Li um dos grandes clássicos de Ayn Rand, The Fountainhead. E gostei.
Direi mais: gostei bastante.
Gostei porque é uma obra bem construída, povoada por personagens profundos e interessantes. Gostei porque tem um desenrolar imprevisível e original. Também porque toca em temas fundamentais, explorando-os ao longo da obra. E em grande medida porque consegue dar-me a conhecer outra perspectiva, outra mundividência, não num sentido apenas formal, mas num sentido estético.
Fruí prazenteiramente a obra, mas falhei aquele que parece ser o objectivo principal da mesma - cativar o leitor para o «objectivismo», a filosofia de Ayn Rand.
É que Ayn Rand pode ser uma excelente escritora mas, a meu ver, falha em toda a linha como filósofa.
Há coisas que na arte não são condenáveis, mas na filosofia são fatais. Ninguém pede clareza, precisão e rigor num poema, nem o rejeita por encontrar inconsistências e contradições. Já no pensamento filosófico, a inconsistência é o pecado maior.
Na maior parte do livro «The Fountainhead» os princípios filosóficos não são explicitados com clareza, antes são transmitidos de forma implícita através de inúmeros artifícios. Mais perto do final do livro, no entanto, cada vez mais se verifica um enunciar mais explícito da perspectiva objectivista. O culminar ocorre no climax final da obra, a altura em que o protagonista Howard Roark, representando-se a si próprio em Tribunal, profere as alegações finais do seu caso:
«Nenhum criador foi motivado pelo desejo de servir aos seus irmãos, porque seus irmãos rejeitavam a dádiva que ele oferecia, a dádiva que destruía a rotina preguiçosa de suas vidas. A verdade do criador era a sua única motivação. A sua própria verdade e o seu próprio esforço para alcançá-la da sua própria maneira. Uma sinfonia, um livro, um motor, uma filosofia, um avião ou um prédio – a sua criação era seu objetivo e sua vida. Não aqueles que ouviam, liam, operavam, acreditavam, pilotavam ou moravam na sua criação. A criação, não seus usuários. A criação, não os benefícios que ela trazia para os outros. A criação que dava forma à sua verdade. Ele colocava a sua verdade acima de tudo e defendia-a contra todos.
Sua visão, sua força e sua coragem originavam-se em seu próprio espírito. O espírito de um homem, entretanto, é o seu próprio ego. A entidade que é a sua própria consciência. Pensar, sentir, julgar e agir são funções do ego.
Os criadores não eram altruístas. Esse é todo o segredo do seu poder – que ele era auto-suficiente, automotivado, autogerado. Uma causa inicial, uma fonte de energia, uma força vital, um Primeiro Criador. O criador não servia a nada nem a ninguém. Ele vivia para si próprio.
E somente porque viveu para si próprio é que o criador pôde conquistar o que são as glórias da humanidade. Essa é a natureza da conquista.
O homem não pode sobreviver sem o uso de sua mente. Ele nasce desarmado. Seu cérebro é sua única arma. Os animais obtêm comida usando a força. O Homem não tem garras, presas, chifres, nem nenhuma grande força muscular. Ele tem que plantar sua comida ou caçá-la. Para plantar, ele precisa pensar. Para caçar, ele precisa de armas, e para fazer armas – precisa pensar. Da mais simples necessidade até a mais complexa abstração religiosa, da roda ao arranha-céu, tudo o que somos e tudo o que temos vem de um único atributo do homem – a capacidade de sua mente racional.»
Há vários criadores motivados pelo «desejo de servir os seus irmãos», e nenhuma boa razão para acreditar que são uma minoria entre os criadores. E tal atributo do homem - a mente racional - desenvolveu-se precisamente como uma máquina social que permite a cada um conhecer a linguagem para melhor cooperar. Tudo o que sabemos sobre a natureza humana nos leva a crer que a tal «mente racional» só se desenvolve num contexto de interdependência social, que a autora, pela boca de Roark, tanto desdenha em nome da autonomia.
Avançando mais um pouco no seu discurso:
«Nada é dado ao Homem na Terra. Tudo o que ele precisa tem de ser produzido. E essa é a alternativa básica que o Homem enfrenta: ele pode sobreviver de duas maneiras – através do uso independente de sua mente ou como um parasita alimentado pela mentes dos outros. O criador origina. O parasita toma emprestado. O criador enfrenta a natureza sozinho. O parasita enfrenta a natureza através de um intermediário.
