quarta-feira, 12 de agosto de 2015

As duas abstenções




Existem fundamentalmente duas formas diferentes de abstenção.

Uma é a abstenção com raiz no desleixo. Outra é a abstenção com raiz na revolta.
Naturalmente, isto é uma simplificação um pouco grosseira, mas peço ao leitor que me acompanhe.

Embora sejam motivações completamente diferentes e opostas, é comum que ambas coexistam em maior ou menor grau em vários abstencionistas. Ou pelo menos, assim o revelam: se o abstencionista motivado unicamente pela revolta dificilmente vai esconder a sua atitude num suposto desleixo, o contrário já se torna bastante comum - o abstencionista motivado pelo desleixo preferirá justificar a sua atitude numa suposta revolta contra os políticos "todos iguais".

A abstenção motivada pelo desleixo é mais comum quando as coisas correm bem. A economia está a crescer, as desigualdades não são excessivas, a criminalidade está sob controlo, existem oportunidades. Algumas pessoas sentem algum grau de aversão ao conflito natural na política, e desgostam do facto de que qualquer opinião que tenham vai sempre encontrar opositores descontentes. Sentem desconforto em discutir assuntos, principalmente quando se sentem menos informados, e acabam por correr o risco de passar vergonhas quando eles são discutidos. Como evitam falar sobre esses assuntos, acabam por ter menos motivação para se informarem a seu respeito, numa espécie de ciclo vicioso. Sentem que o facto dos políticos "não se entenderem" mostra que muitos deles são desonestos, mas não se arriscam a pronunciarem-se sobre quais - preferem dizer que são todos. Estas pessoas não estão preocupadas em mudar o sistema, e até poderiam encarar com grande desconfiança quem o quisesse fazer. Não é tanto porque um dia na praia ou no jardim lhes seja mais apetecível que ir às urnas que não votam: é porque preferem evitar ter de "tomar partido", e falar sobre o assunto. Podem não o reconhecer sequer perante eles próprios (e até afirmar o contrário com indignação), mas no fundo, bem no fundo, acham que as coisas não estão muito mal, e certamente o seu esforço é melhor empregue investido na sua vida pessoal, que a zelar pelo bem comum.

A abstenção motivada pela revolta é mais comum quando as coisas correm mal. A economia está em crise, as desigualdades são gritantes, as oportunidades são escassas, e por vezes o crime e a violência estão a aumentar. Parece claro para algumas pessoas que a "democracia representativa" falhou, e que outro sistema diferente a deve substituir. Assim, responsabilizam os problemas sociais naqueles que alimentam este sistema que os causa. Pelo contrário, eles não querem alimentar este sistema que tantas injustiças e tanto mal tem causado. Não é tanto porque um dia na praia ou no jardim lhes seja mais apetecível que não votam: é por uma questão de princípio. Não raras vezes, apelam a que outros lhes sigam o exemplo: não se limitam a dizer que os políticos são todos uns bandidos, querem fazer algo a esse respeito, e esse algo começa por ser uma recusa em votar. Embora existam excepções, é comum que estejam relativamente bem informados, e não têm medo de hostilizar outras pessoas com as suas opiniões algo radicais. Querem mudar o status quo, querem mudar o mundo, mesmo que isso implique alguns sacrifícios.

A abstenção motivada pelo desleixo é perniciosa?
Depende. O desleixo, a falta de informação, a falta de reflexão, a falta de acompanhamento serão tendencialmente perniciosos - os políticos que resultam de um eleitorado desleixado são mais incompetentes e menos íntegros do que aqueles que resultam de um eleitorado informado, atento, interventivo. Nesse sentido, quanto mais desleixo mais abstenção e pior qualidade da democracia. Temos aqui uma retroacção negativa: se os políticos são mais competentes a abstenção por desleixo aumenta, e a qualidade dos políticos diminui, e vice-versa. O sistema tende para uma estabilidade relativa.
No entanto, para um determinado nível de desleixo fixo, a abstenção é a melhor opção. Se alguém não está informado e atento, então o ideal é que se informe, que reflicta, que debata, etc. Não o fazendo, melhor será que não vote. Sou contra o voto obrigatório primeiramente por uma questão de princípio (acho uma tremenda violação da liberdade individual forçar alguém a votar), mas também acho que tende a piorar a qualidade da democracia, ao forçar os "desleixados" a depositar na urna um voto que não é "em consciência".

