sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Miguel Sousa Tavares: a sociedade da devassa

Miguel Sousa Tavares, Expresso, 11-12-2010. Posso não concordar com tudo, mas sem dúvida vale a pena ler. Certas partes deste texto mereceram uma resposta do Rui Tavares, que também vale a pena ler.

O WikiLeaks mexe com coisas mais sérias e é tudo menos inocente. O seu objectivo é claramente o de desarmar a única superpotência ocidental, num mundo tripolar, onde esse desarmamento unilateral não passará sem consequências. E eu, se me é permitida a escolha e enquanto for vivo, prefiro viver numa democracia ocidental do que numa chinesa, russa, norte-coreana ou iraniana. E também sei que, com todos os seus defeitos e imperfeições, todos os erros e vilanias, os Estados Unidos continuam ainda a ser o garante militar da sobrevivência da civilização ocidental. Ou, dito mais simplesmente, o garante da liberdade e da paz relativa em que vivemos. Se for preciso travar o desvario nuclear do Irão ou da Coreia do Norte, ou contamos com os Estados Unidos ou não contamos com ninguém.

Nada disto é inocente, excepto, curiosamente, o próprio conteúdo dos papéis diplomáticos roubados ao Departamento de Estado americano. Um ouvinte do 'Fórum da TSF' declarava há dias que, graças ao WikiLeaks, ficámos a conhecer toda a espécie de tropelias, abusos dos direitos humanos e outros crimes cometidos pela Administração americana. Não ficámos nada, foi exactamente o contrário. Ficámos a saber, sim, que é a Arábia Saudita que roga aos Estados Unidos que ataquem o Irão e os americanos que resistem ao pedido; ficámos a saber que os Estados Unidos acreditam e privilegiam uma solução pacífica para as provocações nucleares da Coreia dos Kim II e III; ou que, apesar de classificarem Berlusconi como um aliado íntimo, têm dele a mesma triste opinião que todos nós. Não vejo onde estejam os crimes e os abusos, vejo, sim, uma superpotência que luta praticamente sozinha contra o terrorismo da Al-Qaeda e que chama a si a responsabilidade - que todos lhe exigem - de acorrer a todos os focos de incêndio no planeta. E que, para tal, obviamente, precisa de ter informações militares, políticas e diplomáticas classificadas, como qualquer outro país do mundo, desde que o mundo é mundo. (...)

Desde quando é que constitui direito dos povos conhecer, em tempo real, o teor da correspondência diplomática entre os embaixadores de um país e o seu governo? Se assim fosse, para que serviriam os embaixadores? Para que serviria a diplomacia? E porque não conhecermos também o teor das conversas telefónicas e da correspondência trocada entre os dirigentes do Bloco de Esquerda? Também poderia ter o seu interesse...

Não há dúvida de que o mundo ficou mais seguro depois de o sr. Assange, violando correspondência alheia em nome da liberdade de informação, ter revelado aos russos que os Estados Unidos acham que Vladimir Putin é autoritário, vaidoso e com amizades não recomendáveis na máfia russa, ou que o sr. Erdogan, na Turquia, é suspeito de ter dinheiro escondido na Suíça e desviado do Estado. Isso vai ajudar imenso à aprovação do START III, o novo tratado de desarmamento entre a Rússia e os Estados Unidos e ajudar imenso à aproximação necessária entre a Europa, a NATO e os EUA, por um lado, e a Turquia, por outro...

As coisas devem ser levadas a sério. Ter Assange preso porque se lhe rompeu a camisinha quando estava na cama com uma sueca é ridículo. Ele deve estar preso e responder por violação de correspondência pública e privada (que, tanto quanto imagino, é crime até na Austrália), por quebra de segredos militares que pode pôr em risco a vida de pessoas e por aquilo que é, para todos os efeitos, um acto de guerra. Porque, não sei se sabem que, no Ocidente onde vivemos, estamos em guerra não declarada contra o terrorismo da Al-Qaeda, contra o fanatismo islâmico, contra a insanidade nuclear de ditaduras como as do Irão ou da Coreia do Norte. E, se não sabem, passarão a sabê-lo no dia em que tiverem o azar de ver alguém querido morrer num atentado terrorista tornado mais difícil de evitar graças às revelações desse inventado herói chamado Julian Assange.

7 comentários :

Ricardo Alves disse...

