sexta-feira, 31 de março de 2006

O Governo Sócrates com um ano de vida

Se o Governo de Guterres nos deixou o rendimento mínimo garantido e a rede pré-escolar, o Governo de Sócrates parece, para já, que terá como marca principal a reforma da administração pública. É pouco ou é alguma coisa, conforme as exigências e o temperamento de cada um. Mas continuamos sem saber qual será o futuro de Portugal como país produtor, para lá do turismo e depois dos grandes eventos...

quarta-feira, 29 de março de 2006

A maré virou

A publicação do último livro de Francis Fukuyama («After the Neocons: America at the Crossroads»), no qual o teórico se distancia ostensivamente dos neoconservadores, originou vários artigos interessantes na imprensa anglo-saxónica. A causa imediata da deserção de Fukuyama é a ressaca da guerra do Iraque: à passagem do terceiro aniversário da invasão, já ninguém consegue defender seriamente que a utopia da implantação da democracia pelo método da invasão e da ocupação seja mais do que isso mesmo, uma utopia. O neoconservadorismo (descrito por alguém como «uma mistura de Sionismo, imperialismo petrolífero e honesta evangelização democrática») fica portanto exposto como mais uma das fantasias ideológicas que os Governos fazem circular em tempos de guerra para inspirar editoriais e entreter intelectuais.
Embora Fukuyama continue aparentemente a acreditar que a história das ideias políticas terminou em 1989, com o triunfo da «democracia liberal» (o islamismo não conta?), deixou portanto de ser um crente nas virtualidades das «guerras de conquista democrática» (o que leva a que diga, com alguma graça, que abandonou o «leninismo» dos neoconservadores mais ortodoxos mantendo-se «marxista»). Mas, mais uma vez, o convencimento de que se tinha descoberto as «leis naturais da História» serviu para legitimar guerra e miséria; ou seja: mais uma vez, a ideologia mostrou que pode ser uma forma de alienação.

Revista de blogues (29/3/2006)

  1. «Liberdade religiosa e laicidade», no Ponte Europa: «O Estado deve declarar-se incompetente sobre matérias religiosas e manter-se alheio em relação às Igrejas. A absoluta neutralidade confessional e a separação radical entre a esfera pública e a privada, são a garantia de que nenhuma confissão, corrente filosófica ou associação se aproprie de forma permanente e definitiva do espaço público».
  2. «Jogos de palavras», no Armadilha para ursos conformistas: «Descobri, estupefacto nos últimos dias um novo jogo de palavras mais agradável que as palavras cruzadas ou um qualquer mahjong chinês. Existe o "liberalismo de esquerda".
    Nas próximas semanas, meses ou anos, provavelmente, descobriremos que existe o nazismo de esquerda - por oposição ao nazismo de direita
    ».
  3. «Democratizar o Estado é preciso (1)» no Fuga para a vitória: «O lema da direita é acabar com o Estado providência. Todos os problemas se resolvem com a destruição do Estado social, desde que o seu terreno seja ocupado pelo milagreiro Mercado. Sortudo este Mercado que fica com os despojos do Estado! Ficará com grandes infra-estruturas (escolas, hospitais, repartições…), com equipamentos, com pessoal altamente qualificado, etc.».

terça-feira, 28 de março de 2006

Amartya Sen: «Democracy Isn't 'Western'»

