quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Jogos de soma não-nula em política: o exemplo de Trump

Se a sociedade fosse feita de agentes e instituições racionais, criativas e com uma razoável capacidade de previsão e extrapolação, todos os debates políticos relevantes seriam jogos de soma-zero.
Isto porque todas as propostas de soma positiva já teriam sido implementadas (com as devidas contrapartidas para que todas as partes lhes fossem favoráveis), e as propostas de soma negativa seriam preteridas face às de soma nula.
Assim, diferentes partidos representariam diferentes perspectivas e valores, cujas propostas beneficiariam tanto um determinado grupo quanto prejudicariam outro. Nesse mundo hipotético, se algo fosse favorável aos trabalhadores seria necessariamente desfavorável aos empregadores, e vice-versa.

A diferença entre esse mundo e o nosso é particularmente gritante com a eleição de Trump. Vejo muitas pessoas à esquerda (principalmente pessoas mais próximas do BE) salientarem o como Trump acaba por ser uma boa notícia para os milionários e ricos deste mundo (por exemplo, desvalorizando a queda dos mercados que se seguiu imediatamente à sua eleição, e salientando a «correcção» subsequente).
Por outro lado, também à esquerda (principalmente pessoas mais próximas do PCP), muitos discordam desta perspectiva, considerando que a eleição de Clinton podia ter sido uma notícia mais agradável para os mais ricos e poderosos. No entanto, estes manifestaram muito menor preocupação e contrariedade com a eleição de Trump, insistindo na debilidade da alternativa que Clinton representava, e ignorado ou minorando as profundas diferenças entre ambos os candidatos.

Creio que ambas as partes estão erradas, e o erro resulta da assumpção implícita acima. Presume-se que Trump é tanto pior do que Clinton para o mundo (e em particular para «os trabalhadores») quando melhor for para os ricos e poderosos. Presume-se uma soma zero.

Entre Clinton e Trump, não é claro qual destes líderes seria a escolha dos ricos e poderosos. Donald Trump será certamente melhor para a indústria petrolífera, e presumo que também para a indústria de armamento. Mas eu diria que as grandes multinacionais, o gigantesco sector financeiro, e o poderoso sector tecnológico teriam (e tiveram) uma clara preferência por Hillary Clinton. E isto não é só um palpite: o balanço das contribuições de campanha por parte dos mais ricos e poderosos foi muito favorável a Hillary Clinton. Os EUA pareciam uma oligarquia tão podre quanto estável, mas Trump é um factor de instabilidade poderoso. Nesse sentido, parece-me natural que «os 1%» preferissem Hillary Clinton.

Mas nada disto implica que Clinton fosse pior para as pessoas em geral (e para os trabalhadores em particular) a comparar com Trump. Por exemplo, a incompetência doentia que Trump tem para manter a administração pública a fazer o seu trabalho não beneficia nem aqueles que usufruem dos serviços públicos ou prestações sociais, nem aqueles que querem ser tributados ao mínimo. A incerteza criada pelo seu comportamento errático no plano internacional não favorece nem os investidores que querem planear os seus investimentos, nem os soldados ou civis que podem ser vitimados por uma guerra sem sentido*.
Um exemplo particularmente gritante refere-se à atitude face à divida dos EUA: pagar ou não pagar a dívida são decisões que afectam de forma diferente as duas partes em causa (credores e devedores), mas anunciar gratuitamente a possibilidade de não pagar (continuando a pagar, note-se!) prejudica ambas as partes. Uma porque enfrenta juros superiores, outra porque enfrenta um maior grau de incerteza.
Trump não é um agente racional e é a demonstração cabal de que esta forma de ver a política baseada em jogos de soma zero é profundamente simplista, imatura e desadequada.


