segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Wikileaks: o povo ao poder?

Não partilho de todo o entusiasmo de metade da blogosfera a propósito das recentes revelações do Wikileaks. Embora reconheça a indiscutível relevância de muitas das
informações reveladas (algumas delas repetidas aqui no Esquerda Republicana), questiono seriamente a relevância de outras, que mais me parecem um exercício de coscuvilhice que outra coisa (nomeadamente a maior parte das informações que envolvem diplomatas, que ao fim e ao cabo são a maior parte das informações). Mais grave ainda, há informações que nunca deveriam ter sido reveladas, como os locais mais vulneráveis para ataques terroristas aos Estados Unidos. Tal facto não justifica, no entanto, as perseguições, ameaças e boicotes que têm sido promovidos pelos governos (especialmente o americano) em nome do silenciamento do Wikileaks. Um governo de confiança nunca poderia proceder desta forma. Concordo com a Shyznogud (a quem agradeço a banda desenhada): se o Wikileaks fez algo de errado (e seguramente algumas coisas fez), usem-se os tribunais e meios próprios de um estado de direito e não de ditaduras.
Dito isto, continua a fazer-me confusão este entusiasmo voyeurista em torno das revelações. Talvez por com a idade me estar a tornar cínico e descrente na natureza humana, a maior parte do que é ali revelado não me aquece nem arrefece. (Repito: há revelações bastante relevantes.) Mas toda esta excitação provinciana para com o que os americanos pensam do nosso primeiro ministro, do presidente e do sistema partidário (e tantos outros exemplos) é isso mesmo: provinciana. Na melhor das hipóteses. A pior, e também a tenho verificado, ao ver blogues que costumo ler transformados em versões politizadas do The Sun ou do defunto 24 Horas, referindo-se aos políticos que os povos elegeram como eles, julgando chegada a hora da nossa vingança contra eles, fez-me ver que a maior parte das pessoas não se apercebe de que uma democracia tem de ter segredos, e que por ter segredos não deixa de ser uma democracia. O grave será se deixarmos de confiar nos políticos dessa democracia, algo que eu em poucos ou nenhuns casos vi exposto. O grave não é que a democracia tenha segredos. Uma democracia que não tenha segredos estará muito mais exposta e será muito mais frágil perante os outros regimes (democracias ou não) que tenham os seus segredos. E não há maneira de acabar com eles, a não ser de um modo totalitário ou com um governo mundial. É perante estas constatações e as execuções sumárias que se seguiriam que eu, democrata, tenho medo do povo ao poder (não do poder do povo, algo bem diferente).

25 comentários :

Ricardo Alves disse...

Filipe,
se achas que as democracias devem ter segredos, deverias explicar quais e porquê. E não basta dizer que o «governo da rua» (que parece ser aquilo que te preocupa) seria pior. Porque não há neste momento qualquer perigo de um «governo da rua» e de «execuções». O que está a acontecer é que «eles» (sim) estão a perder o privilégio de nos enganar.

Já sabemos que:
1) A Clinton mandou espiar funcionários da ONU, incluindo o Secretário-Geral, e recolher dados biométricos;
2) Que os governos alemão e espanhol foram pressionados para fechar os olhos a crimes de sangue (pelo menos num caso, de um inocente que fora torturado);
3) Que havia um espião no governo da Alemanha;
4) Que Amado e Sócrates mentiram sobre o transporte de prisioneiros ilegais;
5) Que o presidente do BCP se ofereceu para fazer espionagem;
6) Que a Arábia Saudita e o Paquistão continuam, documentadamente, a ser os maiores responsáveis pelo terrorismo islamista.

Preferias continuar sem saber isto? Ser enganado?

O governo existe porque nós o sustentamos. E existe para nos servir. Não para nos enganar, para espiar outros ou para proteger outros governos que querem cometer crimes.

E a democracia não se protege violando a democracia. E os Direitos do Homem não se protegem violando os Direitos do Homem.

Temos o direito e o dever de saber o que os governos fazem em nosso nome e com o nosso dinheiro. E de apontar aquilo de que não gostamos.

Tudo dito, concordo contigo que a wikileaks não deveria ter revelado a lista das fábricas de medicamentos que os EUA consideram essencial. Embora não considere essa revelação mais grave do que as mentiras do sinistro Amado ou que as violações de Direitos Humanos que se tentaram ocultar.

E também acho que não deveriam ter revelado os despachos sobre o magrebino que vive com uma ucraniana loura ou sobre os «Batman e Robin» das estepes. Mas, aí, por uma razão totalmente diferente: porque distraem as pessoas de revelações muito mais importantes que estão a surgir.