A preocupação do criador é a conquista da natureza. A preocupação do parasita é a conquista dos homens.
O criador vive em função do seu trabalho. Ele não precisa de ninguém. Seu objetivo principal está dentro de si mesmo. O parasita vive em função dos outros, de segunda mão. Ele precisa dos outros. Os outros são a sua motivação principal.
A necessidade básica do criador é a independência. A mente racional não pode funcionar sob qualquer forma de coação. Não pode ser limitada, sacrificada ou subordinada a nenhum tipo de consideração. Ela exige total independência no seu funcionamento e na sua motivação. Para o criador, todas as relações com os outros homens são secundárias.
A necessidade básica do parasita que vive de segunda mão é assegurar sua relação com outros homens para ser alimentado. Para ele, os relacionamentos estão acima de tudo. Ele declara que o Homem existe para servir aos outros. Ele prega o altruísmo.»
[...]
O altruísmo é a doutrina que exige que o homem viva para outros e dê mais importância aos outros que a si próprio.»
[...]
O homem que tenta viver para os outros é um dependente. É um parasita em sua motivação, e faz daqueles a quem serve parasitas também. Essa relação não produz nada além de corrupção mútua. É impossível conceber tal relação. O exemplo mais próximo na realidade – o homem que vive para servir aos outros – é o escravo. Se a escravidão física é repugnante, quão mais repugnante é o conceito de escravidão espiritual? O escravo, mesmo sendo subjugado, ainda retém um vestígio de honra. Ele tem o mérito de haver resistido e de saber que a sua condição é revoltante. Mas o homem que se escraviza voluntariamente em nome do amor é a criatura mais desprezível que existe. Ele degrada a dignidade do homem e degrada o conceito de amor. Mas é essa é a essência do altruísmo.»
Um pequeno aparte para fazer notar como esta mundividência é completamente oposta ao cristianismo.
Sabemos que Any Ryand é ateia, e despreza a religião - isso é muito claro na sua obra. Mas eu imaginaria, dada a quantidade de líderes políticos cristãos que se identificam com o «objectivismo» ou com este tipo de estética e ética, que existisse alguma compatibilidade entre ambas as perspectivas.
Mas não existe nenhuma.
De qualquer forma, só agora compreendo algumas respostas que fui recebendo nalguns blogues de direita liberal. Parecia que o «altruísmo» era uma coisa horrível, que se associava a Hitler e Estaline, e eu nem compreendia bem o que se passava.
Agora percebo: algumas dessas pessoas, por influência da perspectiva de Ryand, associam o «altruísmo» ao «parasitismo»: uma força corruptora, uma força do «mal».
Avancemos neste discurso:
«A escolha não é sacrifício pessoal ou domínio sobre os outros. A escolha é independência ou dependência. O código do criador ou o código do parasita que vive de segunda mão. Essa é a questão básica. E ela procede da alternativa entre a vida e a morte. O código do criador é construído de acordo com as necessidades da mente racional que permite ao homem sobreviver. O código do parasita é construído de acordo com as necessidades de uma mente incapaz de garantir sua própria sobrevivência. Tudo o que resulta do ego independente do homem é bom. Tudo o que resulta da dependência de um homem pelo outro é mau.
O egoísta, no sentido mais absoluto, não é o homem que sacrifica os outros. O egoísta é o homem que está acima da necessidade de usar os outros de qualquer forma. Ele não funciona através deles. Nunca se preocupa com eles em questões fundamentais. Nem na escolha do seu objetivo, nem no seu motivo, nem no seu pensamento, nem nos desejos, nem na fonte da sua energia. Ele não existe para o benefício de nenhum outro homem – e não pede a nenhum outro homem que exista para o seu benefício. Essa é á única forma possível de irmandade e respeito mútuo entre os homens.
Graus de habilidade variam, mas o princípio básico permanece o mesmo: o grau de independência, iniciativa e amor pelo seu trabalho é o que determinam seu talento como trabalhador e seu valor como homem. A independência de um homem é a única medida da sua virtude e do seu valor. O que um homem é, e o faz de si mesmo; não o que fez, ou deixou de fazer, pelos outros. Não há substituto para a dignidade pessoal. O único padrão de dignidade pessoal que existe é a independência.