Post também publicado no Espaço Ágora.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

As tretas do CETA bem explicadas

No blogue Que Treta! o Ludwig Krippahl explica o que é o CETA e porque é que é muito importante fazer tudo para que não seja aprovado.
Eis alguns destaques do seu texto:

«O Comprehensive Economic and Trade Agreement (CETA) é um tratado entre a União Europeia e o Canadá que, alegadamente, visa promover a colaboração económica permitindo o acesso pleno a todo o mercado das partes signatárias (1). À primeira vista, parece bem levantar obstáculos ao comércio. Infelizmente, a abordagem é injusta, prejudicial e ilegítima.

Estes tratados facilitam a circulação de capital sem remover barreiras à circulação de pessoas. Se o CETA for ratificado, um investidor português poderá montar restaurantes em Toronto como em Lisboa. Assim, o CETA beneficiará directamente aqueles, talvez uns 0.1% da população, com o capital necessário para aproveitar esta liberdade de investimento.[...]

O CETA também é problemático em muitos detalhes. Compromete os signatários a criminalizar a gravação não autorizada de espectáculos ou a remoção de identificadores incluídos em músicas ou filmes para gerir o DRM. Prevê um fórum onde a UE, o Canadá e as empresas interessadas coordenem a regulação de bens de consumo e alimentos. Assim, em vez do exportador se adaptar às exigências do mercado para onde exporta, será ainda mais o interesse comercial a ditar o que permitimos que se comercialize e em que condições. O CETA prevê até um tribunal arbitral que permita aos investidores processarem directamente os Estados por legislação que frustre as expectativas criadas pelo CETA. Se bem que não seja má ideia haver tribunais com autoridade para sancionar Estados – como o Supremo Tribunal dos EUA ou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos – estes tribunais arbitrais são fundamentalmente diferentes. Primeiro, permitem aos investidores processar Estados por violação de um tratado que Estados celebram com outros Estados. Só Estados é que teriam legitimidade para processar por violação deste tratado. Além disso, a legitimidade de um tribunal vem de fazer cumprir leis criadas pelos cidadãos, ou por referendo ou por meio de representantes eleitos. Este tribunal arbitral não teria essa legitimidade, ficando à margem de qualquer legislação europeia ou canadense. É inaceitável que se crie um tribunal ao qual só os ricos têm acesso e cuja função é subordinar o poder legislativo dos cidadãos aos interesses económicos dos investidores. Isto são apenas alguns exemplos de muitas medidas inaceitáveis que o CETA impinge como parte daquilo que, fundamentalmente, deveria ser um tratado acerca de taxas aduaneiras e licenças comerciais.

E este é outro grande problema do CETA. O processo legislativo tem de ser transparente e permitir a participação de toda a sociedade. Para isso, as medidas propostas têm de ser específicas, bem circunscritas, e sujeitas a discussão pública. A negociação do CETA não foi nada assim. Decorreu à porta fechada, entre burocratas e investidores, e só se foi sabendo o que combinavam quando havia fugas de documentos. Ao longo do processo foram colando ao CETA artigos sobre tudo o que lhes pudesse interessar, desde taxas alfandegárias a patentes sobre plantas, de regras de segurança alimentar à vídeo-gravação de espectáculos, da autorização de serviços de telecomunicação a legislação laboral e imensas outras coisas. São quase 1600 páginas de artigos, tabelas e apêndices – doze vezes o Código Penal Português – que agora pedem ao Parlamento Europeu que assine de cruz, sem discussão nem possibilidade de alterações. A maioria destas medidas dispensa até ratificação pelos países da UE. Isto não é uma forma democrática de legislar.

[...] É um tratado enorme, com muita coisa má, negociado às escondidas no interesse dos investidores e que, se for aprovado no próximo dia 15, será imposto em bloco a toda a UE. Não haverá possibilidade de discutir ou corrigir qualquer problema. A quem concorda que a democracia não devia funcionar assim, apelo que contactem os eurodeputados que nos representam e que ainda não se comprometeram a votar contra o CETA. O site CetaCheck tem um formulário prático para isto e outros contactos para se quiserem exercer uma pressão mais personalizada. Penso que é importante bloquear este mecanismo pelo qual quem tem muito dinheiro consegue contornar os limites democráticos do poder. »

Post também publicado no Espaço Ágora.