No passado Abril, o Público
noticiou que «
o Governo retirou à Polícia Judiciária (PJ) os contactos e as trocas de informações com a Europol e a Interpol» abrindo «uma guerra dura entre os inspectores da PJ e o Governo», falando-se mesmo numa «aversão à PJ» que «cresceu na proporção em que cresceram os processos por corrupção e criminalidade económica e financeira e outros bem conhecidos», e que com esta medida «está aberta a porta a uma intromissão do poder político na investigação criminal».
Esta situação é muito grave e corresponde à continuação da incapacidade do PS em fazer face a uma teia de interesses que o envolve (aliás, não convém esquecer alguns
problemas de António Costa com a transparência a que os líderes políticos devem estar obrigados).
Desenganem-se aqueles que acreditam que uma solução governativa ancorada no PSD seria diferente. A notícia menciona as seguintes declarações por parte da associação sindical dos investigadores da PJ (ênfase meu) «a decisão agora tomada é o culminar de uma guerra que, nos
últimos anos, tem sido movida à PJ por um conjunto de interesses associados, uns mais directos quanto ao seu objecto, outros mais difusos e escondidos, mas igual e plenamente identificáveis».
Aliás, a própria falta de projecção mediática de uma medida tão inequivocamente problemática mostra como os partidos à direita do PS não estão insatisfeitos com o desenrolar dos acontecimentos.
Mas se os investigadores da PJ que lutam contra a corrupção perdem autonomia, as Polícias Secretas que desejem violar a nossa privacidade ganham poderes e ferramentas:
António Costa quer dar às secretas acesso a dados dos telemóveis. Isto é absolutamente vergonhoso.
A crítica de que um governo de esquerda é despesista é repetida
ad nauseum pela direita (com
completa falta de noção a respeito daquilo que foi a actuação do seu Governo...), mas seria conveniente evitar escolhas e decisões que dessem toda a razão a essa crítica, em particular num contexto de crise acentuada em que faltam recursos para os serviços públicos e para prestações sociais essenciais.
Neste contexto, quando o Expresso noticia que «
Autarcas deixam de ser punidos por dinheiro mal gasto», acrescentando que o «Governo inclui no orçamento norma que desresponsabiliza presidentes de Câmara e vereadores. Tribunal de Contas está “preocupado” e quer falar com Ferro» eu fico bastante revoltado.
Depois, existem questões que podem não ter uma expressão orçamental tão relevante, mas que revelam um alheamento da situação difícil em que o país se encontra. Um exemplo elucidativo é noticiado pelo Público: «
Reposição dos 10% retirados aos partidos em 2010 vai custar 4,5 milhões de euros». Outros exemplos de
medidinhas de impacto orçamental reduzido mas que representam injustiças e distorções lamentáveis são noticiados pelo DN («
Camionistas podem abastecer ao preço de Espanha em 4 zonas do País») e pela TSF («
Parlamento quer promover a alheira. PAN está contra»).
Com um impacto mais considerável na economia temos todo o episódio do BANIF. A este respeito não nos podemos esquecer a forma como o anterior Governo colocou os interesses eleitorais à frente do interesse nacional
tentando, com enorme prejuízo para o país, encobrir as fragilidades estruturais até depois das eleições legislativas. O novo Governo fez algo semelhante: optou por
antecipar o fecho do BANIF para que constasse de um orçamento no qual os governantes anteriores podiam ser co-responsabilizados, mesmo aumentando significativamente o risco de sanções europeias. Talvez fosse excessiva ingenuidade esperar que um Governo estivesse disposto a sofrer os custos políticos criados por uma derrapagem orçamental na qual não teve responsabilidade apenas para evitar um risco que Costa estava confiante de poder minimizar na mesa das negociações - mas não tenho qualquer dúvida que essa era a opção que colocaria o interesse nacional acima de possíveis dividendos eleitorais.
Em relação à Caixa Geral de Depósitos, concordo em linhas gerais com a opção estratégica de manter o controlo público, mas existiram vários episódios lamentáveis em toda essa telenovela, a começar pela
nomeação de oito administradores não executivos em situação ilegal, e pela opção de alterar a lei em vez de encontrar candidatos mais adequados ao cargo, e a acabar no
chumbo da proposta do PCP para limitar remunerações de gestores para permitir desde já uma
remuneração superior a 46 mil euros ao Presidente da Caixa. A este respeito é importante fazer uma observação: poderia ser considerada boa gestão tentar igualar os salários dos quadros de gestão de topo praticados pelo sector privado, já que uma ligeira melhoria na capacidade decisória de orçamentos tão volumosos poderia corresponder a poupanças muito superiores a tais vencimentos exorbitantes. Acontece que já existe alguma fundamentação empírica para afirmar que estas remunerações «pornográficas» não se relacionam positivamente com a qualidade da gestão (
relacionam-se quiçá negativamente), e além do custo que indirectamente recai sobre o contribuinte, este tipo de vencimentos ainda têm um impacto negativo sobre o sector privado acentuando desigualdades que a todos prejudicam.