Em todos os relacionamentos dignos de respeito ninguém se sacrifica por ninguém. Um arquitecto precisa de clientes, mas não subordina seu trabalho aos desejos deles. E eles precisam de um arquiteto, mas não encomendam uma casa só para dar-lhe trabalho. Os homens trocam o seu trabalho por livre e espontânea vontade, com mútuo consentimento e para vantagem mútua, sempre que seus interesses pessoais coincidem e ambos desejam a troca. Se não desejam tratar um com outro, não são forçados a fazê-lo. Ambos podem continuar seguindo seus caminhos. Essa á única forma possível de relacionamento entre iguais. Qualquer outra forma é uma relação entre escravo e dono, ou entre vítima e carrasco.
[...]
O homem pensa e trabalha sozinho. O homem não pode roubar, explorar ou dominar – sozinho. Roubo, exploração e dominação pressupõem vítimas. Eles exigem a dependência. Eles são a província do homem que vive de segunda mão.
Aqueles que dominam outros não são egoístas. Eles não criam nada. A sua existência depende inteiramente de outros. O seu objetivo reside em seus súditos, no ato de escravizá-los. Eles são tão dependentes quanto o mendigo, o assistente social e o bandido. A forma da dependência não importa.
Mas os homens foram ensinados a ver os parasitas que vivem de segunda mão – os tiranos, imperadores e ditadores – como expoentes do egoísmo. Através dessa fraude, eles foram levados a destruir o ego, a si próprios e aos outros. O objetivo da fraude era destruir os criadores. Ou subjugá-los. O que é um sinônimo.
Desde o início da História, os dois antagonistas enfrentaram-se face a face: o criador e o parasita. Quando o primeiro criador inventou a roda, o primeiro parasita reagiu. Ele inventou o altruísmo.
O criador – rejeitado, oposto, perseguido, explorado – perseverou, seguiu adiante, e com sua energia carregou toda a humanidade com ele. O parasita não contribuiu com nada para esse processo, exceto com os obstáculos. A disputa tem outro nome: o indivíduo contra o coletivo.
[...]
A única forma de os homens se beneficiarem mutuamente e a única declaração de um relacionamento apropriado entre eles é: Sem interferência!»
Pois bem: afinal os ladrões são «parasitas» tal como Ayn Rand define o termo. Eu diria que a maior parte dos ladrões não anda aí a pregar o altruísmo, mas enfim...
Aqui mesmo, no ladrão, encerra-se a enorme contradição de Ayn Rand - o ladrão é dependente, mas o comerciante não.
Vejamos: o ladrão, ao furtar, está a ser dependente, pois se a sua vítima não existisse, o furto seria impossível.
Mas o arquitecto quando vende o seu trabalho também está dependente do seu cliente. Se o seu cliente não existisse, a venda seria impossível.
O arquitecto até poderia ser autónomo, e estar disposto a viver na selva até que um cliente quisesse com ele cooperar, e nesse sentido não precisaria do cliente para viver.
Mas o mesmo poderá ser dito do ladrão. Poderia viver na selva até ter oportunidade de furtar um bem acrescido. Nesse sentido não precisaria da vítima para viver.
Mas o acto do furto é tão dependente da vítima como o acto da venda é dependente do cliente.
E a natureza voluntária da cooperação com o cliente, mesmo que torne o acto bem menos censurável que o furto, não o torna menos dependente - pelo contrário, aumenta a dependência da vontade da outra parte.
Any Ryand começa por confundir «egoísmo» com «egocentrismo». Alega que «egoísmo» não é uma coisa má, podendo ser até virtuosa, mas usa esta palavra referindo-se sempre ao conceito de «egocentrismo». E tem razão, o «egocentrismo» tem alguma virtude em algumas circunstâncias (quando se procura originalidade, por exemplo).
Mas nesta confusão entre egoísmo e egocentrismo, Any Ryand perde-se completamente. Howard Roark é um personagem íntegro, incapaz de comprometer os seus princípios, de roubar, de mentir. Mas um assistente social pode dizer que faz voluntariado porque se sente melhor, e dessa perspectiva o faz por si. Isso é uma interiorização de um comportamento altruísta, tal como o de Roark ao recusar-se a mentir ou roubar, mesmo que isso lhe traga vantagens. O tão amaldiçoado altruísmo...
