sexta-feira, 26 de março de 2010

Reforma de Saúde nos EUA: uma traição

Parte importante da esquerda europeia rejubila com a «reforma de Saúde» que passou na câmara dos representantes dos EUA.

A meu ver, só a ignorância a respeito do que se passou justifica o júbilo.

Quando Bill Clinton iniciou a sua luta por uma reforma de saúde, o partido Republicano, amedrontado com uma reforma com pés e cabeça, apresentou uma contra-proposta. Essa contra-proposta que foi bem recusada na altura, é muito semelhante à lei que Obama propõe.


Vejamos: actualmente existe pouca concorrência entre seguradoras. Isto tem como consequência que os EUA sejam de longe o país (componente privada somada à pública) onde a saúde é mais cara (cerca do dobro do segundo classificado), e no entanto tenham um sistema de saúde que, no global, tem a mesma qualidade que o nosso, abaixo de muitos países desenvolvidos (por volta do trigéssimo lugar no ranking mundial).

Se este problema é grave, como será possível agravá-lo? Há uma maneira: instituir a obrigatoriedade de adesão a um seguro de saúde. Assim, se as seguradoras aumentarem os seus custos em bloco, as pessoas perdem a derradeira escolha de recusar o dito seguro. Se a cartelização é a regra e não a excepção - uma regra que aliás é permitida por lei, ao contrário do que acontece nos outros negócios - deixa de existir neste momento qualquer incentivo para que as seguradoras não respondam à maior procura (porque obrigada pelo estado) com preços sufocantes.
O partido Democrata teve a habilidade de pegar num problema grave, em que as seguradoras obtinham lucros pornográficos, e agravá-lo, propiciando ainda maiores lucros a estas seguradoras.

Estas deixam de poder recusar pessoas com «condições pré-existentes», sim. E isso é positivo. Mas podem cobrar-lhe até ao triplo do custo que cobram aos outros clientes. Custo esse que deve disparar, agora que as pessoas perderam a possibilidade de recusar os seus serviços.

Mas não foi isto que Obama prometeu, e não é isto que os norte-americanos querem. A «opção pública» seria uma seguradora do estado que garantiria a concorrência com as privadas. Que faria com que estas não pudessem subir excessivamente os preços. A implementação desta seguradora iria fazer com que o estado poupasse vários biliões em transferências para as seguradoras (de acordo com os resultados obtidos por uma comissão bipartidária do Senado). Iria ser melhor para os cofres do estado, iria ser melhor para os cidadãos, iria ser o cumprimento de uma promessa eleitoral central.

A desculpa para esta traição é a falta de votos. Visto que os Democratas vão avançar no senado com «reconciliação», precisariam de 51 votos senatoriais; algo que alegam não ter. Mas existem 51 declarações de diferentes senadores a dizer que apoiam esta opção. E se o voto fosse feito, mesmo que a opção não passasse, os eleitores saberiam quais os senadores fieis ao eleitorado, e quais os vendidos. Actualmente a desculpa continua a ser: «não há votos».
A Casa Branca tem lutado contra a opção pública, e pressionado sempre na direcção contrária. Obama traiu os seus eleitores, e esta lei que vai passar é o testemunho da sua traição.

Não lamentarei se perder as próximas eleições. Quem faz pouco de quem o elegeu não desmerece governar um só mandato.

17 comentários :

João Vasco disse...

O ideal seria que Obama perdesse nas primárias contra um Democrata a sério, mas estou consciente que isso é perfeitamente impossível.

João Vasco disse...

.

Anónimo disse...

A MedicAide e a MediCare já fazem atualmente a cobertuura de saúde para idosos e menores. Acontecia que, até agora, apelava-se aa responsabilidade de cada um no que respeita aos seus gastos com saúde.

Os custos do seguros vão, obviamente aumentar, e muito, nos EUA. Obama estendeu uma espécie de passadeira vermelha para a eleição de um presidente de direira nas próximas eleições. E nem foi por falta de aviso (recorde-se a última eleição estadua nos EUA)
;

"um sistema de saúde {eua] que em média tem a mesma qualidade que o nosso"
Onde foi buscar esta ideia?

João Vasco disse...

Fui buscar a um ranking mundial, se não me angano da OMS, em que ficámos um lugar acima ou abaixo (já n me lembro) dos EUA. Em 34º lugar, se a memória não me falha.

João Vasco disse...

angano = engano

Anónimo disse...

incrivel ke os "bons" EUA tenham sistema de saúde inferior ao de Cuba (a satanica stalinista ilhota do Caribe)

Anónimo disse...

