segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Um mal que aumenta proporcionalmente não deixa de ser um mal a aumentar

A Priscila Rêgo d´A Douta Ignorância deu-se ao trabalho de comparar as taxas de desemprego (totais, jovens, licenciados) em 1998 e 2010. Bom trabalho. Conclusão factual: as taxas de desemprego para os três grupos mencionados aumentaram todas sensivelmente do mesmo factor (entre 2,1 e 2,3). Conclusão opinativa (com que não concordo): os jovens licenciados não têm razão de queixa.

Não acho que seja assim tão simples. O facto mais saliente nos gráficos do desemprego do post da Priscila é aquelas colunas de desempregados a mais do que duplicarem. Está bem, duplicam quase da mesma forma para a percentagem total de desempregados, para a de jovens desempregados, e para os licenciados desempregados. Mas o facto é que duplicam, e em pouco mais de dez anos. E quando o desemprego entre os jovens, mesmo que licenciados, ultrapassa os 20%, não se pode esperar um silêncio resignado (como não se pode esperar da restante parte dos desempregados). E há outra conclusão que se pode retirar: de 1998 a 2010, o valor do factor «ser licenciado» não subiu no mercado de trabalho. Manteve-se estável. O que não pode ser considerado positivo.

Mas há outro problema, e que não pode ser deixado de fora desta discussão: o da precariedade. Uma crescente parte do trabalho, e mesmo do trabalho qualificado, é cada vez mais precária, de diversas formas: estágios, bolsas, recibos verdes, contratos a prazo, etc. Seria útil que alguém fosse comparar como evoluíram estes segmentos nos últimos 10/20/30 anos. A percepção geral é que todos aumentaram, e duvido que não tenham aumentado mais entre os jovens do que entre a população em geral. Porque o paradigma do «emprego para a vida», que não era exclusivo da função pública mas também se estendia às grandes empresas, mesmo as privadas, morreu lentamente a partir dos anos 80. Enquanto um jovem licenciado até, vá lá, 1985, só não encontraria um emprego estável se não quisesse, hoje será quase impossível.

Claro, é tudo a bem da economia e da flexibilidade, ou, sobretudo, das empresas e da competividade. Mas o que tudo isto faz à vida das pessoas não é bonito. E portanto não admira que a canção dos Deolinda se tenha tornado um lugar comum dos nossos dias.

Wikileaks (7): instantâneo do país dos brinquedos caros

Num telegrama da embaixada dos EUA em Lisboa (revelado pelo Expresso), diz-se que «no que diz respeito a contratos de compras militares, as vontades e acções do Ministério da Defesa parecem ser guiadas pela pressão dos seus pares e pelo desejo de ter brinquedos caros. O ministério compra armamento por uma questão de orgulho, não importa se é útil ou não. Os exemplos mais óbvios são os seus dois submarinos (actualmente atrasados) e 39 caças de combate (apenas 12 em condições de voar) (...) Com 800 quilómetros de costa e dois arquipélagos distantes para defender, os submarinos alemães comprados em 2005 não são o investimento mais sensato». Que os submarinos foram um negócio estúpido, já sabíamos - alguém deve ter ganho uma casa de férias (ou Portas ou outro). Mas a frase sobre o desejo de brinquedos caros é um retrato certeiro e contundente da governança portuguesa. Poderia acrescentar-se que preferimos grandes auto-estradas a cuidar das pequenas estradas nacionais, estádios de futebol ao investimento no desporto jovem, e blindados a policiamento eficaz. Não percebo portanto as insinuações maldosas sobre o senhor embaixador dos EUA - ele mostrou ter-nos entendido muito bem.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Derrota de Paulo Portas na Irlanda

Não sei quantas vezes Paulo Portas referiu a Irlanda como exemplo político. Quem o ouvia ficava com a sensação que tinha escrito o programa de governo em conjunto com o executivo irlandês, os impostos baixos, uma economia a caminho do estado mínimo, a atracção de capitais estrangeiros, etc. Claro que não referia que o investimento estrangeiro era essencialmente volátil, que as empresas investiam e os particulares compravam casa com o dinheiro que não tinham, apesar dos impostos baixos. Tudo isto coexistia com bolsas de pobreza chocantes financiadas quase exclusivamente pela União Europeia, porque o novo capitalista irlandês era contra os subsídios... Ironicamente, agora vive todo o país de subsídios internacionais por causa dos que eram contra os subsídios.
Paulo Portas é especialista em colar-se às vitórias dos outros (primeiro referendo do aborto, vitória de Durão Barroso nas legislativas, etc.) mas tem esta derrota coladinha à pele.

Al-Qaradawi, o clérigo que quer levar a revolução egípcia da praça Tahrir para a mesquita

Na primeira sexta-feira depois da queda de Mubarak, uma imensa manifestação celebratória teve lugar na praça Tahrir. Apenas a um homem foi dado o privilégio de se dirigir à multidão: Yusuf Al-Qaradawi, cheique sunita, recém-chegado de três décadas de exílio no Golfo Pérsico.

Registe-se que nesse dia não foi permitido que falasse Wael Ghonim, um dos jovens que mais simboliza a juventude egípcia mobilizada através da internete, e que aliás estivera detido de 27 de Janeiro a 9 de Fevereiro. Não: Al-Qaradawi controlava a praça.

A sua popularidade resulta, em boa medida, do programa televisivo «A chária e a vida», difundido a partir do Catar pela Al-Jazira há quinze anos (todos os domingos). As suas posições extremistas são elucidativas: defende o bombismo suicida na Palestina, a mutilação genital feminina (e a masculina, claro), punições para homossexuais e adultério, o assassinato de Salman Rushdie, e o extermínio dos judeus. Embora elogie frequentemente a Irmandade Muçulmana, já não é membro, e até se deu ao luxo de recusar liderá-la em duas ocasiões, a última das quais em 2004.

Os militares que se desembaraçaram do seu semi-fantoche Mubarak ainda não mostraram se apoiarão os jovens revolucionários por enquanto sem partido ou os islamistas da Irmandade Muçulmana. Há quem preveja que Al-Qaradawi será para o Egipto o que Khomeini foi para o Irão. Porém, 2011 não é 1979, e a história não se repete. Mas convém manter este homem debaixo de olho.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Mentalidade monárquica

Foi o que se notou neste caso.

Mudanças Climáticas: convém acordar

Dados da NASA:

Anomalia de temperatura em 1970:


Anomalia de temperatura em 2010:



O permafrost siberiano está a descongelar. A realidade está a confirmar as previsões mais pessimistas.

Convém acordar. Parece que todos continuam a dormir.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Pode um louco ser presidente?

Yes he can.
  • «Bin Laden está a drogar os jovens líbios (...) mete-lhes pílulas no nescafé e no iógurte (...) as pessoas não têm razão de queixa (...) deitaram-me um mau olhado (...) filhos, obedeçam aos vossos pais e entreguem as armas (...) eu sou como a rainha de Inglaterra, não tenho poder (...) o bin Laden e a Al-Qaeda estão a manipular-vos (...) tenho pena que tenham morrido quatro pessoas, xau»
O delírio de um louco, em directo na Al-Jazira há minutos (ver transcrições parciais aqui, aqui, aqui e principalmente aqui).