Não, o ladrão não é mais dependente que o comerciante. Verdadeiramente independente é o eremita que vive na selva, se bem que mesmo esse já tenha usufruído de uma educação que o protegeu, e onde existiu suficiente altruísmo para o fazer chegar vivo à idade adulta.
Actualmente todos somos dependentes uns dos outros. E se o comércio muitas vezes é uma forma de dependência que cria valor, ao contrário do furto que o destrói, também é verdade que muitos altruístas criam valor, e muitos egoístas são parasitas - eu diria que em proporção superior...
Esta contradição de Any Ryand é tão grosseira e fundamental que, enquanto pedra basilar do seu pensamento político, garante que todo esse edifício colapsa em inconsistências.
Direi mais: gostei bastante.
Gostei porque é uma obra bem construída, povoada por personagens profundos e interessantes. Gostei porque tem um desenrolar imprevisível e original. Também porque toca em temas fundamentais, explorando-os ao longo da obra. E em grande medida porque consegue dar-me a conhecer outra perspectiva, outra mundividência, não num sentido apenas formal, mas num sentido estético.
Fruí prazenteiramente a obra, mas falhei aquele que parece ser o objectivo principal da mesma - cativar o leitor para o «objectivismo», a filosofia de Ayn Rand.
É que Ayn Rand pode ser uma excelente escritora mas, a meu ver, falha em toda a linha como filósofa.
Há coisas que na arte não são condenáveis, mas na filosofia são fatais. Ninguém pede clareza, precisão e rigor num poema, nem o rejeita por encontrar inconsistências e contradições. Já no pensamento filosófico, a inconsistência é o pecado maior.
Na maior parte do livro «The Fountainhead» os princípios filosóficos não são explicitados com clareza, antes são transmitidos de forma implícita através de inúmeros artifícios. Mais perto do final do livro, no entanto, cada vez mais se verifica um enunciar mais explícito da perspectiva objectivista. O culminar ocorre no climax final da obra, a altura em que o protagonista Howard Roark, representando-se a si próprio em Tribunal, profere as alegações finais do seu caso:
«Nenhum criador foi motivado pelo desejo de servir aos seus irmãos, porque seus irmãos rejeitavam a dádiva que ele oferecia, a dádiva que destruía a rotina preguiçosa de suas vidas. A verdade do criador era a sua única motivação. A sua própria verdade e o seu próprio esforço para alcançá-la da sua própria maneira. Uma sinfonia, um livro, um motor, uma filosofia, um avião ou um prédio – a sua criação era seu objetivo e sua vida. Não aqueles que ouviam, liam, operavam, acreditavam, pilotavam ou moravam na sua criação. A criação, não seus usuários. A criação, não os benefícios que ela trazia para os outros. A criação que dava forma à sua verdade. Ele colocava a sua verdade acima de tudo e defendia-a contra todos.
Sua visão, sua força e sua coragem originavam-se em seu próprio espírito. O espírito de um homem, entretanto, é o seu próprio ego. A entidade que é a sua própria consciência. Pensar, sentir, julgar e agir são funções do ego.
Os criadores não eram altruístas. Esse é todo o segredo do seu poder – que ele era auto-suficiente, automotivado, autogerado. Uma causa inicial, uma fonte de energia, uma força vital, um Primeiro Criador. O criador não servia a nada nem a ninguém. Ele vivia para si próprio.
E somente porque viveu para si próprio é que o criador pôde conquistar o que são as glórias da humanidade. Essa é a natureza da conquista.
O homem não pode sobreviver sem o uso de sua mente. Ele nasce desarmado. Seu cérebro é sua única arma. Os animais obtêm comida usando a força. O Homem não tem garras, presas, chifres, nem nenhuma grande força muscular. Ele tem que plantar sua comida ou caçá-la. Para plantar, ele precisa pensar. Para caçar, ele precisa de armas, e para fazer armas – precisa pensar. Da mais simples necessidade até a mais complexa abstração religiosa, da roda ao arranha-céu, tudo o que somos e tudo o que temos vem de um único atributo do homem – a capacidade de sua mente racional.»
