sábado, 17 de julho de 2021

Esquerda e responsabilidade orçamental

A Iniciativa Liberal é um partido de direita cujas propostas orçamentais se pautam pela irresponsabilidade orçamental. A Iniciativa Liberal quer diminuir as taxas de IRS, IRC e uma série de outros impostos, reduzindo por essa via a receita fiscal, sem que proponham uma redução equiparável da despesa pública. Sim, existem as promessas vagas de combate ao desperdício e ineficiência, mas no que diz respeito às grandes rubricas, as propostas da IL vão no sentido de aumentar a despesa pública, prometendo um sistema de seguros privados mais custoso ou um cheque-ensino que sairia mais caro. 

Esta novidade é bem-vinda porque pode ajudar a destruir um conceito que tanto gente à esquerda como à direita já tinha interiorizado em Portugal: que a responsabilidade orçamental está associada à direita, ou que a irresponsabilidade orçamental é uma característica da esquerda. De facto, todos os partidos que têm defendido a necessidade de contas públicas equilibradas (PSD, CDS, PS) são partidos com um programa económico de direita (PSD, CDS) ou de centro-direita (PS). Se a isto somarmos o facto de muitas pessoas atribuírem a crise de 2011 ao suposto "despesismo" do PS e ao facto deste partido ter defendido uma consolidação orçamental mais suave que o PSD, está formada a "tempestade perfeita" para criar esta percepção errônea: quanto mais à esquerda, mais orçamentalmente irresponsável. 

Esta percepção errada não resiste ao alargamento de perspectivas: nos EUA, pelo menos nas últimas 4 décadas, têm sido os governos mais à direita aqueles que mais têm aumentado o défice, e os governos mais à esquerda aqueles que mais o têm combatido. E no panorama europeu verificamos que os estados sociais mais sólidos e robustos foram construídos pelos governos que têm mantido contas públicas mais sólidas. 

No entanto, o que há de mais curioso nesta noção de que a esquerda seria "orçamentalmente responsável", é pensar nas consequências de um saldo orçamental negativo "crónico" com as consequências de um saldo orçamental positivo "crónico". Em tese, faria sentido a direita ser orçamentalmente irresponsável e a esquerda ser orçamentalmente responsável, pelo menos se assumirmos que os gastos públicos servem principalmente para financiar o estado social.  

No seu livro "O Capital no Século XXI", ao procurar explicar o aumento galopante das desigualdades, Picketty considera que uma parte importante da equação diz respeito à evolução do património público: desde os anos 70 que vemos o capital público a diminuir em proporção do rendimento da economia e ainda mais enquanto proporção do capital total:


 
Para a direita, esta evolução é sem dúvida positiva, pois significa que uma maior proporção dos activos e meios de produção está nas mãos de actores privados que os gerem, alegadamente, de forma mais eficiente. 
A esquerda, pelo contrário, não pode separar esta evolução do aumento das desigualdades e estagnação dos salários reais que lhe está associada, e não costuma fazê-lo. É comum ver esta evolução como um retrocesso ao panorama social e político anterior às grandes guerras, marcado pela instabilidade e pelas profundas desigualdades que lhe deram origem.

Mas esta evolução é, no que concerne ao património público, uma consequência directa de saldos orçamentais negativos crónicos. Esta "trajectória económica de direita" é consequência de escolhas políticas que são vistas como sendo de esquerda por uma enorme proporção do público e dos actores políticos. Se o saldo orçamental das contas públicas for positivo, o património público aumenta. Se o saldo orçamental das contas públicas for negativo, o património público diminui. 
Assim sendo, faz todo o sentido que a Iniciativa Liberal faça propostas orçamentalmente irresponsáveis. Se o estado gastar mais dinheiro do que aquilo que recebe, terá de privatizar as empresas públicas que ainda restam para pagar as contas, ou então de agravar o seu grau de endividamento, o que significa que no longo prazo o estado passará a cobrar impostos aos trabalhadores em geral para pagar os juros aos credores. 
O que parece mais bizarro é que o BE, o PCP e o PEV também o façam. 

