quarta-feira, 30 de março de 2011

Da especulação e a subida dos preços

Lê-se frequentemente que a especulação no mercado de alimentos e de petróleo, é a causa por detrás da forte subida de preços. As grandes quantidade de fundos movimentados nesses mercados seriam prova de tal causalidade. Ainda há uns tempos o dizia o presidente da Partex.
Há aqui um equívoco comum, a ideia que os especuladores empurram obrigatoriamente os preços para cima. Pense-se na dívida pública portuguesa, cuja variação tem sido imputada aos "especuladores". O que tem acontecido aos títulos de dívida pública, é que o juro implícito tem subido. O juro num dado título na realidade não varia, está fixo contratualmente, o que varia é o preço a que se transaciona esse título. Quando o preço desce, quem o compra vai ter um rendimento superior ao que teria acontecido anteriormente, o juro implícito sobe. O que temos neste momento é portanto uma queda a pique nos preços dos títulos da dívida pública. Curiosamente também houve um aumento nas movimentações nesse mercado, durante a queda, tal como aconteceu na subida do petróleo.

Claro que há especuladores que manipulam o mercado para proveito próprio, mas achar que o fazem sempre no sentido que nos afecta, é no mínimo egocêntrico.

16 comentários :

Luís Lavoura disse...

Outra ideia feita que é muito transmitida nos mídia é que os especuladores enriquecem, de algum modo à nossa custa.

Ora, isto é falso. Por cada especulador que enriquece haverá quase sempre um outro especulador que empobrece. Por cada especulador que compra barato e vende caro, haverá em geral um outro especulador que compra caro e vende barato.

Isto foi ensinado pelo célebre especulador Pedro Arroja: os especuladores também perdem dinheiro - e, em média, perdem dinheiro 50% das vezes.

Miguel Carvalho disse...

Não iria tão longe. Nesse caso, e sabendo que há realmente uns que ganham muito dinheiro, haveria de perguntar onde estão os que perdem e porque é que ainda estão no "ramo".


Um especulador normalmente ganha porque antecipa uma mudança no preço que outros não antecipam. Se por alguma razão sei que os Clios vão baixar de valor, posso fazer um contrato promessa agora para entrega daqui 2 meses, e daqui 2 meses compro a um preço mais baixo e entrego.

dorean paxorales disse...

cds, e não estou a falar de partidos.

João Vasco disse...

Miguel:

Eu creio que este texto corresponde a um equívoco que constamente tenham passar nos blogues de direita, e que passo a esclarecer.

Nos blogues de direita passa-se a ideia de que um especulador é quem compra e vende um bem por forma a ganhar dinheiro. Tenta comprar barato e vender caro, ou vender caro e comprar barato. É fácil entender que se a especulação é isto, então geralmente não tem nada de imoral ou pernicioso, pelo contrário, é muitas vezes uma actividade proveitosa para todos.

Mas a especulação é um crime.

Como é que raio comprar barato e vender caro é um crime?

A resposta é simples: especulação não se limita a isso. E passar a imagem que sim é espalhar um equívoco.


E vista esta distinção, a resposta ao teu texto é clara. Que ocorra prejuízo para a economia da actividade especulativa é uma condição necessária (mas não suficiente) para que tal actividade seja... especulativa. Por isso os "especuladores" "especulam" sempre no sentido que prejudica a economia, (a especulação é um crime contra a economia) pois de outra forma não estariam a "especular".

Nota que o facto de um comprador/vendedor fazer a sua actividade de uma forma que prejudique a economia não é razão suficiente para afirmarmos que é um especulador. Mas é condição necessária.

Luís Lavoura disse...

"a especulação é um crime contra a economia"

Depende da forma que a especulação revestir. Se a especulação fôr apenas um aproveitamento passivo de variações nos preços, não é criminosa. A especulação só pode ser considerada um crime se o especulador contribuir ativamente para uma escassez (ou abundância) artificial de um qualquer produto.

Luís Lavoura disse...

"Se por alguma razão sei que os Clios vão baixar de valor"

Mas os especuladores raramente sabem isso com 100% de certeza.

Se soubessem, tratar-se-ia provavelmente de um crime de insider information, ou seja, de abuso de informação privilegiada.