Em relação ao Orçamento de Estado para 2017 convém reconhecer que a página da austeridade não foi virada. Pelo contrário, existe uma atenuação muito suave do ritmo de consolidação, como se pode ver na seguinte figura do próprio relatório do OE comparando o saldo primário nos anos recentes (assinalei as previsões para 2017 a vermelho):
Note-se que esta observação, de resto
amplamente reconhecida até por
deputados do PS, não constitui por si uma crítica. É fácil de compreender que há uma diferença de atitude simbólica mas importante entre ter o discurso de querer ir «para além da Troika» ou tentar consolidar o mínimo que o actual contexto (em relação aos mercados, mas principalmente em relação às relações de forças na UE) exige, mesmo que os saldos primários resultantes não sejam significativamente diferentes. Até porque uma das posturas luta no espaço europeu por
alguma sanidade, enquanto a outra
procurava dar força aos que querem acentuar a crise - e no médio prazo esta discreta diferença pode dar frutos importantes.
No entanto, não posso deixar de sentir como profundamente desonesto (mesmo que lhe reconheça a expediência política da opção) todo o discurso dominante por parte do Governo e seus apoiantes sobre como foi «virada a página da austeridade». Não nego que possa ser uma opção vantajosa do ponto de vista eleitoral tratar os eleitores como agentes profundamente ignorantes a quem se deve alimentar confusão entre a evolução do ciclo económico e uma profunda mudança de estratégia política - mas nunca será uma opção que aplaudirei, bem pelo contrário.
Também em relação ao
Orçamento de Estado para 2017, o facto de se prever um aumento mais reduzido na receita proveniente do IRC do que dos impostos indirectos (que não têm um carácter progressivo) é surpreendente, já que estas alterações seriam tipicamente correspondentes às opções orçamentais de um governo de direita. Por outro lado, é revoltante o desinvestimento nos transportes públicos e o autêntico ataque ao sistema de saúde (uma redução das orçamentadas para esta área superior a 10% em 2017, apesar do sistema já estar tão fragilizado após todos estes anos de austeridade).
Outro ponto a lamentar é prever-se os pagamentos até então acordados no que concerne às PPPs e outras “rendas” afins, na assumpção implícita de que o esforço de renegociação não será consequente ao ponto de ter expressão orçamental (isto não é um problema do orçamento propriamente dito, mas da falta de trabalho prévio durante 2016 que permitisse realizar o orçamento sobre outros pressupostos).
De resto, há que reconhecer que, na generalidade, o Governo tem sido fiel aos compromissos eleitorais, o que desde já me parece à partida preferível a violá-los mesmo quando discordo dos compromissos em si. De qualquer forma, não posso deixar de mencionar dois compromissos que, a meu ver, não deveriam ter sido feitos.
Um é relativo à
diminuição do IVA da restauração. A importante receita (estimada em 350 milhões) que se perde para financiar os serviços públicos ou prestações sociais essenciais vem tornar a fiscalidade menos simples e mais regressiva.
O outro é relativo ao
aumento muito rápido do salário mínimo nacional já que sou da opinião que, para combater o desemprego e melhorar as condições de trabalho a pressão devia concentrar-se na diminuição dos horários (35h de trabalho para todos). Bem sei que a ideia de que o aumento do salário mínimo pode agravar os problemas de desemprego é um argumento da direita (e do
actual ministro das Finanças...) que aliás é usado em toda e qualquer circunstância. Mas isso não quer dizer que os críticos da direita não tenham razão no actual contexto nacional (até um relógio parado...), e há
indícios fortes de que assim é.
A este respeito não posso deixar de notar que a força política que apoiei nestas últimas eleições legislativas (e que continuo a apoiar)
fez estes mesmos dois compromissos no seu programa eleitoral. Isto significa que, mesmo que discorde destas opções, não as considero de enorme gravidade (orgulho-me até bastante do nosso
programa eleitoral).
No que diz respeito à minha opinião sobre a actuação deste Governo, importa também ler o
texto sobre aquilo que apreciei na actuação do Governo.