Ludwig Krippahl disse...

Filipe,

Concordo que muitos dos 250,000 telegramas, tal como a vasta maioria dos relatórios sobre o Iraque e Afeganistão, não terá qualquer interesse para quase toda a gente.

No entanto, há um princípio importante aqui, que não é voyeurismo. Até agora, por limite da largura de banda, compreendia-se que, por omissão, a comunicação social desse apenas a notícia digerida, seleccionando por nós a informação a que teríamos acesso. Hoje em dia não há razão para isso. Os jornais podem seleccionar e noticiar os telegramas mais relevantes, mas não há razão para esconder tudo da vista do público, só por esconder. Se alguma coisa for escondida terá de haver uma razão boa para isso, e por “boa” quero dizer bem melhor do que “ah, isso a vocês não importa saber”.

Quanto a um governo não poder funcionar de forma aberta, penso que se for verdade, é importante perguntar porquê e ver primeiro se não podemos resolver os impedimentos que houver. Porque certamente haverá muita vantagem em tornar possível que funcione dessa forma.

Ide levar no déficite ide disse...

e para quê para o poder ficar cheio de cascas de laranja e garrafões de tintol

e não é o povo

alguns membros de grupos que conseguem usar a internet para divulgar as suas crenças

neste caso ideologias de cariz anarquista

mas podiam tê-lo feito para chantagear e denegrir competidores


como aconteceu quando o grupo Parmalat em Portugal começou a ganhar quota de mercado

utilizou-se um incidente para esmagar o que era naquela altura o leite mais higienizado e sem misturas de sobras de condensado, leite em pó e restantes
como passou a ser regra em muitos dos leites de baixo preço

se o competidor tem meios pode esmagar outro

o gasóleo do Jumbo pode destruir o seu motor

compre na GALP
a BP também não presta
boicotem a BP envenenou as nossas lagostas

Filipe Moura disse...

Ricardo e Ludwig, eu não sou contra a divulgação dos Wikileaks (e sou contra os esforços que têm sido feitos, e sobretudo o modo como têm sido feitos para impedir a divulgação). Sou simplesmente contra o uso que muita gente tem dado a essa divulgação. Compreendido?

Ricardo, eu explico no texto por que uma democracia pode (na prática deve) ter segredos. Deixa-me fazer eu esta pergunta: achas que uma democracia não deve ter segredos?

Ricardo Alves disse...

Filipe,
para justificar que uma democracia tenha segredos, argumentas que as ditaduras e as democracias podem tê-los. Sinceramente, parece-me um fraco argumento. Há muitas coisas que algumas democracias fazem que eu não quero que a democracia portuguesa faça.

E quanto ao que os EUA pensam dos nossos líderes e partidos políticos, parece-me que te estás a queixar do 5 Dias. Se é isso, deverias ter feito linque para eles.

Filipe Moura disse...

Ricardo,
não respondeste à minha pergunta.

É também ao Cinco Dias que me refiro, mas não só. Não quero neste caso particularizar, até porque como escrevi a atitude que verifico é muito mais generalizada (até no Blasfémias). Quem nos dera que fosse só no Cinco Dias. Qualquer lista de links que fizesse seria incompleta. Independentemente disso, deixa-me decidir o que linko e o que não linko, ok?

Miguel Carvalho disse...

Filipe,
assino por baixo.

Ricardo Alves,
(e como sempre) muitas das afirmações que fazes não estão nos documentos.

Ricardo Alves disse...

Miguel,
agradeço que me digam onde é que as minhas afirmações não são sustentadas pelos documentos - nos posts que tenho escrito, tenho tido o cuidado de citar ao máximo o conteúdo dos despachos, de preferência a fazer citações de jornais.

Hás-de reparar que ainda não escrevi, por exemplo, sobre isto:

http://www.publico.pt/Mundo/diplomatas-revelam-que-socrates-permitiu-aos-eua-utilizar-as-lajes-para-repatriar-presos-de-guantanamo_1470628

Pela simples razão que a frase do El Pais de ontem à noite que gerou a bola de neve de notícias das últimas não se encontra sustentada em nenhum dos despachos já divulgados. Estará num de Setembro de 2007 que ainda não apareceu.

Ricardo Alves disse...

Filipe,
lincas o que quiseres.

Quanto à tua pergunta: não, as democracias, em tempo de paz, não devem ter segredos. É justamente por se insistir que as democracias devem ter segredos que se tem assistido a práticas reiteradas de violação dos direitos humanos cometidas por democracias.