«"The fault, dear Brutus, is not in our stars, but in ourselves, that we are underlings." Culture too, like our stars, is often blamed for our failures. Attempts to build a better world capsize, it is alleged, in the high sea of cultural resistance. The determinism of culture is increasingly used in contemporary global discussions to generate pessimism about the feasibility of a democratic state, or of a flourishing economy, or of a tolerant society, wherever these conditions do not already obtain.
Indeed, cultural stereotyping can have great effectiveness in fixing our way of thinking. When there is an accidental correlation between cultural prejudice and social observation (no matter how casual), a theory is born, and it may refuse to die even after the chance correlation has vanished without trace. (...) Theories have lives of their own, quite defiantly of the phenomenal world that can be actually observed.
(...)
When it is asked whether Western countries can "impose" democracy on the non-Western world, even the language reflects a confusion centering on the idea of "imposition," since it implies a proprietary belief that democracy "belongs" to the West, taking it to be a quintessentially "Western" idea which has originated and flourished exclusively in the West. This is a thoroughly misleading way of understanding the history and the contemporary prospects of democracy.
Democracy, to use the old Millian phrase, is "government by discussion," and voting is only one part of a broader picture (an understanding that has, alas, received little recognition in post-intervention Iraq in the attempt to get straight to polling without the development of broad public reasoning and an independent civil society).
(...)
The belief in the allegedly "Western" nature of democracy is often linked to the early practice of voting and elections in Greece, especially in Athens. Democracy involves more than balloting, but even in the history of voting there would be a classificatory arbitrariness in defining civilizations in largely racial terms. In this way of looking at civilizational categories, no great difficulty is seen in considering the descendants of, say, Goths and Visigoths as proper inheritors of the Greek tradition ("they are all Europeans," we are told). But there is reluctance in taking note of the Greek intellectual links with other civilizations to the east or south of Greece, despite the greater interest that the Greeks themselves showed in talking to Iranians, or Indians, or Egyptians (rather than in chatting up the Ostrogoths).
(...)
To see Iranian dissidents who want a fully democratic Iran not as Iranian advocates but as "ambassadors of Western values" would be to add insult to injury, aside from neglecting parts of Iranian history (including the practice of democracy in Susa or Shushan in southwest Iran 2,000 years ago). The diversity of the human past and the freedoms of the contemporary world give us much more choice than cultural determinists acknowledge. This is particularly important to emphasize since the illusion of cultural destiny can extract a heavy price in the continued impoverishment of human lives and liberties
(Amartya Sen no Opinion Journal; ler na íntegra.)

American heroes (5.3): Robert Green Ingersoll

«While I am opposed to all orthodox creeds, I have a creed myself; and my creed is this. Happiness is the only good. The time to be happy is now. The place to be happy is here. The way to be happy is to make others so. This creed is somewhat short, but it is long enough for this life, strong enough for this world. If there is another world, when we get there we can make another creed. But this creed certainly will do for this life.»

sexta-feira, 24 de março de 2006

Liberdade para a Madeira

O Carlos Esperança lançou no Ponte Europa uma petição:
«Os abaixo assinados (...) vêm solicitar que seja discutida a sanidade mental do Dr. Alberto João Jardim para presidir ao Governo da Região Autónoma da Madeira, com os seguintes fundamentos:
Tendo em conta:
As alterações do humor que tanto o levam a propor a erradicação do Sr. Silva do PSD como a exaltar as virtudes do ora Presidente da República;
A linguagem obscena e reles com que trata os membros da Oposição;
As ameaças que dirige aos adversários políticos;
A incontinência verbal e os insultos aos titulares dos mais altos órgãos da soberania;
A eternização governativa só superada por Fidel Castro;
(...)
O desrespeito pelos Tribunais, nomeadamente o Tribunal de Contas;
(...)
A exigência, ao arrepio da CRP, da «Independência total para a Madeira»;
(...)
Pretendem saber se o referido governante está no pleno uso das suas faculdades para o desempenho das funções que lhe estão confiadas e se dá garantias de respeito pelo 25 de Abril.»

Revista de blogues (24/3/2006)

  1. «Espanha: os resultados das alternativas enérgicas» no Canhoto: «Em Espanha, as causas da esquerda moderna avançam. É certo que lá, ao contrário de cá, as rupturas foram sendo preparadas por compromissos públicos anteriores à vitória eleitoral. (...) De facto, para ter uma legislatura "à Zapatero" é necessário correr riscos, preparar plataformas políticas sólidas, com tempo e fazer escolhas difíceis».
  2. «Hospitais só para católicos» no Causa Nossa: «É mais do que tempo para: (i) acabar com as capelanias oficiais da Igreja Católica, que ofendem o princípio da separação entre o Estado e as igrejas e constituem um subsídio encapotado e injustificado; (...)».
  3. «The Evolution of God» no The Secular Outpost: «One advantage the Hebrew conception of God has over the Christian conception is that is solves the problem of evil. The Hebrew God smites his enemies because they are the enemies of Israel; no logical paradox between omnipotence and omnibenevolence at all».