Claro que esta exposição simplifica um pouco o panorama. Nem a IL nem o BE, PCP e PEV alegam que querem aumentar o grau de endividamento do estado. Aliás, o BE, PCP e PEV até se bateram pela reestruturação da dívida pública na sequência da crise de 2011, precisamente como uma forma de diminuir este endividamento excessivo. 
Existem, no entanto, duas questões diferentes a considerar. Uma é a necessidade de políticas contra-cíclicas. Com poucas excepções, todos reconhecerão a importância de políticas contra-cíclicas, deficitárias quando a economia está em baixo, e vice-versa. Faz sentido que a esquerda seja ainda mais favorável do que a direita a uma intervenção "estabilizadora" neste sentido, na medida em que não só a mesma corresponde a uma intervenção pública no contexto de uma economia de mercado, como tipicamente terá um impacto redistributivo. Assim sendo, defender um défice pontual no contexto de uma crise como a de 2011 pode ser correctamente visto como uma posição de esquerda. Não é isso que está em questão neste texto: falamos daquilo que seria o défice "médio", num ano não especialmente bom, nem especialmente mau. 
Já tenho visto alguns líderes políticos de esquerda a defender um conjunto de políticas que resultaria num défice crónico dando a entender que se trataria de uma política contra-cíclica, destinada a estimular uma economia que tem crescido pouco ao longo das últimas duas décadas. Note-se que isto não é uma política contra-cíclica: uma política contra-cíclica defende saldos menores quando o crescimento está abaixo da média, não quando está abaixo dos nossos desejos. 

A segunda questão a considerar são as justificações dadas pela IL ou BE, PCP e PEV para alegar que as políticas que propõem não iriam aumentar significativamente a dívida pública. A IL entra no "Reagonomics" puro e duro: como baixam o IRS, as pessoas trabalham mais, a receita aumenta. Esta fantasia já foi testada várias vezes, falha sempre, resulta em défices avassaladores, e os líderes da IL sabem perfeitamente disso. Noutras circunstâncias não explicaria por má fé aquilo que poderia explicar por preconceito ideológico, mas Portugal já leva uns bons anos a mudar estas taxas para cima e para baixo e existem poucas dúvidas que uma forte redução das taxas de IRS iria reduzir a receita no actual contexto. Não existe sequer debate entre quem conhece os números a não ser quanto à dimensão da redução.  Dito isto, esta posição demagógica pode ser considerada menos irresponsável por quem partilhar o mesmo conjunto de valores e princípios, na medida em que tal erro apenas resultaria numa diminuição do património público, algo que dificilmente os apoiantes da IL considerarão trágico. 

Já as justificações do BE, PCP ou PEV para defender políticas que resultariam em défices crónicos são menos simples. Por vezes evitam a questão afirmando que as consequências futuras e perversas daquilo que defendem como justo (aumentar as prestações sociais, o investimento público e o financiamento dos serviços públicos sem aumentar a tributação) se devem às contradições e insustentabilidade do sistema capitalista em si. A ser levada a sério, esta justificação faria com que os eleitores que se sentem seduzidos pelo programa moderado e social-democrata destes partidos devam evitar votar neles: afinal de contas as suas propostas teriam, assumidamente, más consequências a menos que o capitalismo venha a ser abolido num futuro próximo. 

Outras vezes, no entanto, o argumento é mais complexo. Por vezes aquilo que se defende é que os défices só têm estas consequências perversas devido à falta de independência monetária do país. Que se o estado controlasse a política monetária (por exemplo, estando fora do euro), poderia endividar-se sem que isso trouxesse consequências perversas. Controlando a moeda, poderia manter juros baixos e qualquer nível de endividamento seria sustentável. 

Mas será que seria assim? O exemplo do Japão e dos EUA é frequentemente apontado, mas em ambos os casos verificou-se esta mesma redução do património público em consequência dos défices crónicos. Algo que conduz a um aumento das desigualdades e tem um impacto negativo no que concerne à distribuição da riqueza, com parte da receita fiscal do estado a servir como uma "renda" dos cidadãos com maior património. 
Se o estado pudesse controlar o banco central, poderia tentar usar a inflação para reduzir os juros reais que tem de pagar, mas essa é uma opção que apenas resulta temporariamente e não resolve o problema de fundo: os juros reais ficarão maiores do que inicialmente a médio prazo, assumindo que a autoridade monetária vai sempre evitar um fenómeno de hiper-inflação. Isto nem sequer é abstracto: Portugal teve autoridade monetária durante vários séculos, e os défices crónicos sempre deram origem a uma diminuição do património público. Não existe nenhum país que seja excepção a esta regra. 

Por estas razões, fica difícil de explicar porque é que em Portugal os partidos de esquerda assumem posições que por um lado contribuem para agravar as desigualdades e transferir riqueza de quem não tem património para quem tem, e por outro lado contribuem para que estes partidos sejam vistos como irresponsáveis e irrealistas pela população menos politizada.