Mais mentiras de Monckton Bunkum, e informação sobre as alterações climáticas

A propósito de desmistificar mais engodos, Potholer54 aproveita para fazer algumas explicações sobre as correlações entre a temperatura e o CO2:



A não perder.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Revista de blogues (23/2/2011)

  • «Há algo que pode tornar o desfecho líbio decisivo para o futuro próximo do Médio Oriente: ao contrário da Tunísia e do Egipto, aqui a hierarquia militar dispôs-se a reprimir o povo ao lado do ditador.

    Assim, em breve teremos resolvida a dúvida "o que acontece se os generais e o poder se mantiverem unidos e mandarem os tanques contra os contestatários?".

Aprender com os erros

Não sei se fui claro. Há quem só conceba dois extremos na política externa: ou o total cinismo, com afáveis relações diplomáticas e económicas com todas as ditaduras (Líbia, Angola, Arábia Saudita, Coreia do Norte, Afeganistão dos talibã, etc); ou a ética humanitária, com cortes de relações, se necessário unilaterais, com os regimes mais execrandos, no limite os que ainda apliquem a pena de morte. Ora, entre os dois extremos há muito espaço de manobra. Se era dificilmente evitável que Portugal mantivesse, à semelhança de outras democracias europeias, laços económicos com a Líbia, país relativamente próximo e detentor de matérias primas apetecíveis, já não havia necessidade de celebrar o 41º (!) aniversário da ditadura, e de tirar fotografias amistosas na tenda do senhor Kadhafi. Há a real politik, e há o esticar-se muito mais do que o necessário. Mas, embora daí se devam tirar lições para o futuro, tudo isso está feito.

Pior, muito pior, é no meio da presente crise o senhor Sócrates manter-se calado sobre o massacre que está a acontecer na Líbia, enquanto os estadistas europeus emendam erros pretéritos e isolam internacionalmente o regime que controla Tripoli e arredores. Cameron admite que se cometeram erros, Merkel e Sarkozy apelam a sanções, e a política externa portuguesa aparece liderada pelo eterno Amado, que dispara contra a «ligeireza e os clichés» de quem fala em «Direitos Humanos e democracia», e nos transforma, de facto, no último bastião europeu do kadafismo. Neste momento, já nem se trata de privilegiar os interesses sobre os valores, já é pura estupidez: o mundo árabe está a mudar rapidamente, e só mesmo um certo indivíduo chamado Luís Amado é que ainda não o entendeu.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Eternamente Amado

Todos os analistas políticos concordam que, este ano, as celebrações da «revolução» líbia serão bastante diferentes do habitual. No 41º aniversário da ditadura, há cinco mesitos apenas, a estrela da noite foi um tal  de José Sócrates. Só três democracias estavam representadas ao nível de Presidente ou Primeiro Ministro: Malta (que é da vizinhança), a Sérvia (ok, uma «democracia») e Portugal. Não faltavam ditadores africanos (como Ben Ali da Tunísia), para o que foi uma não anunciada festa de despedida.

Eu sei, a política real, os negócios e tal. Mas Kadhafi/Cadáfi/Gadafi, ao contrário de Ben Ali ou Mubarak, não fingia estar a democratizar o regime, e todos sabíamos que era (e ainda é) um louco furioso, com uma longa história de apoio ao terrorismo e capaz de matar o próprio povo. Um pouco menos de cinismo e um pouco mais de inteligência teriam sido atitudes avisadas. A real politik tem os seus novos ricos precipitados.

Como se não bastasse, o desastre Amado fez hoje a sua enésima figura triste, quase lamentando que estejam em queda regimes com os quais havia «boa vizinhança», e queixando-se da «simples leitura ideológica em torno da democracia e dos direitos humanos». Ah, o realismo, tanto realismo. Quando os mortos chegarem aos milhares, o inefável Amado manterá o seu «realismo»? E Sócrates o seu silêncio? Para quando uma diplomacia portuguesa de que nos orgulhemos?

Há quem não fique bem nesta fotografia.

O governo quer escutar as nossas conversas telefónicas

Alberto Costa continua a sua campanha pelo direito governamental a escutar as conversas telefónicas de cidadãos que não cometeram qualquer crime. O argumento é delicioso: como o poder judicial tem o poder de ordená-las, o poder político também deve ter esse poder. É toda uma nova concepção de «checks and balances»: eu escuto-te a ti, tu escutas-me a mim. Pinto Monteiro pode escutar Sócrates, Sócrates quer escutar Pinto Monteiro. Pelo meio, o securitário Costa lá agita o espantalho do terrorismo. Faz mal: se da Tunísia e do Egipto saírem regimes democráticos e laicos, a famigerada «guerra contra o terrorismo» terá os seus dias contados. Até um dos maiores patronos do terrorismo (mas de outras eras...), o senhor Khadafi/Cadáfi, está à beira da reforma compulsiva. Ficará muito mais difícil justificar o desperdício de meios financeiros dos últimos anos, com um aumento de 65% no orçamento SIS+SIED (entre 2005 e 2009), se e quando os «terroristas» forem a votos e perderem. Nessa altura, vão dedicar-se a quê? A escutar as conversas dos líderes da oposição? Ou já o fazem?

Mais mentiras desmistificadas sobre as alterações climáticas

É por estas mentiras (e por mentirosos como este, Monckton Bunkum) e por outras (e outros) que uma posição com tão pouco apoio entre os especialistas é tão popular no discurso público:



É saudável desmistificar estas mentiras, e fazer um diagonóstico adequado da realidade enquanto é tempo. Numa sociedade democrática não basta que os especialistas tenham excelentes razões para acreditar numa teoria, é preciso que o estado do debate científico não seja distorcido - que à propaganda falsa corresponda desmistificação à altura. Este vídeo e outros são parte - bem conseguida, a meu ver - desse esforço.

Espero que as gerações seguintes não fiquem incrédulas face à cegueira e inactividade (criminosa?) da nossa geração face a este problema.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Egipto: ser ou não ser islâmico

Centenas de egípcios, principalmente cristãos coptas, pediram ontem nas ruas a revogação do artigo 2º da Constituição egípcia. Compreende-se porquê. Um Estado com religião de Estado, seja essa religião a cristã, a judaica ou a islâmica, não é um Estado para os cidadãos. É um Estado para a divindade, para o além, para o que quiserem, mas não é um Estado para os problemas reais dos cidadãos concretos no único mundo que todos temos a certeza de existir. No ano em que o mundo árabe entrou em convulsão, há clérigos como o Grandessíssimo Cheik da Universidade Al-Azhar que consideram «subversão» revogar o artigo supra. A Irmandade Islâmica deve concordar. Os homens e mulheres livres, antes pelo contrário.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

Eu, o Sócrates, e a crise - V

Se rejeito grande parte das críticas de direita e de esquerda à actuação de Sócrates, mas também rejeito a sua actuação perante a crise, qual é que acredito ser a melhor forma de lidar com a crise?

No lado das despesas a direita tem razão nas suas alegações de que não está a ser feito o suficiente. Não deixa de ser absurdo priorizar os cortes nas prestações sociais (como quer a direita...) no momento em que elas mais são necessárias. Se estas forem cortadas, deverão ser as últimas, não as primeiras.