Os especuladores não sabem, tipicamente, em que direção um preço se vai alterar. Apostam, na ignorância, que ele se vai alterar numa dada direção. Apostam, naturalmente, contra outra pessoa. Quando ganham, essa outra pessoa perde. Mas também podem perder a aposta, e nessa altura a outra pessoa ganha.

João Vasco disse...

«especulação [pÈ]
nome feminino
1. ato ou efeito de especular [especular é definido neste contexto como «negociar com especulação]

2. investigação do ponto de vista teórico; indagação intelectual alheia à experiência; exame; estudo [não é este sentido que importa neste contexto]

3. ECONOMIA operação comercial que visa obter lucros exagerados ou pouco legítimos [note-se a conotação condenatória da palavra exagerados, depois explícita na expressão "pouco legítimos". O facto de existir um "crime de especulação" no nosso sistema penal confirma o carácter "pouco legítimo" que uma operação tem de ter para ser considerada "especulativa"]

4. figurado exploração ardilosa; engano [é este o sentido que geralmente é usado. Confundi-lo com uma condenção - injusta - a todos os que compram barato e vendem caro é um equívoco]»


Ou seja, a palavra especulação tinha este sentido, de operação comercial imoral, pouco legítima, mas alguém inventou que o acto de especular era meramente o acto de comprar barato e vender caro, um acto que muitas vezes é socialmente proveitoso e nada imoral. A partir daí concluiu-se que a especulação não tem nada de imoral.
Ora isto é um absurdo. Por definição trata-se de uma operação imoral, se for uma mera compra e venda com benefícios sociais não é crime, não é especulação.

Miguel Madeira disse...

A evolução da palavra não terá sido ao contrário? - afinal, o significado 1 (comprar barato porque se está à espera que vá subir) parece ter muito mais a ver com a raiz da palavra, que tem exactamente a ver com "indagação intelectual alheia à experiência" (neste caso, estar a teorizar sobre que preços irão ocorrer em transações futuras).

Já agora, comprar acções na bolsa porque se está à espera de as vender mais caras não é crime, mas é especulação.

dorean paxorales disse...

ora aqui está um excelente exemplo de uma discussão à portuguesa, se me permitem o comentário que não pretende ser de forma alguma insultuoso.

João Vasco disse...

Miguel Madeira:

Não vejo tal relação. Comprar barato e vender caro não é nada uma indagação alheia à experiência.

Não só na medida em que é uma actividade concreta e não uma indagação, e também porque geralmente se assume que o sucesso nessa actividade presume tirar as devidas lições da experiência apssada, mais até que numa série de outras actividades.


Eu realmente não conheço bem a origem da palavra, mas aquilo que me parece é que existem mesmo dois significados diferentes. O tal de indagação, que corresponde a uma actividade intelectual e não comercial; e o significado (mais figurado ou concreto) de actividade comercial vista como imoral.

Eu não vejo nada de imoral em comprar um bem barato e vendê-lo caro.
Não vejo nada de imoral em comprar acções baratas e vendê-las caras.

Por isso, não vejo como atribuír a essa actividade - comprar acções baratas e vende-las caras - a classificação de "especulativa" sem mais.

"Especulativa" serve precisamente para distinguir entre transacções comerciais não imorais (a maioria) e transacções comerciais imorais (e aqui a imoralidade dependerá dos valores de quem usa a palavra, ou da lei, caso o termo esteja a ser usado no sentido criminal).

Se alguém acredita que nenhuma transacção comercial pode - por definição - ser imoral, então esse alguém pode acreditar que "especulação" é um termo absurdo.

O contrário é que me parece estranho. Parece-me mesmo evidente que ninguém considera "especulador" qualquer retalhista. E nada na definição diz que se aplica a acções e produtos financeiros mas não a parafusos ou maçãs.

Miguel Madeira disse...