Ao Stefano

"incrivel ke os "bons" EUA tenham sistema de saúde inferior ao de Cuba"

Só é pena que os cubanos não se apercebam disso:

http://www.midiasemmascara.org/mediawatch/noticiasfaltantes/comunismo/10937-hospital-mazzorra-cuba-26-assassinados.html

Anónimo disse...

midia sem mascara ou Direita sem mascara??

foto armadas só convencem os otarios

Xavier Brandão disse...

Eu também já vi esse ranking de que fala e nunca mais me esqueci da posição do sistema de saúde português: 12º lugar.

O SNS pode ser um sistema com muitos defeitos, mas que apesar de tudo conseguiu conquistas formidáveis: por exemplo, a taxa de mortalidade infantil em Portugal é a vigésima-primeira mais baixa a nível mundial(ver aqui: http://www.nationmaster.com/graph/hea_inf_mor_rat-health-infant-mortality-rate&int=-1 )!

E o sistema de saúde dos EUA, o país mais rico e poderoso do Mundo, ocupa a honrosa trigésima-sétima posição desse ranking - dois lugares acima do sistema cubano, que tem "gastos" per capita por ano em despesas de saúde muitíssimo inferiores às dos EUA, como fez ver Michael Moore em Sicko. Por exemplo, em 2006, os EUA "gastaram" 6714$ per capita e Cuba... 363$(Pode consultar estes dados aqui: http://apps.who.int/whosis/data/Search.jsp ).

Por comparação, a França, que ocupa o primeiro lugar da tabela, teve "gastos" nesse mesmo ano de 3554$ por pessoa.

E ainda há quem defenda com unhas e dentes que é só imitar os EUA e fica tudo resolvido.

Consegui encontrar o ranking aqui: http://www.photius.com/rankings/healthranks.html

Não consegui encontrá-lo no site da OMS.

João Vasco disse...

Xavier:

Creio que existem rankings diferentes. Mas os EUA costumam estar no fim da lista dos países desenvolvidos quanto à qualidade do seu sistema e são sempre(!) o primeiro no que diz respeito aos custos - apesar de tudo o critério é mais objectivo para os custos que para a qualidade.

Anónimo disse...

sistema de saude dos EUA acima do de Cuba??? Será???

Filipe Castro disse...

Vocês não percebem: a América é governada pelas empresas. O Obama representa apenas os cidadãos das cidades, que lêem e que não acreditam que Deus é Americano. Não manda nada. Não tem acesso às televisões sem condições muito apertadas. Eu acho que neste contexto o Obama foi um herói que conseguiu dobrar os fascistas e os corruptos mais desavergonhados no partido dele e votar uma reforma que melhora efectivamente a vida de 40 milhões de cidadãos. E no dia a seguir obrigou o Congresso a apertar os lone sharks dos seguros de educação. Se ganhar as novas eleições é possível que consiga dobrar as seguradoras e liberalizar este sistema de monopólios regionais que as empresas impuseram. Se perder, estamos todos tramados. Eu ando há 3 anos a ver se arranjo emprego na Europa, POR CAUSA da saúde.

Anónimo disse...

então os EUA são corporatocracia.. e não democracia....

Xavier Brandão disse...

João Vasco, concordo consigo: os resultados dos rankings não devem ser tomados como à letra. E sabe-se muito bem que há quem faça deles instrumento de políticas de destruição de serviços públicos: a publicação dos resultados das escolas nos exames nacionais pelo público sob a égide do neoliberal JMF são uma amostra de como se pode inquinar um debate recorrendo a tabelas classificativas muito discutíveis.

Dito isto, o facto de, quaisquer que sejam os critérios que tenham sido utilizados pela OMS para a classificação dos sistemas de saúde dos países ter resultado num 37º lugar para os EUA - quando são eles que mais gastam em termos relativos - é um bom indicador da merda de sistema que aquilo é.

E quanto a Portugal, continuo a acreditar que o SNS - apesar da tentativa de destruição de que é alvo pelo destestável P"S" - tem aspectos extremamente positivos.

Filipe Castro, o Obama não consegui dobrar ninguém, e muito menos os fascistas que controlam a América. Pior do que isso, deitou-se na cama com eles. Esse imbecil - que como diz o João Vasco, faz pouco de quem o elegeu - que antes das eleições acusava "the Washington practice of crafting bills by negotiating in secret with lobbyists and industry interests" e prometia emitir no C-Span todas as negociações, com o intuito dizia ele "to prevent a health care bill from being negotiated based on secret deals with the health care and pharmaceutical industries", que é que faz quando chega a altura de "dobrar" os fascistas? Precisamente aquilo que antes denunciava: negoceia secretamente com o lobby das farmacêuticas, a PhRMA - negando que o tenha feito - até que um jornalista do Huffington Post traga a público um memorando que revelava precisamente o negócio firmado entre a Casa Branca e a indústria farmacêutica e que, entre outras coisas, punha fora de questão a possibilidade importar medicamentos do estrangeiro e a possibilidade do Estado, com seu imenso "leverage", de negociar os preços com a dita indústria.