Agradeço, agora, que respondas à minha pergunta: por que razão as democracias devem ter segredos? E que assuntos podem ser segredo dos servidores de uma democracia?

Miguel Carvalho disse...

Ricardo,

já tivemos esta discussão várias vezes e sobre vários assuntos aqui no blogue. (Bom, diga-se que eu sou muito meticuloso neste tipo de coisa).

Neste caso concreto, no teu ponto 4) por exemplo, dizes que o PM mentiu (o que pode bem ter acontecido, mas não vejo provas disso ainda). Ora o governo PS sempre mostrou abertura para receber prisioneiros de Guantanamo, e os documentos tornados púlbicos referem-se apenas a transporte DE e não PARA Guantánamo.

Miguel Carvalho disse...

Ricardo,
o Filipe já respondeu com um exemplo concreto: "locais mais vulneráveis para ataques terroristas aos Estados Unidos."

Filipe Moura disse...

Ricardo, a resposta à tua pergunta está no texto:

"Uma democracia que não tenha segredos estará muito mais exposta e será muito mais frágil perante os outros regimes (democracias ou não) que tenham os seus segredos. E não há maneira de acabar com eles, a não ser de um modo totalitário ou com um governo mundial."

Ou seja, uma democracia pode ter segredos. Na prática, uma democracia tem que ter segredos.

Filipe Moura disse...

"E que assuntos podem ser segredo dos servidores de uma democracia?"

Francamente, não sei responder a esta OUTRA pergunta de uma forma adequada. Um especialista em Ciência Política diria melhor que eu (é claro que a resposta não é única).

Reparei que nas tuas respostas falas muito na democracia portuguesa. Não partilho, como sabes, esse teu isolacionismo, e uma das razões é que nenhuma democracia pode não ter segredos... sozinha (ao contrário do que pareces defender).

João Vasco disse...

Miguel,

O Ricardo Alves mostrou claramente as provas de que se mentiu ao Parlamento: a acta em que Sócrates afirma não terem existido pedidos por parte dos EUA relativos ao transporte de prisioneiros, e um texto da embaixada em que se referem aos pedidos que os EUA fizeram.

Miguel Carvalho disse...

João,
os pedidos são pedidos de repatriamento, DE Guantanamo. O governo quando negou os pedidos referia-se a transporte PARA Guantanamo.
Como eu disse (e disse o governo também) é óbvio que haveria pedidos de vôos DE Guantanano, já que o governo se disponibilizou para receber detidos.

Nota: eu não estou a discutir a moralidade dos actos do governo, apenas a alegada mentira

Ludwig Krippahl disse...

Miguel Carvalho,

Quando perguntado se tinha havido voos de levando prisioneiros para Guantanamo, Sócrates não respondeu que só tinha havido voos de Guantanamo. O que ele disse, categoricamente, foi:

«respondo, com o maior gosto: nunca nenhum membro deste Governo, nunca este Governo foi informado ou recebeu qualquer espécie de pedido de autorização para sobrevoo do nosso espaço aéreo, ou para aterragem na Base das Lajes, de aviões que se destinassem ao transporte ou à transferência de prisioneiros. Nunca aconteceu neste Governo, nem temos no Ministério dos Negócios Estrangeiros registo que possa indiciar que essa consulta existiu no passado.

Quero dizer-lhe, Sr. Deputado, que o relatório recentemente divulgado não ajuda à verdade e é profundamente mistificador, porque rejeito e refuto, em absoluto, a acusação infundada que é dirigida ao nosso país de que Portugal ajudou, ou apoiou, alguma transferência de prisioneiros»


DN

Miguel Carvalho disse...

Ludwig,
isso está no post do Ricardo, logo eu li isso antes de responder.
Leia também o que escrevi antes de responder.

Ricardo Alves disse...

Miguel,
o Sócrates respondeu explicitamente «transferência de prisioneiros», o que tanto serve para ir como para vir. Negou o trânsito nos dois sentidos, não apenas num.

E não mistures o acolhimento de prisioneiros em território português com o trânsito de prisioneiros. O despacho da embaixada não se refere ao acolhimento, mas sim à transferência de detidos ilegais: «US request to repatriate Guantanamo detainees via Portugal (...) to grant our request to repatriate Guantanamo detainees through Lajes».

Ricardo Alves disse...