Pelo contrário, a crise é uma oportunidade para cortar prestações a grupos de interesses cujo rendimento vem da pressão política de que são capazes, e não do serviço que prestam. Aquilo que foi feito - e bem - no que diz respeito às escolas privadas com contrato de associação, deveria ser feito a vários níveis.
Tomemos o exemplo dos Capelães nos Hospitais, nas Forças Armadas, ou dos professores de religião e moral nas escolas públicas. Tomemos o exemplo dos negócios extremamente lesivos para o estado no que diz respeito às parcerias público-privadas, muitos dos quais deveriam ser renegociados. E por aí fora...

Esta crise também representa uma oportunidade para seguir a recomendação da OCDE e aumentar significativamente a transparência nas contas públicas, o que terá como consequência menos corrupção, e menos desperdício.

No lado das receitas, esta crise seria uma oportunidade de ouro para implementar um imposto justo sobre as grandes fortunas. A própria OCDE recomendou centrar os impostos mais no património e menos no rendimento, e a implementação deste imposto é uma das causas mais importantes e sensatas à esquerda do PS. A receita obtida através deste imposto seria suficiente para que a subida do IVA não fosse necessária.
O imposto sobre as grandes fortunas teria um impacto bem mais modesto na economia que a subida do IVA, e afectaria aqueles que têm sido menos prejudicados pela crise. Até teria um impacto positivo acrescido no sentido de diminuir várias formas de especulação.

Esta crise foi também uma oportunidade para acabar de vez com o «paraíso fiscal» na Madeira, ou com o financiamento excessivo da faustosa corte de Alberto João Jardim.

Em resposta à crise tomaram-se medidas justas e sensatas (como as alterações relativas à tributação de mais-valias bolsistas), ou às vezes desesperadas mas necessárias (como os cortes de 5% e 10% aos funcionários públicos que recebem maiores salários), que muito têm sido criticadas. Tomaram-se também medidas completamente disparatadas, tais como a enorme diminuição das indeminizações por despedimento.

Mas o pior não foi o que foi feito, mas sim o que ficou por fazer: as oportunidades referidas, entre outras, foram desperdiçadas - e isso foi um erro grave.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Tunísia: a vanguarda laicista do Magrebe

Há três meses atrás, seria considerado louco quem manifestasse a esperança de ver uma manifestação pela laicidade nas ruas de uma capital do Magrebe. Pois aconteceu ontem, em Tunes.

O pretexto imediato foram eventos como o assassinato de um padre católico, uma manifestação islamista anti-semita diante de uma sinagoga, e a tentativa, por islamistas, de incendiar uma rua de prostituição. A manifestação que podemos ver no filme afirmou claramente os valores da laicidade, da tolerância e da paz. Contra o perigo islamista.

Se existe um risco real de a revolução egípcia ser anulada pelos generais ou pelos islamistas, na pequena Tunísia há sinais de um movimento laicista e democrático que poderá desmentir todos os «civilizacionistas» e xenófobos que há décadas nos tentam convencer que um país árabe de população muçulmana não poderia nunca ser uma democracia laica.
Discute-se a perseguição às prostitutas; o véu islâmico; o papel das mulheres; o lugar da religião na vida pública; no fundo, a laicidade. Vivemos tempos de incerteza, mas fascinantes. A Tunísia, país da primeira revolução democrática árabe, dá-nos esperança de que tudo corra pelo melhor.

[Esquerda Republicana/Diário Ateísta]

Os ditadores não caem todos da mesma maneira

Se um cleptocrata como Ben Ali fugiu rodeado de lingotes de ouro (foi esse o rumor), e um semi-fantoche das Forças Armadas como Mubarak passou a um regime de «residência vigiada» numa estância de férias, já  um fanático como Kadafi parece disposto a causar centenas de mortes para se manter no poder mais umas semanas. Os rumores que correm no twitter, neste momento, são assustadores.

Revista de blogues (20/2/2011)

  • «Em 18 de Fevereiro de 1911, há cem anos, a inscrição obrigatória de todos os portugueses no Registo Civil, independentemente da confissão religiosa, a República transferiu da esfera paroquial para a tutela do Estado o registo das pessoas que passaram a ser cidadãos sem necessidade de baptismo. A lei que instituiu o Código do Registo Civil precedeu a promulgação da Constituição da República Portuguesa e obrigou a que todos os registos paroquiais (baptismos, casamentos e óbitos) anteriores a 1911 gozassem de eficácia civil e fossem transferidos das paróquias para as Conservatórias do Registo Civil, recém-criadas.
    Laicizaram-se os nascimentos, casamentos e óbitos passando a actos civis as meras cerimónias litúrgicas da religião do Estado. Em breve, em 20 de Abril de 1911, a “Lei da Separação da Igreja do Estado daria à República o carácter laico que a colocou na vanguarda da modernidade.
    Não foi pacífica a medida que transferiu o monopólio dos padres católicos para os funcionários civis e concedeu a todos os portugueses o direito de que apenas os católicos usufruíam.
    Hoje, 100 anos volvidos, nem o mais empedernido dos crentes contesta a legitimidade e o alcance social da lei que a República criou num país a quem a monarquia tinha legado mais de 75% de analfabetos.» (Carlos Esperança)

Democracia: eleições e negociação

A substância da democracia é a negociação. As eleições são «apenas» o rebaralhar das cartas. De pouco serve ter uma mecânica democrática impecável, eleições livres e justas com um sistema eleitoral essencialmente equilibrado (como em Portugal), se não existe uma cultura de negociação democrática.

As discussões sobre o sistema eleitoral, quer incidam sobre os recorrentes círculos uninominais ou sobre a redução do número de deputados, falham o alvo. O que falta em Portugal é, primeiro, aceitar que todos os partidos que elegem representantes para o Parlamento representam opções legítimas e portanto respeitáveis dos cidadãos. Segundo e mais importante ainda, devemos consciencializarmo-nos, nós os cidadãos e (já agora...) a classe política, de que ou temos instabilidade com governos monopartidários ou estabilidade com governos mais abrangentes (e, honestamente, a segunda alternativa parece cada vez mais preferível).

A obsessão dos líderes partidários em governarem sozinhos é compreensível: não gostam de negociar. Mas, lá está: fazer política não se resume a ganhar eleições. Deveria ser, principalmente, negociar.

Portugal teve, de 1976 a 1987, dois governos de coligação pós-eleitoral, três da mesma maioria parlamentar que resultava de uma coligação pré-eleitoral, um governo com um acordo de incidência parlamentar e um único governo monopartidário. Desconto os governos de iniciativa do Presidente Eanes, a quem creio que se deve, em boa medida, a instabilidade desse período. De 1987 para cá, tivemos seis governos monopartidários e dois de coligação pós-eleitoral. Vinte e quatro anos de fixação governamental monopartidária, com um curto interregno, em que uma única vez se negociou uma coligação pós-eleitoral (jamais um acordo permanente de incidência parlamentar).

Os governos de coligação não são raros na Europa. No momento em que escrevo, é essa a situação na Alemanha, no Reino Unido, na França e na Itália. Democracias mais antigas do que a nossa, com cidadãos talvez mais habituados à ideia de que o poder é transitório, necessariamente limitado e frequentemente partilhado.

O sentimento de «bloqueio político» que por vezes se sente em Portugal dissipar-se-ia se aceitássemos que as eleições não se destinam a eleger um Primeiro Ministro, nem sequer a escolher uma maioria, mas apenas a designar representantes. E se os políticos aceitassem que a sua obrigação é negociar com quem está.

[Publicado originalmente no Delito de Opinião.]