quarta-feira, 22 de março de 2006

Citações republicanas (7): Jules Ferry

«La loi du 28 mars [1882] se caractérise par deux dispositions qui se complètent sans se contredire: d'une part, elle met en dehors du programme obligatoire l'enseignement de tout dogme particulier; d'autre part, elle y place au premier rang l'enseignement moral et civique. L'instruction religieuse appartient aux familles et à l'église, l'instruction morale à l'école. Le législateur n'a donc pas entendu faire une œuvre purement négative. Sans doute il a eu pour premier objet de séparer l'école de l'église, d'assurer la liberté de conscience et des maîtres et des élèves, de distinguer enfin deux domaines trop longtemps confondus: celui des croyances, qui sont personnelles, libres et variables, et celui des connaissances, qui sont communes et indispensables à tous, de l'aveu de tous
(Jules Ferry, Ministro da Instrução Pública e das Belas Artes, carta aos professores do ensino primário, 17 de Novembro de 1883.)

terça-feira, 21 de março de 2006

Durão é «maciço» que nem gelatina

O político anteriormente conhecido como Durão Barroso assumiu ontem que a decisão de participar na conquista do Iraque «foi baseada em informações que tínhamos recebido e que, depois, não foram confirmadas: que havia armas de destruição maciça(*)». No excerto das declarações de Jose Barroso que ouvi no SIC-Notícias, o actual Presidente da Comissão Europeia vai o ponto de aceitar que aqueles que criticaram a guerra -por exemplo, o Governo francês- «talvez tivessem razão».
Conclusão a tirar, sobre Barroso: como a sua fuga para Bruxelas evidenciara, o ex-maoísta sabe perceber de que lado sopra o vento.
Conclusão a tirar, sobre a guerra do Iraque: apelar ao instinto de defesa grupal contra um ditador distante e fraco funciona melhor com a adição de armas imaginárias mas terríveis (fazer circular fantasias ideológicas sobre a exportação guerreira da democracia e da liberdade também é útil para entreter os mais abstractos).
Conclusão a tirar, para o cidadão comum: (i) desconfiar dos políticos que mantêm ocultas as provas em que alegadamente baseiam as suas decisões; (ii) seguir acriticamente o mais forte numa guerra, embora quase sempre garanta que se fica do lado dos vencedores, não garante a boa consciência; (iii) a gelatina pode ser maciça na nossa imaginação.
(*) Anotaçãozinha embirrenta: «armas de destruição maciça» tornou-se a tradução para português mediáticamente corrente de «weapons of mass destruction»; armas de destruição massiva parecer-me-ia mais correcto...

Revista de blogues (21/3/2006)

  1. «Espírito enclausurado», no Fuga para a vitória: «Todas as ideologias criam os seus lugares idílicos. (...) São dois os paraísos perdidos do liberalismo: o mercado e a comunidade. (...) Saindo o Estado acontece um milagre. Uma espécie de entidade divina (uma mão invisível com tacto social) ligará todas as pessoas por intermédio de um imenso laço comunitário».
  2. «Liberalismo ou indiferença», no Canhoto: «uma política económica liberal será sempre uma política de defesa da concorrência, com uma componente anti-trust. O que tendo que ser feito pelo Estado mostra bem a falácia de muitas das oposições absolutas mercado/Estado (...) a indiferença pode conduzir ao mais iliberal dos mundos. Na economia —liquidando o mercado— como na política —substituindo o debate crítico pelo relativismo absoluto».
  3. «It was important to sign the manifesto» no blogue de Maryam Namazie: «I wasn't involved in drafting the manifesto. I had initially refused to sign the manifesto because it mentioned the 'excesses of communism' as an example of past totalitarianisms and put it on par with Nazism and fascism. (...) if I had written it I would definitely do some things differently. The role of western governments in creating and supporting totalitarian states is absent.».
  4. «O Governo discorda do 3-0» no DOTeCOMe...o Blog: «O Governo "lamenta e discorda" da goleada aplicada pela selecção portuguesa aos seus colegas sauditas (...) A actuação de Cristiano Ronaldo, que não se contentou com um golo apenas, é lamentável porque incita a uma inaceitável ‘guerra de religiões’».

segunda-feira, 20 de março de 2006

Retrato instantâneo da blogo-esfera

Neste artigoO Acidental. Está lá tudo (as provocações, a ignorância, os «liberalistas» pró-fascismo, os anónimos, as personagens inevitáveis, a incapacidade de dialogar e de assumir erros...).

