreende-se: o crucifixo não é um dos símbolos da República que mantém essas escolas. E afirmar a religião compete às igrejas, não à escola do Estado.

Todavia, desde 2005 que a Associação República e Laicidade questiona o Ministério da Educação, pedindo apenas uma circular que efective a não confessionalidade constitucional, retirando os crucifixos e cessando as cerimónias religiosas rituais que por vezes têm lugar nas escolas. E o ministério continua a fazer depender essa laicização, antipática para muitos, de um pedido explícito dos pais, empurrando os cidadãos para a constrangedora manifestação (pública) das suas convicções religiosas (privadas).


Existem portugueses crentes, católicos ou não; outros não têm religião, e são ateus, agnósticos ou indiferentes; o Estado não pode tomar partido por uns contra outros. E uma escola pública que seja veículo de difusão de uma religião, quer exibindo símbolos religiosos, realizando comunhões pascais ou tolerando proselitismos disfarçados de actividades transdisciplinares, toma partido por uma fracção da população e afasta-se da sua função unificadora e de formação dos futuros cidadãos nos valores democráticos. Uma parede nua, pelo contrário, não impõe a anti-religião.


Na sentença em que decidem que os crucifixos em escolas públicas italianas não violam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os juízes de Estrasburgo assumiram que a sua decisão seria diferente perante provas de que, no caso concreto em julgamento, a presença daquele símbolo religioso fosse pretexto para doutrinação religiosa, proselitismo ou cerimónias religiosas. Remeteram a regulação da questão para o âmbito interno de cada Estado, e frisam na 2.ª sentença que são poucos os Estados que, como a França ou a Polónia, especificamente proíbem ou obrigam à presença desses símbolos. 


Em Portugal, a inacção do Governo tornou um enquadramento constitucional mais próximo do francês numa vivência concreta que, localmente, pode ser quase polaca. É esse o caso da Madeira, onde um recente despacho do Governo regional ordenou a manutenção dos crucifixos, desafiando a Constituição e a Lei da Liberdade Religiosa, mas sem reacção do Governo da República, sempre tíbio perante aquela autonomia.
 

Os argumentos de tradição, maioria social ou "identidade cultural" foram desconsiderados na sentença. Recorde-se que a tradição dos crucifixos nas escolas portuguesas data de 1936, quando foram impostos como "símbolo da educação cristã determinada pela Constituição" (a de 1933), através da mesma lei que instituiu o livro único e a Mocidade Portuguesa.
 

A sua permanência, com uma Constituição (a de 1974) omissa em referências religiosas e que preconiza a não confessionalidade do ensino, é um resquício fossilizado da instrumentalização da religião para legitimar uma ditadura felizmente defunta. E a maioria não pode impor à minoria símbolos religiosos: seria esquecer que a liberdade é, sempre, individual.

A sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem mantém a questão em aberto: confessionalismo ou laicidade?

(Diário de Notícias, hoje; ler também o artigo de António Marcelino.)

3 comentários :

João Vasco disse...

Muito bem :)

NG disse...

Um dos comentários de que mais gostei sobre esse tema:

"De xico a 19 de Março de 2011 às 18:17
Palmira,
O crucifixo nas salas de aula nunca foi um problema até resolverem tirá-lo por decreto. Os símbolos, como as tradições, desaparecem quando deixam de fazer sentido a quem se dirigem. Os decretos, em regra, fazem lembrar aos esquecidos o símbolo em desuso. Vivo na província e visito muitas escolas. Antes desta questão, a própria conservação, remodelação e requalficação das escolas, encarregaram-se de fazer desaparecer o símbolo e ninguém protestou, porque se percebeu que não fazia sentido numa escola integrante e tolerante, não porque alguém se ofendesse. Da mesma forma como desapareceu o quadro negro de lousa.
A senhora finlandesa não gostou de um símbolo caro à população onde foi viver e protestou. E quis por decreto o que não conseguiu com bom senso.
Os crucifixos saíram e não pretendo voltar a vê-los nas salas, a não ser que quem as frequenta assim o queira. E sou católico.
Mas entristece-me o desprezo pela herança dos nossos pais. Seria uma tristeza e uma pobreza deixar de ouvir os sinos das nossas aldeias ou o sino das igrejas do Chiado. Quando tocam a finados fazem-me sentir solidário com quem partiu e com quem não conheço ou conheci. E quando dão as horas, ligam-me ao mundo antigo onde se rezava trindades, e continúo calmamente bebendo a minha cerveja na esplanada. É uma tradição que transcende a religião. Tal como o crucificado. Tal como os jardins com budas, agora tão visitados.
Os decretos servem para corrigir o défice não para destruir os símbolos. Estes caem sózinhos ou não caem. Só vale a pena proibir se ferirem a dignidade dos outros. Se alguém se sente ferido com a presença do crucificado, precisa de tratamento, não de decretos.
A presença do símbolo da república, como ícone da única forma de regime admitida, nos edifícios públicos, ofende-me como indivíduo que admite outras formas de regime democráticas e que intolerantemente querem fazer crer não serem possíveis."

Ricardo Alves disse...

Nuno Gaspar,
-houve um decreto para colocar os crucifixos mas nunca houve um para o retirar;
-a «senhora finlandesa» tem o direito de gostar ou não gostar, e protestar;
-há quem não herde dos pais o catolicismo e não fique triste por deixar de ouvir os sinos;
-percebe-se que incomoda muitos que haja quem não seja católico.