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Aquecimento global e degelo polar - alguns mitos relacionados

Mais um excelente vídeo de Potholer54, sobre algumas mentiras que envenenam o debate público sobre as políticas que devem ser tomadas para fazer face às alterações climáticas:

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Revista de blogues (18/2/2011)

  • «Which two nations still reserve places in their parliaments for unelected religious clerics, who then get an automatic say in writing the laws the country's citizens must obey? The answer is Iran... and Britain.
    In 2011, the laws that bind all Brits are voted on by 26 Protestant bishops in the House of Lords who say they are there to represent the Will of God. They certainly aren't there to represent the will of the people: 74 per cent of us told a recent ICM poll the bishops should have to stand for election like everybody else if they want to be in parliament. These men use their power to relentlessly fight against equality for women and gay people, and to deny you the right to choose a peaceful and dignified death when the time comes.
    And here's the strangest kicker in this strange story: it looks like the plans being drawn up by the Liberal Democrat leader Nick Clegg, now Deputy Prime Minister in coalition with Conservative David Cameron, to "modernise" the House of Lords will not listen to the overwhelming majority of us and end these religious privileges. No - they are poised to do the opposite. Sources close to the reform team say they are going to add even more unelected religious figures to parliament.(...)

Wael Ghonim


Entrevista de Wael Ghonim, o executivo da Google detido no dia 27 de Janeiro no Egipto e libertado no dia 7 de Fevereiro. Nesse mesmo dia, deu esta entrevista. São jovens como este que estão a surgir como os protagonistas da revolução egípcia. (Via Le Monde Diplomatique.)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

As responsabilidades assumem-se

É impressionante ler o depoimento do chefe da CIA (Tenet) sobre como foram na tanga do iraquiano «Curve Ball» sobre as armas químicas inexistentes. Ou a CIA é completamente incompetente e os «informaçõezinhas» enfiam qualquer barrete que confirme os preconceitos deles, ou então está ele próprio a contar-nos uma treta. (Fischer acha que Tenet sabia que «Curve Ball» era mentiroso desde antes de 2005.)

Mas merece respeito quem, como Colin Powell, assume que fez o discurso mais importante da sua carreira quase integralmente baseado em informação falsa, e pede «explicações» à CIA e ao Pentágono. Para a generalidade dos portugueses, deve parecer quixotesco. Mas as responsabilidades exigem-se. E assumem-se.

(E, honestamente, acho que esta incapacidade dos portugueses de assumir responsabilidades quando algo corre mal tem muito que ver, desgraçadamente, com o fundo católico da cultura nacional.)

Supracomandante Angela

Apesar de um dos PIIGS, a Espanha, ter tido melhor execuções orçamentais (tanto défice como dívida) do que a Alemanha durante 7 anos consecutivos, isso não tem impedido Angela Merkel de reduzir as causas da actual crise do Euro às más execuções orçamentais alheias.
A chanceler há poucas semanas arrogava-se até ao direito de sugerir políticas microeconómicas ao estilo alemão que, independentemente das suas possíveis virtudes, foram decisões do foro interno dos países membros.
Ontem a chanceler nomeou um dos seus boys para presidente do Bundesbank, o banco central alemão, fazendo orelhas mocas do mandamento número um da política económica que a Alemanha defende há décadas: uma forte independência dos bancos centrais.

Subcomandante Louçã

Ainda o Bloco dava os primeiros passos e uma militante de base me contava que na freguesia dela, uma freguesia urbana onde o Bloco tem mais implementação, havia algumas pequenas querelas pessoais para decidir o candidato à junta.
Mais recentemente tivemos o tirar de tapete a Sá Fernandes, problemas com a justiça da única autarca do BE, a falta de consulta interna sobre o apoio à candidatura de Manuel Alegre, os obstáculos colocados à oposição interna quando esta quis convocar uma convenção nacional, etc. O Bloco era um partido que até há pouco fingia não ter um líder claro na sua hierarquia e ainda só tem um "coordenador da comissão política", apesar de Louçã ser o político que há mais tempo está à frente de facto de um dos 5 maiores partidos e da sua foto estar omnipresente na página do Bloco.
O recente anúncio da moção de censura provou ao mais ingénuo, ferrenho e distraído militante do Bloco que o Bloco é um partido como todos os outros, não só pela jogadinha política implícita no anúncio mas pela decisão ter passado ao lado da Mesa Nacional do partido (o que já levou a várias demissões).
Não vejo isto como algo grave, antes pelo contrário. Talvez deixe a altivez e contribua para convergências à esquerda.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

2010 é ano mais quente de sempre

(publicado no portal Esquerda.net)

O ano de 2010, juntamente com 2005, registou uma temperatura média global (temperatura continental e oceânica) de 0,62ºC acima da média de temperaturas do século XX. Na tabela abaixo verifica-se que 2010 e 2005 são os anos mais quentes desde que se regista a temperatura global, desde 1880. A mesma tabela mostra que entre os 10 anos mais quentes registados, nove ocorreram durante os últimos dez anos: 2001 a 2007, 2009 e 2010. A anomalia representa em quanto a temperatura média do respectivo ano ultrapassou a média de temperaturas do século XX.

Apesar destes serem dados preliminares, sendo passíveis de pequenas correcções, é evidente que na década anterior se acentuou consideravelmente o aquecimento global e, perante os dados de 2010, essa tendência poderá manter-se na actual década. O facto de o Sol ter passado recentemente por um mínimo de actividade relativamente longo só reforça a gravidade do aumento de temperatura registado.

No seu relatório de 2010, os cientistas do NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration) chamam a atenção para a influência na temperatura e na precipitação global do fenómeno climático La Niña, especialmente forte no final de 2010. Mas, numa tabela onde se registam os 10 fenómenos climáticos mais importantes do ano, a NOAA considerou a vaga de fogos na Rússia e as inundações no Paquistão como os acontecimentos mais significativos.

Se a clareza destes dados não forem suficientemente fortes para convencer os líderes europeus, americanos e chineses a mudar a lógica de desenvolvimento, ficaremos certamente entregues à arbitrariedade de acontecimentos climáticos catastróficos, até finalmente a classe política tomar medidas adequadas.

A resposta era 4

A resposta correcta à adivinha que coloquei era a 4. O senhor que afirmou «Deus destruirá a semente dos árabes e há de extirpá-los do mundo. Estes árabes são patifes amaldiçoados, que choram lágrimas de crocodilo enquanto matam pessoas; é proibido ter piedade deles», foi o rabino Ovadia Yosef, ex-Rabino Chefe de Israel e «líder espiritual» de um poderoso partido parlamentar, o Shas. Quanto ao senhor que afirmou que «os israelitas legitimaram o homicídio das suas próprias crianças ao matarem as nossas. (...) Os israelitas legitimaram a morte dos seus em todo o mundo ao matarem os nossos. (...) A vitória chegará, com a vontade de Deus», foi Mahmoud Zahar, líder do Hamas.