Filipe,
já que, ao invés de elaborares sobre o que pensas, te limitas a repetir o que escreveste, faço-te a pergunta ao contrário: que mal viria ao mundo se a democracia X (*) deixasse de ter segredos? Repara que a pergunta é inseparável da outra pergunta a que continuas a fugir: que matérias devem ser segredo? As instalações militares ou de medicamentos (que, todavia, são públicas...) que consideramos essenciais? Os crimes de tortura eventualmente cometidos por agentes do Estado? As vendas de armas a ditaduras? As pressões que a democracia Y(*) fez sobre a democracia X(*) para esquecer um crime cometido por agentes de Y(*)?

E depois há a pequena questão de saber quem define o que é segredo. Para te ajudar: eu não tenho problemas de maior com o segredo judicial. Mas que não é um segredo do governo. É do poder judicial. E tem regras bem definidas.
(*) Para evitar que me acuses de «isolacionismo».

good churrasco ó auto de café.... disse...

enfim tantas ilusões

Filipe Moura disse...

Ricardo, dos exemplos que dás só as instalações militares ou de medicamentos merecem permanecer em segredo. Nenhum dos outros.
Eu não estou em condições de te dar uma resposta completa ao que perguntas (quanto muito posso responder caso a caso, mas não me vou dar ao trabalho). Não sou cientista político. É claro que, para o que defendes, a resposta é simples. Mais uma vez, e como na climatologia, é análogo ao famoso cálculo do campo elétrico do cavalo. A política/governação não é tão simples, Ricardo, para todos podermos dar palpites.

Nota que falares na "democracia X", separada das outras, é isolacionismo.

Ricardo Alves disse...

Filipe,
o que me parece mais inquietante na tua linha de argumentação é a tua insistência em subalternizar os cidadãos, primeiro face ao Estado, agora face aos «cientistas políticos».

O entusiasmo que a wikileaks me merece é justamente por dar poder aos cidadãos contra os governos e as oligarquias económico-mediáticas, quer por nos mostrar o que eles não querem que saibamos, quer por eliminar a necessidade de intermediários entre a «informação em bruto» e o cidadão.

Fico satisfeito por estares de acordo comigo que quase tudo o que está na wikileaks pode (deve? eu acho que sim...) ser do conhecimento dos cidadãos, mas preocupo-me quando escreves coisas como «A política/governação não é tão simples, Ricardo, para todos podermos dar palpites». Ora, justamente. Não aceito que me reduzam a súbdito, criancinha pequena ou ignorante. Quero saber o que se passa e ter uma palavra a dizer. Não quero castas de «serviços de informações», «cientistas políticos», mediocratas ou políticos perpétuos a decidirem por mim. Se o Comité Central pensa que pensa por mim, pensa mal.

Filipe Moura disse...

Ricardo,
eu acho que o Lula foi um extraordinário presidente do Brasil. Basta este exemplo para te comprovar que não penso, de todo, que o exercício da política, a prática política, deva ser reservado seja a quem for. Longe de mim!
Achas que o Lula, ou o Sócrates, saberiam responder às questões que me colocaste? Duvido muito. (Refiro-me às questões do que deve ser o segredo de estado - não às questões concretas do wikileaks. Era para estas questões que eu falava em cientistas políticos.) Não são questões de prática política: são questões de teoria. E a teoria política, essa sim, deve ficar reservada a quem dela sabe. Eu pelo menos não me meto nela. Não tenho nada relevante a dizer.
Tu podes saber responder a essas questões de acordo com o que tu defendes. A teoria política do que defendes é muito mais simples.

"O entusiasmo que a wikileaks me merece é justamente por dar poder aos cidadãos contra os governos e as oligarquias económico-mediáticas"

Não me entusiasma nada que cidadãos tenham poderes CONTRA (registo o CONTRA) governos democraticamente eleitos. (Oligarquias é outra coisa.) É evidente que o wikileaks pode alterar a correlação de forças entre os cidadãos e esses governos. Isso pode ser muito interessante - e entusiasmante, concordo. Agora esse CONTRA, e referires-te aos políticos que o povo elege, cidadãos como nós, como ELES, é que, repito, não me entusiasma nada.
Havemos de continuar a trocar ideias sobre este assunto.

Ricardo Alves disse...

Os governos democraticamente eleitos têm poder contra os cidadãos. É uma questão de equilíbrio que os cidadãos também tenham poder contra os governos. E é esse equilíbrio que a wikileaks vem ajudar a restabelecer.

João Branco (JORB) disse...

Uma democracia que não tenha segredos estará muito mais exposta e será muito mais frágil perante os outros regimes (democracias ou não) que tenham os seus segredos.

:)

Este artigo é vintage Filipe Moura. E pensar que eu já pensei estarmos do mesmo lado da barricada!