Há vários criadores motivados pelo «desejo de servir os seus irmãos», e nenhuma boa razão para acreditar que são uma minoria entre os criadores. E tal atributo do homem - a mente racional - desenvolveu-se precisamente como uma máquina social que permite a cada um conhecer a linguagem para melhor cooperar. Tudo o que sabemos sobre a natureza humana nos leva a crer que a tal «mente racional» só se desenvolve num contexto de interdependência social, que a autora, pela boca de Roark, tanto desdenha em nome da autonomia.
Avançando mais um pouco no seu discurso:
«Nada é dado ao Homem na Terra. Tudo o que ele precisa tem de ser produzido. E essa é a alternativa básica que o Homem enfrenta: ele pode sobreviver de duas maneiras – através do uso independente de sua mente ou como um parasita alimentado pela mentes dos outros. O criador origina. O parasita toma emprestado. O criador enfrenta a natureza sozinho. O parasita enfrenta a natureza através de um intermediário.
A preocupação do criador é a conquista da natureza. A preocupação do parasita é a conquista dos homens.
O criador vive em função do seu trabalho. Ele não precisa de ninguém. Seu objetivo principal está dentro de si mesmo. O parasita vive em função dos outros, de segunda mão. Ele precisa dos outros. Os outros são a sua motivação principal.
A necessidade básica do criador é a independência. A mente racional não pode funcionar sob qualquer forma de coação. Não pode ser limitada, sacrificada ou subordinada a nenhum tipo de consideração. Ela exige total independência no seu funcionamento e na sua motivação. Para o criador, todas as relações com os outros homens são secundárias.
A necessidade básica do parasita que vive de segunda mão é assegurar sua relação com outros homens para ser alimentado. Para ele, os relacionamentos estão acima de tudo. Ele declara que o Homem existe para servir aos outros. Ele prega o altruísmo.»
[...]
O altruísmo é a doutrina que exige que o homem viva para outros e dê mais importância aos outros que a si próprio.»
[...]
O homem que tenta viver para os outros é um dependente. É um parasita em sua motivação, e faz daqueles a quem serve parasitas também. Essa relação não produz nada além de corrupção mútua. É impossível conceber tal relação. O exemplo mais próximo na realidade – o homem que vive para servir aos outros – é o escravo. Se a escravidão física é repugnante, quão mais repugnante é o conceito de escravidão espiritual? O escravo, mesmo sendo subjugado, ainda retém um vestígio de honra. Ele tem o mérito de haver resistido e de saber que a sua condição é revoltante. Mas o homem que se escraviza voluntariamente em nome do amor é a criatura mais desprezível que existe. Ele degrada a dignidade do homem e degrada o conceito de amor. Mas é essa é a essência do altruísmo.»
Um pequeno aparte para fazer notar como esta mundividência é completamente oposta ao cristianismo.
Sabemos que Any Ryand é ateia, e despreza a religião - isso é muito claro na sua obra. Mas eu imaginaria, dada a quantidade de líderes políticos cristãos que se identificam com o «objectivismo» ou com este tipo de estética e ética, que existisse alguma compatibilidade entre ambas as perspectivas.
Mas não existe nenhuma.
De qualquer forma, só agora compreendo algumas respostas que fui recebendo nalguns blogues de direita liberal. Parecia que o «altruísmo» era uma coisa horrível, que se associava a Hitler e Estaline, e eu nem compreendia bem o que se passava.
Agora percebo: algumas dessas pessoas, por influência da perspectiva de Ryand, associam o «altruísmo» ao «parasitismo»: uma força corruptora, uma força do «mal».
Avancemos neste discurso:
«A escolha não é sacrifício pessoal ou domínio sobre os outros. A escolha é independência ou dependência. O código do criador ou o código do parasita que vive de segunda mão. Essa é a questão básica. E ela procede da alternativa entre a vida e a morte. O código do criador é construído de acordo com as necessidades da mente racional que permite ao homem sobreviver. O código do parasita é construído de acordo com as necessidades de uma mente incapaz de garantir sua própria sobrevivência. Tudo o que resulta do ego independente do homem é bom. Tudo o que resulta da dependência de um homem pelo outro é mau.