Na caixa de comentários, houve uma resposta correcta, a do TGF. Quatro outros comentadores apostaram na resposta 5, com a suspeita, em pelo menos um caso, de que se trataria de dois cristãos (e não de um judeu e um muçulmano). Na verdade, dificilmente se encontram apelos ao genocídio partindo de sacerdotes cristãos em anos recentes. As frases citadas são de 2001 e 2009, respectivamente.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

É oficial: as armas de «destruição maciça» eram uma grandessíssima treta

E chegou o dia em que um engenheiro químico aparece, em vídeo no The Guardian, a explicar que foi ele quem inventou a treta das «armas de destruição maciça» iraquianas. Foi hoje. O senhor chama-se Rafid Ahmed Alwan al-Janabi, é iraquiano e explica que mentiu porque não gostava do regime de Saddam e porque os serviços «de informações» alemães ameaçaram deportar-lhe a mulher e o filho para Marrocos. 100 mil mortos depois, diz-se «orgulhoso» do que fez.

Há duas conclusões a retirar desta historieta edificante.

Primeira: dos senhores da fotografia, o único que ainda exerce um cargo político é o português. Disse que «vira» as provas das famosíssimas «armas de destruição maciça». Sabemos agora que, na melhor das hipóteses, viu uma minuta de um depoimento falso. De um homem que os serviços «de informações» alemães já sabiam, desde o ano 2000, ser um mentiroso. Melhor seria que se demitisse.

Segunda: os serviços ditos «de informações» são uma ameaça para a democracia. Quer fabriquem «informação» falsa a mando dos superiores hierárquicos, ou por burrice e ingenuidade (que insistam em se designar por «inteligência» é uma ironia trágica...), o efeito da sua existência é, de forma cada vez mais clara, enganar a opinião pública e viciar o debate democrático. Seria higiénico extinguir o SIED e o SIS.

De como os media, correndo atrás de uma moda, passaram, numa semana, do verdadeiramente extraordinário ao completamente banal

  1. «Mulher esteve morta em casa durante nove anos» (Rinchoa, Sintra, notícia de 9/2)
  2. «Um homem que estaria morto há três meses foi encontrado pelas autoridades na sua habitação» (Cantanhede, notícia de 12/2)
  3. «O ex-agente da PSP Ernesto Henriques, de 68 anos, esteve morto em casa durante 10 dias» (Amadora, notícia de 14/2)
  4. «Um homem de 67 anos que estava morto há uma semana no seu apartamento (...) foi (...) encontrado, após os vizinhos terem estranhado a sua ausência» (Ourém, notícia de 14/2)
  5. «O vizinho, que tinha as chaves de casa do idoso, afirmou que o idoso não era visto há alguns dias» (S. Mamede de Infesta, Matosinhos, notícia de 14/2)
  6. «O alerta foi dado pelo senhorio que estranhou não ver o homem (...) há cerca de dois dias (...) a GNR diz (...) que o homem deveria estar morto "há um ou dois dias"» (Laranjeiro, Faro, notícia de 14/2)
Sugestão para o jornal de amanhã: «vizinho encontrou idoso, morto e sozinho em casa, quando lhe bateu à porta para lhe devolver o troco de uma moeda que o falecido lhe tinha emprestado para ir ao café, dez minutos antes».

    A culpa é do material

    «A responsabilidade não é nossa, é das máquinas», diz Silva Pereira.

    segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

    O Bloco censura-se a si próprio

    A moção de censura do Bloco de Esquerda já conseguiu dividir o próprio campo político que a propõe: a Renovação Comunista faz críticas tão contundentes que até me interrogo como votará o respectivo deputado; Daniel Oliveira, «voz» informal do sector-BE nos media, critica sistematicamente todas as possíveis razões da moção; e a oposição interna pede convergência com o PCP.

    Como nem o BE parece desejar que o PSD vote ao seu lado, entende-se que o objectivo principal do BE será «descolar» do PS. O que é no mínimo estranho, pois não é necessário que nos façam o desenho: semanas depois de uma campanha eleitoral em que todos entendemos que boa parte do PS e uma parte significativa do BE convivem mal lado a lado, que o PS e o BE são partidos diferente é claríssimo.

    Esta moção de censura, para já, serve para expor as tensões internas do BE. E, se Passos Coelho for cínico quanto baste, servirá para antecipar as legislativas.

    Adivinha

    Qual a confissão religiosa dos sacerdotes citados?
    • (I) «Deus destruirá a semente dos **** e há de extirpá-los do mundo. Estes **** são patifes amaldiçoados, que choram lágrimas de crocodilo enquanto matam pessoas; é proibido ter piedade deles.»
    • (II) «Os **** legitimaram o homicídio das suas próprias crianças ao matarem as nossas. (...) Os **** legitimaram a morte dos seus em todo o mundo ao matarem os nossos. (...) A vitória chegará, com a vontade de Deus.»
    Respostas:
    1. São ambos muçulmanos;
    2. São ambos judeus;
    3. (I) é muçulmano e (II) é judeu;
    4. (I) é judeu e (II) é muçulmano;
    5. Nenhuma das respostas anteriores.
    Aguardo palpites dos leitores.
    [Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

    sábado, 12 de fevereiro de 2011

    Musharraf implicado no assassinato de Bhutto

    No momento do assassinato de Benazir Bhutto, escrevi:
    • «Musharraf tem o caminho cada vez mais desimpedido. Tenham sido os islamistas por ele, ou ele pelos islamistas, pouco interessa. Reforçaram-se.»
    Não me surpreende portanto ler agora o seguinte:
    • «Um tribunal paquistanês emitiu hoje um mandado de detenção para o ex-Presidente Pervez Musharraf, exilado em Londres, no âmbito do inquérito ao assassinato da antiga primeira-ministra Benazir Bhutto. (...) Pervez Musharraf é acusado de, na altura, ter conhecimento dos planos dos taliban contra Benazir Bhutto mas de nada ter feito para evitar o atentado em Rawalpindi.» (Público)
    Assim vai o Paquistão: os talibã são parte da luta interna.

    sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

    Futuro aberto no Egipto

    Apesar de vários sinais, ninguém tinha previsto que o povo egípcio ia conseguir provocar a queda do regime corrupto, violento e cleptocrata de Hosni Mubarak em 18 dias. 18 dias. O povo egípcio está de parabéns. Demonstrou uma dignidade e coragem moral surpreendentes.
    No entanto, na Europa e nos Estados Unidos, em vez de celebrarmos a coragem dum povo, preocupamo-nos com o perigo islâmico no Egipto e no resto do Médio-Oriente. O subtexto destas análises – feitas na maior parte das vezes por pessoas que não conhecem a região e que de uma maneira geral não acreditam em mudança - é a de que a liberdade e a democracia não são valores que os « fanáticos do Médio Oriente » possam compreender.
    Esta é a propaganda diária que sai de Tel Aviv, e foi com esta mesma propaganda que Mubarak obteve até agora todos os anos dois mil milhões de dólares do contribuinte norte-americano.
    Nesta altura é saudável lembrar as previsões de Washington e do seu Richelieu na altura do 25 de Abril em Portugal. Henry Kissinger, conselheiro de Nixon, estava convencido que Portugal ia tornar-se num estado cliente de Moscovo com quotas pagas ao Pacto de Varsóvia. Quanto ao Dr. Mário Soares e às suas aspirações democráticas, ora que as arrumasse, pois ele era « o Kerensky da revolução portuguesa », disse na altura o Cardeal Richelieu de Washington.
    Hoje ninguém sabe o que vai acontecer ao Egipto. Construir uma democracia requer tempo, muitos recursos, paciência e sorte, muita sorte. O cenário de um Egipto controlado pela Irmandade Muçulmana é o delírio vendido por Tel Aviv (que tem muitas razões para estar preocupado; Mubarak era o seu único aliado na região) e pelos think-tanks neo-conservadores de Washington. Os especialistas que conhecem bem o Egipto dizem que esse cenário é altamente improvável: a Irmandade conta com apenas 15% de apoio do eleitorado e teve um papel muito discreto nos protestos. A população egípcia é diversa, jovem e bastante secularizada. Além disso, como dizia ontem Timothy Garton Ash, « O Cairo de 2011 não é Teerão em 1979. O Cairo de 2011 é o Cairo de 2011 ». Os supostos paralelos da história não servem para nada, pois a história não se repete. Cada revolução é única.
    O futuro do Egipto está aberto. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã ou nas semanas que se seguem. Os pessimistas prevêem a instauração de regimes islamistas na região. Esse é um cenário possível. Mas outro cenário provável é a de um golpe militar com um regime de generais « à la turque ». E igualmente possível é o de criação de estruturas políticas multipartidárias eleitas democraticamente e sustentadas pelo estado de direito.
    Confesso a minha ignorância sobre o Egipto, mas acho que nesta altura o seu futuro está aberto. Penso também que em noites como as de hoje devemos dar o tal salto no escuro e partilhar das aspirações dos homens e mulheres comuns do Egipto que nos últimos 18 dias perderam o medo e se atreveram a sonhar com uma vida melhor.