Creio que o problema está em termos começado por definir especulador como "alguém que compra barato e vende caro"; o significado é parecido, mas não é exactamente esse, é mais "alguém que compra barato na expectativa que mais tarde vai conseguir vender caro" - e esse já tem a tal componente de "indagação intelectual": o especulador que ocupa o seu tempo pensando "como será que os preços vão evoluir no futuro" acaba por estar a fazer algo muito parecido ao intelectual que ocupa o seu tempo a pensar, p.ex., nas consequências sociais de generalização da energia solar. É por isso que não se chama "especulador" a um retalhista - porque a sua actividade normalmente não joga muito com previsões sobre que preços vão subir ou baixar (o lucro do retalhista deriva do facto de, mesmo no mesmo instante, o preço de venda por grosso ser normalmente mais baixo que o preço de venda ao público; não deriva normalmente do preços terem subido entre o momento da compra e o da venda). E são muito poucas as pessoas que investem em parafusos pensado "nos próximos meses, o preço do parafuso há-de aumentar", enquanto o investimento em acções anda à volta de especulações/conjecturas dessas

Acerca do significado da especulação como lucro "imoral": eu suspeito que a sua origem seja porque, na prática, a especulação anteriormente referida traduz-se em comprar mercadorias e acumulá-las no armazém à espera que o preço suba; daí a coisas como o "açambarcamento" ou mesmo a "manipulação do mercado" vai um saltinho, praticamente indistinguível na prática (entre "não vender o trigo à espera que preço suba" e "não vender o trigo para fazer o preço subir" a distância não é muito - até porque mesmo que o especulador julgue subjectivamento que está apenas à espera da subida, a sua especulação acaba objectivamente por fazer o preço subir).

Note-se que eu também não sei a origem e a evolução da palavra "especulação", mas a minha especulação/conjectura parece-me fazer sentido (até porque explica a razão porque tanto "eu não sei a origem e a história desta palavra, mas acho que..." como "eu não sei como o preço do trigo vai evoluir, mas acho que..." são "especulações").

João Vasco disse...

Miguel Madeira:

Essa "especulação" faz sentido. É possível que a raiz do segundo sentido da palavra seja esse, ligado ao primeiro.

Assim sendo, uma operação comercial especulativa seria uma operação arriscada, pois poderíamos apenas "especular" que seria bem sucedida.

Ora as operações arriscadas podem ser potencialmente mais lucrativas, o que faz com que os seus lucros possam ser vistos como "exagerados".

E da noção de "lucro exagerado" aos vários efeitos perniciosos que uma operação arriscada pode ter (se alguém pede emprestado para investir num empreendimento arriscado, e ele corre mal, quem lhe emprestou o dinheiro vai ficar... zangado) passa-se para a conotação de imoralidade associada.

E quando a conotação já está fortemente associada à palavra, ela é escolhida para designar certo tipo de crimes contra a economia, o que reforça a conotação, ao ponto dela se tornar parte do significado da palavra.

Parece um caminho plausível.


Mas a linguagem é um conjunto de convenções que nos permitem comunicar ideias, e neste caso estamos perante um mal entendido.

Existem duas opções:

A- Usa-se a palavra especulação para designar operações comerciais imorais ou mesmo ilegais, não obstante não ser objectivo quando é que uma operação comercial é imoral. Este uso tem a vantagem de corresponder à forma como a maioria das pessoas usa a palavra, e ao que está convencionado nos dicionários.

B- Usa-se a palavra especulação para designar operações comerciais arriscadas e potencialmente muito lucrativas, mesmo que perfeitamente legítimas e morais. Este uso tem a vantagem de ser compatível com a definição do dicionário, possivelmente com o seu sentido original, com o uso que algumas pessoas dão à palavra, e de se tornar mais fácil aferir de forma objectiva quando é que uma operação comercial é especulativa ou não - o risco e o lucro potencial são menos controversos que a moralidade do acto.


Entre as possibilidades A e B, parece-me que a A é uma melhor opção.
Designar uma operação comercial imoral foi uma necessidade linguística mais sentida do que designar uma operação comercial arriscada, e creio que é por isso que hoje mais gente usa o termo especulação neste sentido (tenha sido o outro o original ou não). O uso faz a língua parece-me ser o critério vencedor neste caso.

Luís Lavoura disse...

Isso de dar conotações morais às operações económicas faz-me lembrar desagradavelmente a Igreja Católica medieval, com a sua definição de "preço justo" (que seria igual ao custo da produção adicionado de um "lucro justo") e a sua condenação da usura e, portanto, dos judeus (os "onzeneiros", que cobravam juros de 11%. acima dos 10% tolerados pela ICAR).

