sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O objeto da Física é o universo

Publicado originalmente no Observador

O artigo de João Araújo pode defender ideias muito certas no que diz respeito ao ensino da Matemática. Revela no entanto também outros problemas que quem trabalha na fronteira entre a Física e a Matemática sente quotidianamente: como é difícil a relação entre estas ciências que parecem tão próximas! Com efeito, e com o devido respeito, a afirmação por parte do autor de que "o objeto da Física é a matéria e a energia" é profundamente redutora e deformadora. Se me preocupo com esta afirmação, é porque ela é sintomática de como uma grande parte dos matemáticos encara a Física, e sobretudo com as consequências que isso tem não só no ensino de ambas como também na atividade científica.
É mesmo muito discutível que a Física seja uma "ciência de objeto", como o autor a classifica. Qualquer fenómeno natural deve obedecer às leis da Física, pelo que em sentido lato o objeto da Física é o estudo de todo e qualquer fenómeno da natureza; é o estudo do universo, em todas as suas escalas. Se Hilbert afirma que as afirmações dos matemáticos "terão de se aplicar tanto a pontos, linhas e planos como a mesas, cadeiras e canecas de cerveja", as leis da Física terão que ser válidas nas maiores e nas mais ínfimas escalas, das galáxias às partículas elementares. Foi por se libertar do contexto e procurar uma regra geral que no século XVII Newton enunciou que a gravitação era válida tanto para os corpos no planeta Terra como na Mecânica celeste, alterando profundamente a forma como até então se encarava o Universo e iniciando uma tendência de unificação e generalização que teria continuidade, no século XIX, com Maxwell (na eletricidade, no magnetismo e na ótica) e, no século XX, no modelo padrão das interações fundamentais, unificando o eletromagnetismo e as interações nucleares fraca e forte. Esse espírito unificador permanece na busca de uma teoria mais geral que inclua também a gravitação, como é o caso das supercordas, mas não está presente somente nas interações elementares. O funcional gerador da Teoria Quântica de Campo, usado na física das partículas elementares, corresponde à função de partição em Física Estatística, utilizada na física dos sistemas complexos. Não se trata somente de as equações serem as mesmas: os métodos são também os mesmos. Quando os físicos portugueses Vítor Cardoso e Óscar Dias explicaram a instabilidade gravitacional de um tipo de buraco negro (a corda negra), um problema de Relatividade Geral, aplicaram os mesmos métodos usados em Mecânica dos Fluidos para explicar a instabilidade de um fluido em queda e a sua tendência para decompor-se em gotas (a instabilidade de Rayleigh-Plateau). Quando o físico argentino Juan Maldacena propôs uma correspondência entre teorias de cordas formuladas num espaço anti-de Sitter e teorias quânticas de campo formuladas na fronteira deste espaço (a célebre correspondência AdS/CFT), tinha em mente uma formulação não perturbativa da teoria de cordas. Mas esta sua proposta tem sido aplicada com sucesso para fazer cálculos e obter resultados que até então não se sabia como obter em sistemas fortemente acoplados, na
Física da Matéria Condensada e na Cromodinâmica Quântica.
A Física não procura a abstração do seu objeto-universo, como a Matemática, mas visa sempre a descoberta de leis gerais da natureza, e não somente um objeto específico. Toda a argumentação que o autor apresenta relativamente à Matemática pode ser apresentada em relação à Física, que historicamente é a única ciência natural que contribuiu (e continua a contribuir) diretamente para o progresso da Matemática. Sendo duas ciências bem diferentes (a Matemática não inclui a experimentação; a Física não inclui a abstração), têm caminhado lado a lado. É por isso com pena que se verifica que para grande parte dos membros destas duas grandes comunidades, os membros da outra comunidade são estranhos - quando não muitos dos membros da mesma comunidade. Há um fechamento de físicos e matemáticos dentro do seu próprio grupo de interesses, de que ninguém sai a ganhar.
Da parte da Matemática, creio que este fechamento é intrínseco e resulta da sua tendência para a abstração. Tem como consequência afirmações como a citada "o objeto da Física é a matéria e a energia" (como alguém habituado a trabalhar com físicos e matemáticos, já ouvi outras piores). Da parte da Física, o fechamento em relação à Matemática é mais surpreendente, uma vez que, por definição, e dado o seu caráter, teria obrigação de ser uma ciência mais aberta. Mas não duvido nada de que haja físicos que se contentem com a definição (muito pobre) de João Araújo no seu artigo - é provável que haja muitos que se revejam nela. A mais provável razão do afastamento parece-me ser a maior ligação dos físicos à indústria, em projetos de Física Aplicada. A "aprendizagem em contexto" é típica da engenharia e dos ramos mais aplicados do saber, onde se quer sobretudo resolver problemas. Não é a mais indicada para aprender ciência, seja Matemática ou Física, Biologia ou Química. Parece-me por isso pouco adequado que o autor distinga a Matemática das restantes ciências no seu artigo, quando o assunto a que este diz respeito é comum a todas.