A abstenção motivada pela revolta é perniciosa?
Depende. A abstenção motivada pela revolta é estratégia mais contra-producente que alguém pode seguir. Assim, a abstenção motivada pela revolta é benéfica para o status quo, e prejudicial para todos aqueles que o querem transformar radicalmente - em particular estes abstencionistas.
O abstencionista motivado pela revolta acredita que ao não votar está a evitar "alimentar o sistema", mas isso só seria uma estratégia eficaz caso a esmagadora maioria (>95%?) da sociedade tivesse a mesma vontade de o alterar radicalmente. Mas se fosse esse o caso, as eleições não corresponderiam ao desapontamento constante daqueles que desejam mudanças mais profundas. Pelo contrário: longe de "tirar oxigénio" ao sistema, o abstencionista motivado pela revolta está com a sua recusa em votar a aumentar o poder relativo daqueles que querem preservar o status quo face aos que querem ver mudanças mais significativas.
Pior ainda, o abstencionista pode com a sua inacção facilitar a vida aos que querem fazer mudanças que impossibilitem que o sistema mude, mesmo quando as pessoas tiverem vontade que tal aconteça. Exemplos concretos: imaginemos que alguns partidos pretendiam dar mais poderes às polícias secretas, aumentar a vigilância sobre os cidadãos, limitar o direito a manifestações ou à liberdade de expressão, aumentar os poderes do aparato militar com o pretexto da luta contra o terrorismo, tornando o conceito mais abrangente ao ponto de abarcar aqueles que têm opiniões mais radicais face ao status quo. Não é muito difícil de imaginar... É fácil de compreender que o abstencionista motivado pela revolta não tem sobre estas questões uma opinião igual à da restante população: tendo uma maior vontade de mudar o status quo tenderá a ver de forma mais negativa todas estas tentativas securitárias de evitar mudanças. Ao não votar está a facilitar a vida a quem quiser implementar estas mudanças.
Ao não votar, fortalece o status quo, o que por sua vez aumenta o seu descrédito face à ideia de que a democracia representativa possa alterá-lo. Isso aumenta o grau de abstenção por revolta, o que por sua vez favorece ainda mais o status quo. Temos aqui uma retroacção positiva, que nunca resulta no fim da democracia representativa - resulta antes numa democracia de má qualidade, estanque, com desigualdades, injustiças, corrupção e cinismo.
Tendencialmente uma democracia mais "musculada", à medida que os conflitos sociais se agravam.
Faz sentido acreditar que a democracia representativa não é o sistema ideal. Mesmo que possa ser o sistema adequado para a nossa sociedade (será?), parece-me desejável que a sociedade evolua a tal ponto que o actual sistema de organização social se torne obsoleto.
No entanto, mesmo para quem quer desenvolver um esforço no sentido de mudar os fundamentos da nossa sociedade, e para quem acredita que o essencial da mudança futura não passa pelo actual sistema político-partidário, estou convencido que o voto é uma ferramenta à sua disposição, e não a usar um verdadeiro tiro nos pés - uma cumplicidade inadvertida para com as forças do status quo, ao colocar à margem do processo eleitoral precisamente aqueles com mais motivação para se lhe oporem. 

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

As exigências de Cavaco

Em abstrato, Cavaco Silva até poderia defender a doutrina de que não deve haver governos minoritários. Mas tem que se ver a jurisprudência durante os seus mandatos. Se Cavaco defende que não deve dar posse a executivos minoritários, não deveria ter dado posse ao segundo governo de José Sócrates nas condições em que deu. Até porque, na altura, dispunha da prerrogativa de convocar novas eleições. Por não dispor dessa prerrogativa nas próximas eleições legislativas (cuja data ele mesmo escolheu), e por no passado já ter dado posse a um governo minoritário (quando poderia não ter dado), a exigência de Cavaco é inaceitável. Os partidos deveriam confrontá-lo com isso.

domingo, 2 de agosto de 2015

A morte do leão Cecil

Haverá certamente uma minoria de malucos que se preocupa mais com os animais do que com os outros humanos, mas não é sério nem honesto reduzir quem se preocupa com os animais (principalmente animais selvagens de espécies em risco) a essa caricatura. Além disso, irrita-me que se considere que, por nos indignarmos por um leão ter sido assassinado para exibir como troféu, necessariamente não somos capazes de nos indignarmos por (por exemplo) um bebé e dois adolescentes palestinianos terem sido assassinados. Como se a indignação estivesse racionada, e onde cabe uma não coubesse a outra! Argumentos destes parecem-me aqueles do tipo "por que se preocupam com o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo no meio desta crise, com tantas pessoas a morrer à fome"? São um insulto à minha inteligência, e tudo o que é um insulto à minha inteligência irrita-me.
Outro argumento, que já é muito familiar para quem anda nas redes sociais e nos blogues, é o policiamento da indignação: "se te indignas pelo bebé e pelos adolescentes, por que não o manifestas, como o fazes pelo leão"? O leão é uma novidade; trouxe para a ordem do dia a discussão sobre a caça a animais selvagens. Infelizmente, a barbaridade dos colonos israelitas já está na ordem do dia há décadas. De qualquer forma reservo-me o direito de não ter que escrever aqui sobre tudo o que me indigna.
Finalmente, a novidade: o argumento "Com o dinheiro que pagam para abater alguns deles, os caçadores fazem muito pelos leões! O que é que tu já fizeste pelos leões?" Eu leio isto e parece que estou a ouvir a piedosa Isabel Jonet, a perguntar-nos o que é que já fizemos pelos pobres. Só nos faltava as Isabéis Jonets da espingarda.