Daniel Dennet

«Are you anti-religion?
I'm actually not anti-religion. I'm certainly opposed to the presumption that religion is wonderful and a necessary part of human life. I feel about religion the way I feel about music, about art, and about smoking. There are wonderful things about all of them. I don't smoke anymore. I'm really glad I don't, and I hope other people don't smoke, but if they do, that's fine. It's not that bad, and some people may really need it. Music and art are better, but people can be addicted to those too.

What would your ideal vision for the role of religion in society?
I think the organizational genius of religion, its capacity to muster wonderful throngs of devoted and selfless actors in major moral efforts is something quite wonderful. It played a huge role in the Civil Rights movement, it played a huge role in upsetting apartheid in South Africa, and it played a role in overthrowing the Shah of Iran (though I feel a little differently about that).

Religious teams have done a lot of excellent moral work. On the other hand, religious teams have done a lot of harm. This is a very powerful force that is very hard to control. And I have not been able to figure out myself whether we can have the power without too much risk

(Daniel Dennet em entrevista.)

domingo, 19 de março de 2006

As primícias da era cavaquista

Concordo na generalidade com o que disse Vasco Pulido Valente nas suas crónicas de sexta-feira e sábado no Público: as nomeações de Cavaco não auguram nada de bom. (A propósito, o Público de sábado confirma que Sampaio, em 1996, convidou o líder do CDS para o Conselho de Estado: ao contrário do que eu afirmara, o líder do CDS, nessa época, era Manuel Monteiro.)

A partir daqui, há dois perigos. O primeiro, que foi claro durante a campanha eleitoral, é que Cavaco queira efectivamente interferir na governação muito mais do que permitiria se fosse ele próprio o Primeiro Ministro. A encenação da «mesa de trabalho» (onde só faltou o portátil e um grosso dossiê...), se indiciar mais do que uma mera encenação, aponta dois caminhos a Sócrates: fazer a política de Cavaco e ser por ela responsabilizado, ou ir a eleições no espaço de um ano.

O segundo perigo é que os acompanhantes de Cavaco queiram combater uma «guerra cultural». Cavaco foi eleito para nos encher a todos de «confiança» e para indicar o caminho ao Governo em assuntos económicos; é possível que se deixe orientar em tudo o resto (diplomacia, direitos cívicos...) pelos fanáticos que levou para Belém. Se assim for, arrisca-se a dividir o país.

quinta-feira, 16 de março de 2006

Revista de blogues (16/3/2006)

  1. «A liberdade e o anarco-capitalismo» no Infernos: «a empresa é uma entidade que tem poder, poder esse que tal como o político tem que ser limitado, o facto de se destruir todos os mecanismos de controle (estatais) apenas significa que passa a existir uma potência de facto que não tem qualquer regulamentação».
  2. «O Texas» no Oeste Bravio: «Os americanos não são mesquinhos, nem invejosos, nem pomposos, nem complicados (tirando o presidente e a familia...)».
  3. «Mais uma para a lista» no Klepsýdra: «durante a sua última digressão de espectáculos, Deeyah foi obrigada a contratar um corpo de guarda-costas pois começou a ser objecto de ameaças de morte da parte de muçulmanos extremistas».

Sectarismo

Jorge Sampaio não encheu a sua casa civil com pessoas próximas do PCP ou do BE. Cavaco Silva leva para Belém figuras conotadas com a direita mais extrema. O exemplo mais óbvio será João Carlos Espada (uma personalidade que sempre aderiu a ideologias totalitárias, hoje um clerical, elitista e reacionário até à caricatura); existe também Blanco de Morais, que vem da extrema direita (e que ainda não consegue falar da lei da nacionalidade sem fazer a ligação «estrangeiro=criminoso» e sem agitar o espantalho da «invasão de ilegais»), Manuel Antunes (que já elogiou publicamente o regime de apartheid sul-africano) e Maria do Céu Patrão Neves (uma comunitarista confessa e uma católica conservadora).
No Conselho de Estado, Jorge Sampaio tentou assegurar que ficassem representados partidos como o PCP (o que aconteceu com Carlos Carvalhas) e o CDS (o que não aconteceu devido a uma «birrinha» de Paulo Portas). Cavaco Silva escolheu três militantes do PSD, um do CDS (Anacoreta Correia, historicamente na direita do CDS) e um independente de direita (João Lobo Antunes).
Até às comemorações do 25 de Abril, tudo ficará mais claro. Para já, o «Presidente de todos os portugueses» parece mais um presidente de uma facção.