    As revoluções no Magrebe

    Não é fácil escrever sobre as revoluções em curso nos países árabes. Ou tudo corre bem e se constituem democracias laicas na Tunísia e no Egipto (eventualmente alhures), e então recordaremos 2011 como o 1989 árabe, ou esses países caem no precipício islamista, como aconteceu em 1979 no Irão. Não me parece que haja solução intermédia.

    As revoltas em curso não foram desencadeadas por forças islamistas organizadas (que, todavia, existem), e muito menos por partidos marxistas clássicos (mas há sindicatos). São, em grande parte, a obra de jovens socializados e politizados pela internet (incluindo o twitter e o facebook), que partilham a cultura política libertária globalizada. Dificilmente se imagina estes jovens voltados para Meca, mas o final de uma revolução não se descortina facilmente no seu início. Em qualquer caso, até ao final de 2011 saberemos se  são válidas alguns dos pressupostos que dominaram o debate político sobre o islamismo, desde há mais de uma década (como «a democracia é impossível em países islâmicos», «a maioria dos muçulmanos apoia o jihadismo» ou ainda «a democracia exporta-se pela ocupação militar»).

    Não acredito na capacidade preditiva de ideologia alguma. Prefiro olhar para a demografia, por detrás das multidões na rua. Tanto o Egipto como a Tunísia são países muito jovens: um em cada quatro dos tunisinos e um em cada três dos egípcios têm quinze anos ou menos. Na Tunísia, 94% dos jovens (15-24 anos) já estão alfabetizados, e a taxa de natalidade está em queda, já nos dois filhos por mulher. Dois terços da população está urbanizada. No Egipto, a taxa de natalidade ainda está nos três filhos por mulher, e só 43% da população está urbanizada. Parece mais fácil acreditar numa democracia laica na Tunísia do que no Egipto. E  há ainda outra razão para ser mais optimista quanto à Tunísia.

    Mubarak saiu, Suleiman que o siga

    O povo egípcio está na rua, o momento é de celebração, mas nenhuma revolução democrática estará completa sem que haja eleições livres, uma nova Constituição e um parlamento com uma maioria laica. Nenhuma das condições está garantida, mas os militares que detém o poder terão as suas razões (económicas) para tentar que não haja sobressaltos. O povo das ruas tem a tarefa mais difícil pela frente: não deixar que os novos senhores esvaziem esta vitória de sentido. Até porque Suleiman, o novo «homem forte» do Egipto, é uma figura sinistra, um monstro pior do que Mubarak (ler mais abaixo).

    Mubarak caiu

    Foi uma vitória da Liberdade. Esperemos que outras se sigam, e que no Egipto esta vitória não dê lugar a derrotas...

    quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

    Sempre achei que cheirava a esturro

    Mas o cheiro torna-se mais intenso...

    Comissão Europeia vai investigar compra de submarinos pelo Estado português.

    Paulo Portas, Paulo Portas, a ver se é desta que te apanham.

    Pequena dúvida 2

    O Bloco quer censurar o governo ou o PCP?

    Note-se que há uma enorme diferença entre dizer que se pode eventualmente avançar... e avançar mesmo.

    quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

    43 mulheres mortas por violência doméstica em 2010

    A UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) divulgou que em 2010 foram mortas 43 mulheres em Portugal por violência doméstica. A esta violência juntam-se a das centenas de mulheres e de crianças que foram vítimas de maus tratos. O machismo autoritário, o marialvismo e a rigidez de costumes continuam demasiado ancorados no nosso modo de vida. E não vão desaparecer de um dia para o outro. Mas as mulheres que não aceitam este modo de vida são cada vez mais. Tal como refere a líder da UMAR "As mulheres estão a mudar. Elas dizem que não, que não querem uma relação violenta. E eles não aceitam essa decisão."

    Os centros de ajuda que foram criados nos últimos anos são um apoio extraordinário, mas são claramente insuficientes dados os números desta tragédia. Enquanto acharmos normal a verborreia machista e tradicionalista, enquanto classificarmos o marialvismo de bonacheirão, enquanto não respeitarmos o sexo oposto na sua plenitude, isto não pára. Não é com centros de ajuda nem com prisões que se muda a mentalidade de trogloditas dispostos a matar mulher e filhos e de se suicidar em seguida.

    Número de deputados na Europa

    Sobre a proposta (ciclicamente repetida) de redução do número de deputados, é sempre bom colocar as coisas em perspectiva.

    Foi isso que foi feito nestes três textos do blogue Margens de Erro.

    O último deles mostra, em escala logarítmica, os diferentes países europeus representados em termos da população e número de deputados na câmara baixa. Mostra também um ajuste linear feito com todos esses pontos.

    É curioso verificar que, feito este ajuste linear, Portugal é o país mais próximo da linha resultante. Face à realidade europeia é impossível argumentar que temos mais ou menos deputados que aquilo que seria de esperar para um país com a nossa dimensão.

    É como ficaríamos nós, de acordo com a proposta de diminuição para 180 deputados?

    Não digo em termos de menor representatividade, e maiores distorções dos resultados; de maior dificuldade de eleger pequenos partidos; de favorecimento injusto dos maiores, ou do silenciamento da sociedade civíl. Nem tão pouco na forma como poupar meia dúzia de tostões numa instituição que gere milhões resulta geralmente em gastos adicionais várias ordens de grandeza acima da poupança proposta.

    Falo apenas em termos da nossa posição relativa no contexto europeu. Foi para responder a esta pergunta que adaptei a imagem do blogue Margens de Erro, para incluir a proposta de 180 deputados:

    terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

    A CNPD diz não a Amado

    Obviamente, a Comissão Nacional de Protecção de Dados deu parecer negativo ao «Acordo para entregar a identidade dos portugueses aos EUA».
    • «Abusivo, excessivo, demasiado genérico, difícil controlo de pesquisas indevidas, sem garantia da protecção dos dados transmitidos para os EUA e falta de salvaguarda da pena de morte na partilha de informação. Estas são algumas das conclusões a que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) chegou na sua análise ao acordo que o Governo português assinou com os Estados Unidos. Este tratado prevê a troca automatizada de dados pessoais, impressões digitais e perfis de ADN.» (Diário de Notícias)
    Sendo o parecer não vinculativo, resta agora saber se o subserviente Amado, que anda há vários meses  a pôr-se em bicos de pés para qualquer coisa que vem a seguir, vai ter a distinta lata de pôr o «Acordo...» em votação no Parlamento. Ou se recua.

