quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Eu, o Sócrates, e a crise - II

A direita apresenta um caso persuasivo.

Nas últimas eleições, as propostas mais liberais do PSD estavam escondidas no curtíssimo programa eleitoral que Sócrates teve a sabedoria de desenterrar. Mas, com Manuela Ferreira Leite à frente, as prioridades do PSD não pareciam assim tão diferentes das do PS, com duas diferenças fundamentais: a "verdade" e a "poupança".

A insistência na verdade não foi assim tão eficaz na altura, mas depois das eleições vieram a nú informações relevantes sobre o negócio da TVI. Falarei sobre isto num texto futuro.

A insistência na contenção de depesas também foi pouco persuasiva em véspera de eleições. Sócrates explicou, com sucesso, que quando importou conter despesas fê-lo com mais eficácia que Manuela Ferreira Leite. Conseguiu diminuir o défice onde ela falhou, e prejudicou menos a economia no processo. Explicou também que, perante uma crise daquele tipo, os estados deveriam responder estimulando a economia, gastando mais. Cortar as despesas naquele contexto iria implicar um desemprego muito superior, um crescimento económico fraco, muitas agruras para os portugueses. Manuela Ferreira Leite alegou «antes agora que mais tarde, o nosso endividamento é excessivo, isso vai levar a uma calamidade».

Depois das eleições, Sócrates desmembra-se em medidas extraordinárias atrás de medidas extraordinárias, e pede sacrifícios aos portugueses alegando «estamos à beira de uma calamidade, o nosso endividamento é excessivo».

O caso da direita «nós bem que tivemos razão, os portugueses deveriam ter-nos dado ouvidos» dificilmente poderia ser mais persuasivo.

Há ironias engraçadas. Manuela Ferreira Leite já não está na direcção do PSD, e a actual direcção distinguiu-se por, logo na altura, ter discordado do foco na poupança. Passos Coelho foi a favor do TGV, e não foi contra a diminuição do IVA quando ela ocorreu, só para dar dois exemplos.

Mas porque discordo eu de um caso aparentemente tão forte?

Imaginemos que um amigo meu insiste sem parar para que eu lhe empreste 5€ para jogar nas slot machines. Eu defendo que é uma péssima opção, que provavelmente vai perder dinheiro; e ele insiste que não, que ele tem uma pata de coelho milagrosa, que vai multiplicar o dinheiro e fazer um bom negócio. No fim, contrariado, empresto-lhe a nota, continuando a avisar que vai fazer asneira. Ele joga e ganha 20€. Quem tinha razão? A meu ver, nesta situação eu sempre tive razão. Mas depois da sua vitória será mais difícil convencê-lo disso.

Em Portugal os juros da dívida estavam na casa dos 4%. Imagine-se que temos um investimento de rentabilidade 5%. Se o valor mais provável para os juros futuros for a sua manutenção, o investimento é a melhor opção. Mas, se os juros sobem para valores na casa dos 6%, então não investir é uma opção mais vantajosa.

Retraír o investimento numa situação de crise vai prejudicar o crescimento, e pode até provocar uma recessão. Mas para determinada retracção, podemos sempre imaginar qual o diferencial entre os crescimentos (sem essa retracção e com essa retracção) e verificar qual a relação entre esse valor e os juros. Numa situação, a retracção pode ser a melhor opção a longo prazo; noutra pode ser desastrosa - provocando desemprego, criminalidade e problemas vários no curto prazo sem sequer ajudar a pagar a dívida no longo prazo.

Nesse sentido, as políticas que o PSD de Manuela Ferreira Leite defendia eram desadequadas na opinião de vários especialistas, e mesmo na opinião de instituições internacionais tais como a OCDE, o FMI, etc... E até mesmo - repito-me - na de Passos Coelho.

Mas, tal como exemplo das slot machines, a realidade veio a dar-lhe a razão que ela não tinha. De forma inesperada vieram a descobrir-se falcatruas na contabilidade grega; falcatruas nas agências de rating que, classificando de forma excessivamente positiva os chamados activos tóxicos, tornaram-se excessivamente cautelosas para recuperar a credibilidade, e depois o efeito auto-referêncial da profecia auto-cumprida: se os juros sobem no país X, ele fica com mais dificuldade em pagar, logo, têm de subir ainda mais, e por aí fora.

Os juros em Portugal disparam, e a retracção que antes não fazia sentido torna-se a melhor opção.

Só que a direita pode sempre dizer «nós bem avisámos», enquanto Sócrates segue precisamente as políticas antes propostas por Manuela Ferreira Leite. As políticas serão seguidas e prejudicarão a economia, aumentarão o desemprego, e «quando se tem de explicar uma posição, o debate está perdido». Os chavões que o PS hoje usa para justificar as suas medidas são aqueles que o PSD usou nas útilmas legislativas.

As críticas da direita ao governo do PS são, portanto, persuasivas para muitos. Mas, pelas razões que expliquei, não me convencem.

2 comentários :

Miguel Carvalho disse...

"a realidade veio a dar-lhe a razão que ela não tinha."

Eu acho isto fundamental. A MFL queria reduzir a dívida externa porque a sua cartilha assim recomendava (nem vamos falar do que fez enquanto ministra), não por ter prevido o que aconteceria. Como dizes e bem a ideia geral era que os estados deveriam aumentar o consumo público. A própria UE nunca pareceu prever bem a reação dos mercados (bom, talvez porque ela é absurda). Voltou a acontecer no fim de 2010 com as primeiras medidas drásticas.. até a rígida Alemanha achava que iria ser suficiente, mas os PIGS continuaram a não se safar nos mercados.

João Vasco disse...

«(nem vamos falar do que fez enquanto ministra)»

pois... mesmo que ideologicamente ela seja moderada dentro do PSD, a sua (desastrosa) passagem pelo ministério das finanças fez com que eu tivesse bastante medo da vitória dela nas eleições.