terça-feira, 14 de março de 2006

Geometria das guerras culturais

O artigo que cortei e sublinhei ontem toca em vários pontos importantes. Primeiro, aquilo a que poderíamos chamar, sendo descaradamente arrogantes, a «superioridade moral» dos ateus (os únicos que se podem dizer honestamente altruístas...), contra a «imunidade moral» dos crentes (e, já agora, acreditar em «Deus», na História ou na Lei da Oferta e da Procura parece conferir um conforto psicológico muito semelhante). Segundo, coloca os ofendidos pela liberdade de expressão numa posição de heroísmo, o que os retira da sua humilhação/inferioridade auto-infligida. Terceiro (e o que mais me interessa desenvolver aqui) discorre sobre as instáveis alianças e oposições culturais na Europa contemporânea.
Concretamente: as guerras culturais europeias são melhor compreendidas como tendo três pólos (laicistas, cristãos e muçulmanos) do que dois (embora cada um dos pólos tenha tendência a «coligar» mentalmente os outros dois). A querela sobre o preâmbulo do Tratado constitucional europeu, por exemplo, «aliou» temporariamente laicistas e muçulmanos contra a ideia de uma construção política fundada, mesmo que apenas simbolicamente, no cristianismo. A crise dos cartunes juntou muçulmanos e cristãos nos seus «ses» e «mas» à liberdade de expressão, contra o laicismo e o seu direito à blasfémia (notar que em Portugal o campo dos que levantaram dúvidas à publicação das caricaturas uniu os extremos esquerdo e direito do espectro político através de Boaventura Sousa Santos e Jaime Nogueira Pinto, e passando por «centristas» como José Policarpo e Freitas do Amaral).
Evidentemente, os catetos deste triângulo geo-cultural não têm todos o mesmo comprimento. E cada um dos três vértices tem diferentes pesos demográficos, complexidade de organização interna, ou consciência de si próprio. Mas é um esquema mais útil do que as tradicionais dicotomias esquerda/direita, antiamericanos/francofóbicos, etc, para compreender parte do que se passa actualmente na cultura europeia.

segunda-feira, 13 de março de 2006

Slavoj Zizek: «Defenders of the Faith»

«For centuries, we have been told that without religion we are no more than egotistic animals fighting for our share, our only morality that of a pack of wolves; only religion, it is said, can elevate us to a higher spiritual level. Today, when religion is emerging as the wellspring of murderous violence around the world, assurances that Christian or Muslim or Hindu fundamentalists are only abusing and perverting the noble spiritual messages of their creeds ring increasingly hollow. What about restoring the dignity of atheism, one of Europe's greatest legacies and perhaps our only chance for peace?
(...) the lesson of today's terrorism is that if God exists, then everything, including blowing up thousands of innocent bystanders, is permitted —at least to those who claim to act directly on behalf of God, since, clearly, a direct link to God justifies the violation of any merely human constraints and considerations. In short, fundamentalists have become no different than the "godless" Stalinist Communists, to whom everything was permitted since they perceived themselves as direct instruments of their divinity, the Historical Necessity of Progress Toward Communism.
(...)
Fundamentalists do what they perceive as good deeds in order to fulfill God's will and to earn salvation; atheists do them simply because it is the right thing to do. Is this also not our most elementary experience of morality? When I do a good deed, I do so not with an eye toward gaining God's favor; I do it because if I did not, I could not look at myself in the mirror. A moral deed is by definition its own reward.
(...)
Two years ago, Europeans were debating whether the preamble of the European Constitution should mention Christianity as a key component of the European legacy. As usual, a compromise was worked out, a reference in general terms to the "religious inheritance" of Europe. But where was modern Europe's most precious legacy, that of atheism?
(...) those who displayed the greatest "understanding" for the violent Muslim protests those cartoons caused were also the ones who regularly expressed their concern for the fate of Christianity in Europe.
These weird alliances confront Europe's Muslims with a difficult choice: the only political force that does not reduce them to second-class citizens and allows them the space to express their religious identity are the "godless" atheist liberals, while those closest to their religious social practice, their Christian mirror-image, are their greatest political enemies. The paradox is that Muslims' only real allies are not those who first published the caricatures for shock value, but those who, in support of the ideal of freedom of expression, reprinted them.
(...)
Respect for other's beliefs as the highest value can mean only one of two things: either we treat the other in a patronizing way and avoid hurting him in order not to ruin his illusions, or we adopt the relativist stance of multiple "regimes of truth," disqualifying as violent imposition any clear insistence on truth.
What, however, about submitting Islam —together with all other religions— to a respectful, but for that reason no less ruthless, critical analysis? This, and only this, is the way to show a true respect for Muslims: to treat them as serious adults responsible for their beliefs
(Slavoj Zizek no The New York Times; ler na íntegra.)