    Pequena dúvida

    O PCP quer censurar o PS ou o BE?

    domingo, 6 de fevereiro de 2011

    Descubra Portugal enquanto há comboio

    Editorial de Paula Ferreira no Jornal de Notícias:

    A CP é uma empresa surpreendente. Convida-nos, através de spots publicitários, a dar "uma escapadela com amigos e descobrir Portugal de comboio", como competente agência de turismo. E, ao mesmo tempo, continua a fechar linhas. Uma a uma, sem complacências a ajudar ao despovoamento.

    Apresse-se, pois, se tenciona responder ao desafio da ferroviária portuguesa e partir à conquista do país ao som do pouca-terra, pouca-terra. Tanta é a pressa de excluir troços ferroviários que o gestor do site da CP, por certo, dificilmente acompanhará o ritmo. Na página online da companhia, o visitante é induzido em erro. Não existem nove propostas, como diz, "À descoberta de Portugal a bordo do comboio regional". Eram nove, agora são oito. No ramal de Cáceres, em Portalegre, o comboio deixou de apitar no primeiro dia de Fevereiro. (...)

    Serão estes cortes uma inevitabilidade? Não haveria outra solução: ao invés de encerrar, tornar estas linhas atractivas, verdadeiras alternativas ao automóvel?

    O caminho parece ser outro. Há muito tempo, é certo, não ouvimos os políticos a dar qualquer sinal de preocupação com a despovoamento que devasta o país. Isso também faz parte do passado. E assim se avança. Fecham urgências hospitalares, fecham serviços de atendimento permanente, acabam os comboios. Até que não reste ninguém a morar por esses sítios. Quando a CP - empresa do Estado, da qual se espera um serviço público - fechar as linhas que dão prejuízo, fica no ponto para mudar de mãos. Quem a comprar não terá, seguramente, de prestar qualquer serviço público - o objectivo será mais prosaico, o lucro.

    P.S. Nem só o interior é alvo do desmantelamento da CP. A linha de Leixões, pensada para transportar 2,9 milhões de pessoas por ano, fechou. Sem que a estação que lhe daria sentido (no hospital de S. João) chegasse sequer a nascer.

    sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

    Encruzilhada

    (Imagem via Adeus Lenine.)

    Frases que marcam

    • «(...) a classe média (a verdadeira: salários líquidos a partir de 2500 euros mensais) (...)» (Eduardo Pitta)

    Revista de imprensa (4/2/2011)

    • «The great Czech dissident Vaclav Havel outlined the “as if principle”. He said people trapped under a dictatorship need to act “as if they are free.” They need to act as if the dictator has no power over them. They need to act as if they have their human rights. Havel rode that principle to the death of Soviet tyranny and to the Presidential Palace of a free society. The Egyptians are trying the same – and however many of them Mubarak murders on his way out the door, the direction in which fear flows has been successfully reversed. The tyrant has become terrified of “his” people – and dictators everywhere are watching the live-feed from Liberation Square pale-faced and panicked.

    quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

    Sobre o ataque a reguladores e ao parlamento

    O livro de "The Best Way to Rob a Bank Is to Own One" (University of Texas Press, 2005) de William K. Black é um verdadeiro manual sobre as artimanhas do sector financeiro para pôr fora-do-jogo eleitos e reguladores. No final dos anos 80, o contribuinte americano pagou um preço altíssimo pela desregulação do sector financeiro, graças à castração do poder dos reguladores e dos eleitos políticos. Sem escrutínio, o sector bancário usou e abusou de esquemas fraudulentos que produziram prejuízos pesadíssimos pagos posteriormente pelo contribuinte.

    O caso BPN já nos custou 5 mil milhões de euros injectados na CGD (o maior investimento público de sempre). No entanto quase nada foi feito para reforçar a regulação do sector financeiro, como aumentar o número de efectivos das entidades reguladoras, de preferência bem pagos para estarem mais imunes a actos de corrupção. Ou ampliar os poderes de fiscalização do parlamento. Quando se ouve Jorge Lacão a pedir uma redução do número de deputados superior a 20% simultaneamente com a redução dos vencimentos das entidades reguladoras, parece que estamos a assistir à sequela do livro de William Black. Na sua obra, Black (um regulador) descreve com detalhe como este tipo de ideias era proposto por políticos americanos não eleitos, geralmente após uma noite regada de champanhe em veleiros cheios de acompanhantes de luxo pagas pelos bancos.

    Merkel quer rever a Constituição da República portuguesa

    Em Setembro de 2009, escrevi que as eleições mais importantes para o futuro de Portugal eram as da Alemanha. Não estava a brincar, só a exagerar (um bocadinho). A crise tornou-me um mero aprendiz de Zandinga: cada vez mais a Alemanha, via União Europeia, se torna o efectivo poder governante dos países periféricos.

    Chegamos agora ao extremo de a senhora Merkel desejar que a Constituição da República portuguesa (e as de outros Estados) passe a incluir uma disposição especificando o valor máximo do défice. Ora, eu não sei quem atribuiu à senhora Merkel o poder de fazer propostas para alterar a nossa Constituição. Que me recorde, ela nunca foi, sequer, candidata à Assembleia da República portuguesa. E Portugal não é uma província da Alemanha para adoptar uma cópia digitalizada das disposições constitucionais alemãs, por muito que Amado (o eterno servo de toda as potências externas) esbraceje em bicos de pés.

    Espectáculo papal sim, ajuda ao terceiro mundo não

    O governo liberal-conservador de David Cameron, soube-se agora, não teve escrúpulos em desviar quase dois milhões de libras, previstos para ajuda ao terceiro mundo, para financiar... a visita do sr. Ratzinger.

    A notícia está a causar escândalo no Reino Unido, onde a pompa e excesso da visita do papa, em Setembro passado, é escrutinada com rigor. Sabe-se já que custou, no total, cerca de dez milhões de libras.

    Entretanto, não sabemos qual foi o custo da visita do mesmo senhor a Portugal, em Maio. Provavelmente, foi muito superior.

    [Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

    quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

    Haja um governo que dê a volta a isto!