O egoísta, no sentido mais absoluto, não é o homem que sacrifica os outros. O egoísta é o homem que está acima da necessidade de usar os outros de qualquer forma. Ele não funciona através deles. Nunca se preocupa com eles em questões fundamentais. Nem na escolha do seu objetivo, nem no seu motivo, nem no seu pensamento, nem nos desejos, nem na fonte da sua energia. Ele não existe para o benefício de nenhum outro homem – e não pede a nenhum outro homem que exista para o seu benefício. Essa é á única forma possível de irmandade e respeito mútuo entre os homens.
Graus de habilidade variam, mas o princípio básico permanece o mesmo: o grau de independência, iniciativa e amor pelo seu trabalho é o que determinam seu talento como trabalhador e seu valor como homem. A independência de um homem é a única medida da sua virtude e do seu valor. O que um homem é, e o faz de si mesmo; não o que fez, ou deixou de fazer, pelos outros. Não há substituto para a dignidade pessoal. O único padrão de dignidade pessoal que existe é a independência.
Em todos os relacionamentos dignos de respeito ninguém se sacrifica por ninguém. Um arquitecto precisa de clientes, mas não subordina seu trabalho aos desejos deles. E eles precisam de um arquiteto, mas não encomendam uma casa só para dar-lhe trabalho. Os homens trocam o seu trabalho por livre e espontânea vontade, com mútuo consentimento e para vantagem mútua, sempre que seus interesses pessoais coincidem e ambos desejam a troca. Se não desejam tratar um com outro, não são forçados a fazê-lo. Ambos podem continuar seguindo seus caminhos. Essa á única forma possível de relacionamento entre iguais. Qualquer outra forma é uma relação entre escravo e dono, ou entre vítima e carrasco.
[...]
O homem pensa e trabalha sozinho. O homem não pode roubar, explorar ou dominar – sozinho. Roubo, exploração e dominação pressupõem vítimas. Eles exigem a dependência. Eles são a província do homem que vive de segunda mão.
Aqueles que dominam outros não são egoístas. Eles não criam nada. A sua existência depende inteiramente de outros. O seu objetivo reside em seus súditos, no ato de escravizá-los. Eles são tão dependentes quanto o mendigo, o assistente social e o bandido. A forma da dependência não importa.
Mas os homens foram ensinados a ver os parasitas que vivem de segunda mão – os tiranos, imperadores e ditadores – como expoentes do egoísmo. Através dessa fraude, eles foram levados a destruir o ego, a si próprios e aos outros. O objetivo da fraude era destruir os criadores. Ou subjugá-los. O que é um sinônimo.
Desde o início da História, os dois antagonistas enfrentaram-se face a face: o criador e o parasita. Quando o primeiro criador inventou a roda, o primeiro parasita reagiu. Ele inventou o altruísmo.
O criador – rejeitado, oposto, perseguido, explorado – perseverou, seguiu adiante, e com sua energia carregou toda a humanidade com ele. O parasita não contribuiu com nada para esse processo, exceto com os obstáculos. A disputa tem outro nome: o indivíduo contra o coletivo.
[...]
A única forma de os homens se beneficiarem mutuamente e a única declaração de um relacionamento apropriado entre eles é: Sem interferência!»
Pois bem: afinal os ladrões são «parasitas» tal como Ayn Rand define o termo. Eu diria que a maior parte dos ladrões não anda aí a pregar o altruísmo, mas enfim...
Aqui mesmo, no ladrão, encerra-se a enorme contradição de Ayn Rand - o ladrão é dependente, mas o comerciante não.
Vejamos: o ladrão, ao furtar, está a ser dependente, pois se a sua vítima não existisse, o furto seria impossível.
Mas o arquitecto quando vende o seu trabalho também está dependente do seu cliente. Se o seu cliente não existisse, a venda seria impossível.
O arquitecto até poderia ser autónomo, e estar disposto a viver na selva até que um cliente quisesse com ele cooperar, e nesse sentido não precisaria do cliente para viver.
Mas o mesmo poderá ser dito do ladrão. Poderia viver na selva até ter oportunidade de furtar um bem acrescido. Nesse sentido não precisaria da vítima para viver.
Mas o acto do furto é tão dependente da vítima como o acto da venda é dependente do cliente.
E a natureza voluntária da cooperação com o cliente, mesmo que torne o acto bem menos censurável que o furto, não o torna menos dependente - pelo contrário, aumenta a dependência da vontade da outra parte.
