terça-feira, 26 de outubro de 2010

E pronto

Atravessei uma rua numa passadeira em Lisboa. Era um local com visibilidade perfeita, já que não havia carros estacionados. Um carro, o único carro da rua, não gostou de ter que me deixar passar; enquanto eu atravessava, o condutor, que não chegou a parar, acelerou, de forma intimidatória, de modo a fazer-me atravessar mais depressa. Soltei um palavrão alto. Parecia que o condutor estava com muita pressa, mas afinal teve tempo o suficiente para travar e perguntar-me se "não sabia que tinha que parar antes de entrar numa passadeira". Após a incitação à violência promovida pelo Automóvel Clube de Portugal que relatei aqui, cenas como esta tornar-se-ão cada vez mais vulgares.

6 comentários :

Luís Lavoura disse...

O Filipe desculpe, mas essa cena - que já ocorreu comigo por diversas vezes - nada tem a ver com as palavras grosseiras do presidente do ACP. Essas cenas já se passavam antes de o grosseiro presidente do ACP ter aberto a boca para expender as suas alarvidades. Estas cenas e as palavras do presidente do ACP apenas traduzem o estado de espírito visceral de uma parte, felizmente cada vez menor, dos automobilistas portugueses, e que é a seguinte: "quem tem mais automóvel tem mais direitos". Note-se que os automobilistas seguem esse lema não apenas na sua relação com os peões, mas também na sua relação uns com os outros.

Ricardo Alves disse...

Muitos automobilistas portugueses usam o carro como uma arma de agressão. Não sei se é novo-riquismo ou algum problema psicológico complexo que esteja muito generalizado...

Luís Lavoura disse...

Ricardo Alves, é em parte novo-riquismo. Temos que nos lembrar que os pais de praticamente todos os atuais portugueses conduziam carros de bois ou, na linguagem popular, eram "carroceiros das berças".

Mas não é só novo-riquismo. O automóvel - e a sua qualidade - é também um símbolo, um estatuto de poder e de direitos. Entre os portugueses está instituída a convicção de que quem anda de automóvel tem direito a andar mais depressa do que quem anda a pé, e de que quem tem um automóvel melhor (mais potente, etc) tem direito a andar mais depressa do que quem tem um automóvel pior. Portanto, um peão deve desviar-se da trajetória de um automóvel - porque este tem o direito de passar, de ir mais depressa. E um automóvel menos bom tem o dever de se afastar do caminho de um automóvel melhor - porque este último tem o direito de circular mais depressa e de não ver o seu caminho impedido por um ser inferior.

Trata-se de uma estrutura ontológica lusitana.

Filipe Moura disse...

Luís, por "atitude" do motorista eu não me refiro o não querer parar na passadeira: refiro-me a estar convencido de que essa atitude é legítima (e o peão é que tem que parar, e só passa se ele quiser). Antes da campanha do ACP (que em Portugal é visto como uma "autoridade") estes automobilistas não estavam convencidos de que tinham a razão do seu lado, mesmo que procedessem desta forma.

Ricardo Alves disse...

Luís Lavoura,
concordo.

João Carlos disse...

Mas só em Portugal é que se assiste a essa arrogância do dinheiro. Vivi em Inglaterra e bastava colocar o pé na passadeira que os condutores paravam os seus bons veículos imediatamente. Mas ai de quem atravessar fora das passadeiras.
Resido actualmente na Alemanha e posso garantir que há muitos bons carros por aqui. Na passadeira o peão tem sempre, mas sempre, prioridade. A menos que o condutor seja turco, nesse caso tudo é possível.
Já estive várias vezes em Itália e é o salve-se quem puder.Pior que em Portugal.
Parece que a indisciplina do Sul é geral.
Temperamentos, ou falta de educação?