Parece que agora revivemos, por entre republicanos ateístas, conceitos económicos medievais (também partilhados, já agora, pelo Corão).

João Vasco disse...

Luís Lavoura:

Lá porque a Igreja e a religião se afirmem várias vezes "donas da moral" não quer dizer que qualquer ateu "a sério" deva ser amoral ou considerar a moralidade um conceito sem sentido.

Pelo contrário. Eu acho que um dos aspectos mais perniciosos da religião é precisamente prejudicar a discussão de qual a melhor moralidade, a qual deveria ser apenas baseada em argumentos racionais, e não em livros sagrados ou alegações sobrenaturais.

Pessoalmente não considero que faça sentido classificar os empréstimos com juros elevados como "imorais", e inclusivamente já discuti esse assunto neste espaço.

Isso não quer dizer que considere que nenhuma operação comercial pode ser imoral. Existem algumas operações cuja imoralidade é tão clara para todos que o legislador chegou ao pinto de ilegaliza-las, e a palavra que designa o crime respectivo de acordo com o nosso sistema penal é "especulação".

É possível alegar que o legislador está errado, e que tais operações criminosas não têm nada de imoral. Não sei se é uma alegação razoável, porque não conheço a lei em detalhe, imagino que não.
Mas mesmo nesse caso, existirá uma convicção generalizada da sua imoralidade, que a língua, enquanto instrumento de comunicação, deve plasmar.

Ou seja, mesmo quem acredite que nenhuma operação comercial é imoral, pode compreender a necessidade de uma palavra para exprimir o conceito, desde que compreenda que a maioria da população não partilha essa crença.


Pessoalmente, enquanto consequencialista, a ideia de "lucro justo" também não me parece bom fundamento para a classificação de uma operação comercial como moral ou imoral.
Mas parece-me um absurdo alegar que nenhuma operação comercial pode ser imoral.

Miguel Madeira disse...

O problema do comentário das 3:54 do João Vasco é que, entre os economistas, "especulação" é usada no sentido B, não no sentido A.

Se pegarmos num livro de Economia (p.ex., o Samuelson), "especulação" é definida explicitamente como a actividade de quem compra num dado momento para vender mais tarde quando o preço subir.

Ou seja, talvez tenhamos aqui uma discrepância entre o uso comum e o uso cientifico de uma palavra (embora eu não tenha tanta certeza que o uso A seja mais generalizado que o uso B).

João Vasco disse...

Miguel Madeira:

Creio que esse problema é devido ao facto da palavra "speculation" - aquela que configura na versão original do livro citado - ter uma definição no dicionário diferente:

«–noun
1.
the contemplation or consideration of some subject: to engage in speculation on humanity's ultimate destiny.
2.
a single instance or process of consideration.
3.
a conclusion or opinion reached by such contemplation: These speculations are impossible to verify.
4.
conjectural consideration of a matter; conjecture or surmise: a report based on speculation rather than facts.
5.
engagement in business transactions involving considerable risk but offering the chance of large gains, especially trading in commodities, stocks, etc., in the hope of profit from changes in the market price.
6.
a speculative commercial venture or undertaking.»


Ou seja, nada no significado 5 fala em lucro "exagerado" ou "pouco legítimo", nem existe nenhum significado figurado referindo-se exclusivamente a uma operação ardilosa.
Assim, temos no que diz respeito ao segundo significado, uma palavra diferente. É portanto um "falso amigo", e não é de espantar que os tradutores tenham traduzido "speculation" por "especulação".

Ou seja, em inglês o significado técnico da palavra "speculation" em economia é igual ao significado corrente de "speculation".
Já em português é o significado técnico da palavra "especulação" em direito que é próximo do significado corrente do termo.

Desta forma a tradução de "speculation" para "especulação" criou uma série de equívocos pelo facto das palavras, apesar da semelhança no som e no primeiro significado, terem um segundo significado diferente.

Mas se considerarmos que alguém pode usar o termo "técnico" de economia e não de direito para dar à palavra portuguesa o segundo sentido inglês, aquilo que essa pessoa não poderá fazer é dizer que usar o termo com o significado corrente consagrado nos dicionários é caír em erro.

É um termo dado a equívocos, lá isso é.