Any Ryand começa por confundir «egoísmo» com «egocentrismo». Alega que «egoísmo» não é uma coisa má, podendo ser até virtuosa, mas usa esta palavra referindo-se sempre ao conceito de «egocentrismo». E tem razão, o «egocentrismo» tem alguma virtude em algumas circunstâncias (quando se procura originalidade, por exemplo).
Mas nesta confusão entre egoísmo e egocentrismo, Any Ryand perde-se completamente. Howard Roark é um personagem íntegro, incapaz de comprometer os seus princípios, de roubar, de mentir. Mas um assistente social pode dizer que faz voluntariado porque se sente melhor, e dessa perspectiva o faz por si. Isso é uma interiorização de um comportamento altruísta, tal como o de Roark ao recusar-se a mentir ou roubar, mesmo que isso lhe traga vantagens. O tão amaldiçoado altruísmo...
Não, o ladrão não é mais dependente que o comerciante. Verdadeiramente independente é o eremita que vive na selva, se bem que mesmo esse já tenha usufruído de uma educação que o protegeu, e onde existiu suficiente altruísmo para o fazer chegar vivo à idade adulta.
Actualmente todos somos dependentes uns dos outros. E se o comércio muitas vezes é uma forma de dependência que cria valor, ao contrário do furto que o destrói, também é verdade que muitos altruístas criam valor, e muitos egoístas são parasitas - eu diria que em proporção superior...
Esta contradição de Any Ryand é tão grosseira e fundamental que, enquanto pedra basilar do seu pensamento político, garante que todo esse edifício colapsa em inconsistências.
11 comentários :
Ayn Rand foi uma mulher horrível, uma sociopata com um egoísmo infantil, que devia a educação que recebeu ao Lenine (que acabou com o anti-semitismo na universidade e abriu as portas do ensino às mulheres). Os livros dela são a Bíblia do Tea Party, o sonho húmido de cada americano cuja idade mental fica nos sete ou oito anos.
Nunca consegui passar da página 3...
«Os livros dela são a Bíblia do Tea Party»
O pior é que esta gente depois também diz ter apreço pela Bíblia propriamente dita, sem terem noção da incompatibilidade dos valores. A vários níveis.
Essa incongruência intelectual dos "Tea Baggers" advém do facto, puro e simples, de nunca terem lido, nem a Bíblia, nem os livros de Rand.
Simples.
Eu tive o desprazer ter de ler o Atlas Shrugged na cadeira de Ética (!!!) no MBA, que a a prof era Objectivista. Da experiência apenas retenho como positivo o facto de me ter inoculado contra aquela "filosofia" da treta.
Giro mesmo foi quando "as massas" se rebelaram contra a lavagem cerebral! :D
Só näo concordo com uma coisa no artigo: "É que Ayn Rand pode ser uma excelente escritora mas, a meu ver, falha em toda a linha como filósofa." Errado... ela é täo má escritora como filósofa.
Maquiavel,
«Errado... ela é täo má escritora como filósofa.»
Acho que aí é muito uma questão de gosto.
Eu gostei muito de ler o livro dela.
Como filósofa é que o caso é diferente. Não é uma questão de gosto saber se a filosofia dela é inconsistente ou não - é mesmo perfeitamente inconsistente.
Li por alto as citações do livro. É horrível - aquilo como filosofia não faz qualquer espécie de sentido, aliás, é contraditório com factos observados no dia-a-dia. Até custa a crer que alguém se deixe convencer por elocubrações tão obviamente falsas.
Luís Lavoura
Luís,
É preciso ver que escolhi o pior :)
Mas sim, concordo. Custa a acreditar que aquilo possa ser levado a sério enquanto filosofia.
Acho que também deriva muito do seu uso muito peculiar de expressões (nomeadamente o de "egoismo" no lugar de "egocentrismo").
Porque, pensemos bem, será que os tais criadores que se dizem preocupados com o bem da humanidade estão realmente preocupados com isso, ou no fundo é apenas um pretexto (mesmo perante eles próprios) para porem em prática as suas capacidades?
Um exemplo/teste simples - imaginemos um editor da wikipedia (um projecto começado por um randiano, alias); como reagirá ele se, a dado momento, ver que os artigos (da sua área de interesse) estão perfeitos, as categorizações ótimas, etc. Se a sua motivação for o bem da humanidade ficará contente pensando algo como "o projecto da enciclopédia livre está cada vez mais perto da prefeição!"; se a sua motivação for exercitar a sua vontade, cérebro, etc. irá pensar "que seca! Já não há nada para se fazer aqui!".