    • «Dos 231 milhões de viagens de comboio realizadas em 1988, passou-se para 131 milhões em 2009, uma redução de 43 por cento. (...) Ontem, foi retirado o serviço ferroviário regional em mais 138 quilómetros de vias-férreas, depois de, no ano passado, se terem encerrado 144 quilómetros de linhas (com a promessa de reabilitação que não aconteceu). (...) Em 1990, quando Cavaco Silva era primeiro-ministro, reduziram-se abruptamente 700 quilómetros de vias-férreas, sobretudo em Trás-os-Montes e no Alentejo. O resultado foi que as linhas principais, vendo-se amputadas dos ramais que as alimentavam, ficaram com menos gente. (...) Os números do Portugal do betão e do alcatrão são significativos: o pequeno país periférico tem 20 metros de auto-estrada por Km2 contra 16 metros que é a média europeia. Mas na rede ferroviária só possui 31 metros por Km2 contra 47 metros da média da União Europeia. (...) Em 20 anos, nuestros hermanos, que apostaram no TGV, passaram de 182 milhões de passageiros dos seus velhos comboios dos anos oitenta (muitos deles, à época, bem piores do que os portugueses) para 467 milhões de clientes da ferrovia. (...) Entre 1992 e 2008, por cada euro investido no caminho-de-ferro eram aplicados 3,3 euros na rodovia. Durante este período, a Refer investiu 5,9 mil milhões de euros e os contratos da Estradas de Portugal para construção de novas vias rodoviárias atingiam 19,8 mil milhões de euros.» (Público)
    Cavaco, Guterres, Durão Barroso, Santana Lopes e Sócrates: todos diferentes, todos iguais na opção pelas auto-estradas contra o caminho de ferro. Um dos maiores erros estratégicos do último quarto de século tem sido esta aposta num meio de transporte mais caro, mais perigoso, mais susceptível a congestionamentos, que perpetua a nossa dependência da heroína (vulgo crude), e que serve os dois terços da população necessários para ganhar eleições mas marginaliza o outro terço (idosos, jovens, pobres). Se tivesse existido em Portugal, no último quarto de século, um governo que compreendesse a real utilidade e racionalidade de um serviço público de transportes ferroviários, por oposição à aposta em auto-estradas, teria tomado essa opção. Não houve.

    terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

    Krugman: Europa melhor que EUA face à crise

    Este ensaio de Paul Krugman no New York Times sobre a crise na União Europeia é muito certeiro e está cheio de ideias interessantes. Apesar de longo vale bem a pena ler até ao fim.
    Destaco a passagem da comparação com os EUA. Quem já viajou pelos EUA sabe do que Krugman está a falar. Dá-se de caras com uma miséria chocante de que já perdemos a memória na Europa. Muitos jovens sem tecto e velhinhos sem reforma a dormir em jardins ao fim de uma vida de trabalho em que alguns acumulavam dois empregos.

    "Not long ago Europeans could, with considerable justification, say that the current economic crisis was actually demonstrating the advantages of their economic and social model. Like the United States, Europe suffered a severe slump in the wake of the global financial meltdown; but the human costs of that slump seemed far less in Europe than in America. In much of Europe, rules governing worker firing helped limit job loss, while strong social-welfare programs ensured that even the jobless retained their health care and received a basic income. Europe’s gross domestic product might have fallen as much as ours, but the Europeans weren’t suffering anything like the same amount of misery. And the truth is that they still aren’t.

    (...) The Europeans have shown us that peace and unity can be brought to a region with a history of violence, and in the process they have created perhaps the most decent societies in human history, combining democracy and human rights with a level of individual economic security that America comes nowhere close to matching."

    As más ideias de Lacão

    Jorge Lacão avança duas ideias para «reformar» o sistema político e «aproximar eleitores e eleitos»: reduzir o número de deputados e tornar os executivos camarários homogéneos. São ambas más ideias.

    A primeira é má ideia porque um Parlamento com 180 deputados (e não 230) teria como único efeito reduzir, ou impossibilitar, a representação das minorias, o que não faria o eleitorado sentir-se mais representado nem diminuiria a «distância» entre eleitores e eleitos. Pelo contrário.

    A segunda é má ideia porque as câmaras municipais necessitam de maior e não menor fiscalização sobre o executivo. Um executivo partidariamente homogéneo seria mais opaco, e portanto menos fiscalizável.

    Mais urgente seria podermos votar, para a Assembleia da República, em partidos e candidatos (X na lista + nº de candidato da lista). Mas, com o regimento actual da AR, nada impediria que o candidato da nossa escolha fosse substituído a meio do mandato...

    Revista de blogues (1/2/2011)

    No Arrastão, o Daniel Oliveira escreve:

    «Em quase todas as eleições os jornalistas chamam à atenção para a abstenção.[...]

    E isto, a mim, enerva-me. Que metade do País que se deu ao trabalho de ir votar gaste tanto tempo a falar da metade do País que se esteve nas tintas. Que fritemos a cabeça a tentar descortinar as motivações da inação de quem preferiu ficar em casa. Que os cidadãos que levam a sério essa sua condição e querem ter autoridade para criticar os eleitos se sintam na obrigação de fazer o papel de ama-seca de quem não quer saber.
    [...]
    Sou contra o voto obrigatório. Exatamente porque não gosto da ideia de que quem não quer decidir seja determinante nas nossas grandes escolhas. Acho que a abstenção, num país livre, é um direito. Mas, por favor, não peçam a quem se preocupa, pensa e escolhe para perder tanto tempo com quem não o faz.
    [...]
    Querem um número que merece reflexão? 277.835 cidadãos saíram de casa, foram à mesa de voto e votaram branco ou nulo. Esses sim, quiseram dizer alguma coisa. Os outros ficaram calados. E quem cala consente


    No Que Treta!, o Ludwig Krippahl escreve:

    «[...]Se os nossos impostos fossem um pagamento pela educação dos nossos filhos, seria razoável pedir um reembolso se puséssemos os miúdos na escola privada. Mas não é esse o caso. O Estado não é um negócio de vender educação a quem pagar. O papel do Estado, e dos impostos, é garantir as condições necessárias para podermos vender o nosso trabalho, ganhar dinheiro e ter a liberdade de o gastar. Uma dessas condições é a educação ser acessível a todos, mesmo que não a possam pagar. Quem julgar que só lhe interessa a educação dos seus filhos, lembre-se que a sociedade em que vive é composta, principalmente, pelos filhos dos outros.

    Além destas confusões acerca de qual é o direito à educação, de quem é esse direito, e de qual o papel do Estado e dos impostos nisto tudo, há também um mal-entendido acerca do sector privado. Tanto o ensino privado como o ensino público são um direito, mas não são o mesmo direito. O ensino público justifica-se pelo direito à educação, que deve ser acessível a todos, ao passo que o privado resulta do direito de cada um gastar o seu dinheiro como entender. Quem quer pagar colégios finos para os seus filhos tem esse direito, e quem montar colégios finos tem o direito de aproveitar a procura para ganhar algum. Isso não é o direito à educação, mas apenas o direito de comprar e vender.

    Por isso, o papel do Estado no ensino privado deve ser somente regular o negócio para que não se prejudique as crianças. De resto, não faz sentido subsidiar o lucro de privados com dinheiro público, seja com vouchers, contratos de associação ou outro esquema qualquer. Esse dinheiro faz falta para garantir o direito à educação.
    »

    Noutro texto, acrescenta o seguinte:

    «[...] Assim, o que compete ao Estado garantir é o direito a uma educação que permita, a cada criança, desenvolver-se como membro pleno da sociedade e consciente dos seus direitos. Que lhe permita "tomar parte livremente na vida cultural da comunidade [e] participar no progresso científico". Que lhe dê realmente "liberdade de pensamento, de consciência e de religião", "liberdade de mudar de religião ou de convicção» e «liberdade de opinião e de expressão". Só depois de se garantir estes direitos fundamentais é que os pais podem escolher se querem ter os filhos no ensino público ou pagar o ensino privado. Mas isso já não é com o Estado, nem é coisa que os outros pais tenham obrigação de pagar.»