Isto é um exemplo da política à Obama: "business as usual". E é bom lembrar que ele foi eleito em circunstâncias extremamente favoráveis que lhe davam a possibilidade de pôr na ordem esses criminosos sem vergonha de Wall Street e mudar (em inglês, change) muita coisa. Era só, como fez Roosevelt, ouvir as pessoas e dizer-lhes: "and now, make me do it".

E só mais uma coisa: nunca estive na América, mas já me farta um pouco ouvi-lo dizer constantemente que os americanos são uns pacóvios, imbecis e etc. Primeiro não acredito nisso. Segundo, isso é a típica arrogância que o "averaga american" ressente da parte dos "liberals" como o Filipe Castro. E sabe que mais, tem servido muito bem esse estado de coisas aos Republicanos que têm sabido muito bem surfar na onda populista. E a esquerda americana limita-se a dizer que a culpa é dos morcões da América profunda e o ciclo fecha-se e continua. Depois de tantas derrotas, já era tempo dos liberais pensarem um pouco no que andam a fazer e da postura que tomam.

Filipe Castro disse...

As pessoas insistem imenso que o presidente devia fazer isto e aquilo. Um presidente não manda nada: se representa as empresas, como Bush, pode fazer imensas coisas, incluindo invadir países, se representa as pessoas, pode fazer pequenas ordens excutivas e negociar com os representantes das empresas (congressistas e senadores).

Acho que eu sou arrogante quando digo que a América rural é pacóvia, ignorante, estúpida, violenta e racista. E acho que os liberais deviam fazer o quê? Como é que se fala com os 80 milhões de cristãos evangélicos que estão do lado da indústria farmacêutica, dos bancos que lhes mandam cartões de dão crédito com 17% de juros, e que acreditam que a ciência é uma cilada do satanás? Como acham que o mundo vai acabar em 2012 (nos anos noventa era em 2000, depois 2001, etc.) não querem pensar no futuro nem no ambiente?

Veja isto: http://www.youtube.com/watch?v=qQcrM4HQQyg

João Vasco disse...

Filipe Castro:

Estou convencido que não tens razão, pois Obama está a lutar contra o seu próprio partido, contra os elementos mais prgressistas, aqueles que mais o apoiaram.

Um exemplo é a forma como Howard Dean tem sido colocado à margem, para que Obama possa traír os seus eleitores à vontade.

O Xavier Brandão tem razão quando diz que a "fúria popular" contra a crise está a ser aproveitada pelos republicanos, quando tinha tudo para poder ser aproveitada pelos democratas.
As decisões de Obama não estão a ser apenas uma desgraça no que diz respeito à "policy", também o são no que diz respeito à "politcs". Vão custar muito ao partido democrata e à esquerda, em votos e influência.

Tens de te lembrar que mesmo entre o eleitorado republicado a "opção pública" era muito mais popular que esta reforma sem ela. Esta reforma tem um apoio popular de cerca de 30%- é brutalmente impopular e é fácil de perceber porquê. Eu também seria contra esta reforma, que agrava o défice e premeia as seguradoras como se os seus lucros fossem insuficientes.

A "opção pública" tinha uma popularidade entre os 60% e os 80%, e isto sem sequer Obama e outros defenderem publicamente os seus méritos - pelo contrário: atacaram quem o fez.

Xavier disse...

Faço minhas as palavras do João Vasco.

Filipe Castro, concedo que há muito de verdade no que diz. Há algo que vai mal com essa gente, que são as primeiras vítimas das políticas niilistas das elites.Mas acho que é preciso ir mais fundo do que limitar-nos a dizer que "América rural é pacóvia, ignorante, estúpida, violenta e racista." Mas aquilo que interessa fazer - em vez de andar com discursos moralistas - é tentar perceber no que é que a esquerda está a falhar para não ser ouvida (e serem ouvidos aqueles que mais prejuízo trazem aos americanos) e o que devemos fazer "to organize and fight back".

Sugiro-lhe também uma entrevista dada pelo Noam Chomsky (título: "Chomsky: We Shouldn't Ridicule Tea Party Protesters"):

http://www.youtube.com/watch?v=mWs6g3L3fkU&feature=related