Será que em muitos altruístas não será o segundo efeito o dominante? Aliás, ironicamente, muito discurso pró-altruista segue a linha de "precisamos de nos dedicar a uma causa/ideal/aos outros/algo parecido para a nossa vida ter sentido e não mergulharmos no vazio e no tédio e na ausência de verdadeira felicidade" (com algumas variantes, não é raro ouvir-se isto da boca de cristãos ou de esquerdistas); mas isso acaba por implicar que o verdadeiro propósito (ou um deles...) é a satisfação pessoal que dá ao suposto altruísta.
E, de acordo com a definição muito peculiar de "egoísmo" de Ayn Rand, esse altruísmo acaba por ser uma forma de egoísmo
Onde se lê
«mas isso acaba por implicar que o verdadeiro propósito (ou um deles...) é a satisfação pessoal que dá ao suposto altruísta.»
deve ler-se
«mas isso acaba por implicar que o verdadeiro propósito (ou um deles...) do altruísmo é a satisfação pessoal que dá ao suposto altruísta.»
Agora uma coisa - eu nunca li o livro nem vi o filme.
Mas, pelo que já li e vi, dá-me a ideia que a mensagem de The Fountainhead não precisaria de grandes alterações para ser transposta por algum autor radical da contra-cultura (ou do Romantismo, ou do simbolismo...) num romance à volta do tema "artista marginal em ruptura com as convenções da sociedade burguesa" - parece-me que a diferença não é assim muita.
Já agora, uma critica capitalista à filosofia de Rand (que apanha um bocado estes pontos):
http://www.mskousen.com/2001/01/321/
Miguel Madeira,
«E, de acordo com a definição muito peculiar de "egoísmo" de Ayn Rand, esse altruísmo acaba por ser uma forma de egoísmo»
O problema é que não existe uma "definição peculiar". O conceito é apresentado implicitamente, mas corresponde a diferentes definições consoante o contexto. Daí alguma inconsistência.
Porque existem duas possíveis definições de altruísmo, a restrita, ou a abrangente.
Quando um personagem «bom» tem uma atitude que poderíamos considerar altruísta, usa-se uma definição restrita de altruísmo para desculpar a atitude.
Mas quando se fala nas massas, fala-se no altruísmo como sendo uma atitude perfeitamente generalizada, coisa que apenas é defensável se usarmos a definição menos restrita do termo.
«"artista marginal em ruptura com as convenções da sociedade burguesa"»
Sim!
Em parte é isso que torna a obra surpreendente, a importância desse tema, e a forma como é explorado.
Sobre o artigo do «crítico capitalista», eu diria que discordo da crítica. Existem duas coisas que tornam surpreendente que pessoas pró-mercado gostem do livro, mas que não são nada incompatíveis com os valores «liberais (de direita)» que a autora defende.
Um deles é a ideia de que o autor íntegro não se sujeita ao cliente. Isto é surpreendente, mas nada incompatível com os valores apresentados, visto que Roark não exige que o cliente se sujeite à sua obra coercivamente. Se o cliente não quer, ele vai trabalhar para a pedreira e não se queixa.
E isto vem na linha de outro ponto mais geral algo surpreendente que é o desdém por quem dá importância à riqueza material. Normalmente este tipo de discurso «anti-materialista» é mais comum à esquerda, ou na direita conservadora, por exemplo por inspiração do cristianismo.
Mas Any Rand é muito radical aqui, em considerar que em «criar» é que está o verdadeiro mérito, e que um ser humano completo sente-se feliz por criar, não por viver com conforto material.
A verdade é que, apesar da distância estética entre estas duas perspectivas e as perspectivas presentes no discurso generalizado favorável à não intervenção do estado; não existe qualquer incompatibilidade entre ambas.
Any Rand pronuncia-se sobre aspectos que a outra não se pronuncia (o que é um ser humano «completo»), mas nunca defende algo que seja incompatível com o sistema que o outro advoga. A este respeito!
As incompatibilidades e inconsistências existem, e várias, tal como mencionei acima e no texto.
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