O artigo do Sousa Tavares é péssimo: mistura tudo. Mistura a wikileaks com os ataques da «anonymous», a divulgação de material de inquéritos judiciais com a divulgação de despachos que fornecem material para inquéritos judiciais, a correspondência interna dos partidos políticos com a dos funcionários do Estado, o Bin Laden e o Assange...

Francamente, a wikileaks não vai destruir a democracia. Pode ajudar, isso sim, a termos melhor democracia. Mas o MST não compreende isso.

NG disse...

Ricardo,
Vamos mudar de lebre. Nesta eu acompanho-o. Foi a partir do Kosovo q'isto começou a andar para trás.

http://www.publico.pt/Mundo/prisioneiros-servios-eram-engordados-antes-de-serem-mortos-e-ficarem-sem-os-rins_1471507

Filipe Moura disse...

O Miguel Sousa Tavares não percebe o wikileaks como não percebe os blogues ou o facebook: não está no século XXI. Estás no teu direito de achar que ele "confunde" tudo. Eu acho que ele não "confunde" nada: equipara é coisas que se calhar não achas equiparáveis (correspondência de partidos e de diplomatas; segredos de estado e segredos judiciais). Eu acho que ele tem alguma (bastante) razão.

A sério que concordo contigo que o wikileaks pode ajudar a que tenhamos melhor democracia. Mas isso não é revelando tudo sem critério, nem adotando a atitude dos motoristas de táxi, uma classe sem grandes credenciais democráticas ("eles" são uns malandros, CONTRA "eles", etc.).

Ricardo Alves disse...

Filipe,
não são equiparáveis: os diplomatas são funcionários públicos, trabalham para nós e pagos por nós, os do BE são funcionários de um partido; pressões judiciais de um governo estrangeiro devem ser denunciadas, provas de processos judiciais não. Não tem razão nenhuma.

Quanto à wikileaks: já critiquei o facto de terem publicado aquelas tretas da vida privada de uns chefes de Estado. Mas eu não sou a wikileaks.

E sim, há aqui um «nós» contra «eles»: nos últimos dez anos, as elites político-económicas têm-se separado cada vez mais radicalmente dos cidadãos. A crise do euro é um dos sintomas disso. Os abusos da «guerra contra o terror» são outro. A wikileaks pode ajudar-nos a repor algum equilíbrio.

Ricardo Alves disse...

Nuno Gaspar,
para alguém que tem «repugnância» por aquilo que eu escrevo, é estranho que me tente dar ideias.

E já se falou do Cosovo por aqui, inclusivamente desse caso:

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2008/04/kosovo-e-trfico-de-rgos.html

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2009/06/o-pais-dos-piratas.html

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2010/07/os-povos-tem-direito-auto-determinacao.html

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2008/10/uma-europa-com-cem-bandeirinhas.html

http://esquerda-republicana.blogspot.com/2008/09/estranha-independncia-do-kosovo.html

Ricardo Alves disse...

Olha Filipe, mais uma coisa...

O MST diz que o objectivo da wikileaks é atingir os EUA: «O seu objectivo é claramente o de desarmar a única superpotência ocidental, num mundo tripolar, onde esse desarmamento unilateral não passará sem consequências».

E Mário Soares acha o exacto contrário: «"Mas o que é curioso é que tudo aquilo que se passa e tudo aquilo que se diz nada é contra a América, é tudo contra os outros", defendeu».

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=12&id_news=484281

NG disse...

Ó Ricardo,
Tenho repugnância por algumas das coisas que escreve. Não por todas.
Em relação ao tema Kosovo concordo com muito do que diz. O que veio a acontecer no Iraque foi um desenvolvimento lógico do cinismo com que uma certa administração ocidental, sobretudo americana, alimentou uns quantos fantasmas mediáticos para justificar acções que serviram os interesses muito particulares de um grupinho de gente do género Rumsfeld: primeiro a humilhação da Rússia e depois o petróleo do subsolo iraquiano. Essa história está longe de estar encerrada e não precisa de wikileaks para se corrigir; está à vista de toda a gente. A dívida de americanos e europeus a sérvios e iraquianos é incomensurável. Muito mais do que a obsessão com mentirinhas ou a insistência em pequenos episódios, seria pela reposição de alguma justiça, ou, pelo menos, pelo assumir da culpa dos seus autores nestas duas catástrofes, que ainda valeria a pena certa esquerda manifestar-se.