American heroes (5.2): Robert Green Ingersoll

«Notwithstanding the fact that infidels in all ages have battled for the rights of man, and have at all times been the fearless advocates of liberty and justice, we are constantly charged by the church with tearing down without building again (...)

We are not endeavoring to chain the future, but to free the present. We are not forging fetters for our children, but we are breaking those our fathers made for us. We are the advocates of inquiry, of investigation and thought. This of itself, is an admission that we are not perfectly satisfied with our conclusions

sexta-feira, 10 de março de 2006

Peña-Ruiz: «Culture, cultures, et laïcité»

«Dans la mise en cause de l'idéal laïque, l'invocation de plus en plus fréquente des cultures, voire des “droits culturels”, joue un rôle qu'on ne saurait négliger. Parmi les reproches adressés à la laïcité par ses adversaires déclarés ou masqués qui se disent adeptes d'une “laïcité ouverte”, figure celui de son abstraction supposée par rapport aux données culturelles et aux héritages historiques.
(...)
La laïcité ne requiert pas des sujets humains abstraits, désincarnés: elle refuse seulement de tenir pour culturels et respectables des rapports de pouvoir, fussent-ils enveloppés dans des coutumes qui à la longue les font paraître solidaires de toute une “identité collective”. Difficile question des rapports entre droit, politique, et culture. Contester une tradition rétrograde, ce n'est pas renier ses racines, mais distinguer les registres d'existence en évitant de confondre la fidélité à une culture et l'asservissement à un pouvoir. La personne concrète se découvre alors sujet de droit, capable de vivre en même temps sans les confondre la mémoire vive d'une culture et la conscience distanciée de certains usages dont elle entend s'émanciper.
(...)
La réalisation des idéaux d'émancipation n'est que partielle dans les pays qui se disent les plus avancés en la matière: on ne peut donc que rejeter comme mystificateur l'ethnocentrisme, ou cette réécriture de l'histoire qui consisterait à laisser croire que l'Occident chrétien a produit naturellement les droits de l'homme, alors que ceux-ci y furent conquis, pour l'essentiel, contre la tradition cléricale chrétienne. Rappelons que l'Église catholique a attendu le XXe siècle pour reconnaître la liberté de conscience, l'autonomie de la démarche scientifique et l'égalité principielle de tous les hommes, croyants ou non: toutes choses que le pape anathématisait encore en 1864. Elle a attendu le début du troisième millénaire pour demander pardon pour l'antisémitisme catholique, monstrueuse dérive de l'antijudaïsme religieux, qu'elle n'a pas su empêcher à l'époque où pourtant elle disposait des leviers de l'éducation et de la formation des consciences.
(...)
L'“affirmation identitaire”, si souvent invoquée comme un droit à part entière, ne va pas non plus sans ambiguïté. Vaut-elle pour les individus ou pour les groupes humains? Si l'identité personnelle est une construction relevant du libre arbitre, elle ne peut se résorber dans la simple allégeance à une communauté particulière. En l'occurrence, le droit de l'individu prime sur celui que l'on serait tenté de reconnaître à la “communauté” à laquelle il est dit “appartenir”. Ce dernier terme, à la réflexion, se révèle très contestable. Nul être humain n'“appartient”, au sens strict, à un groupe, sauf à fonder le principe d'une allégeance non consentie qui peut aller loin dans l'aliénation. La jeune femme qui refuse de porter le voile doit-elle y être contrainte au nom du prétendu droit de sa communauté? La femme malienne qui s'insurge contre la mutilation traditionnelle du clitoris sera-t-elle considérée comme trahissant sa culture? La femme chrétienne qui refuse de réduire la sexualité à la procréation sera-t-elle stigmatisée par l'autorité cléricale? L'homosexuel qui entend vivre librement sa sexualité devra-t-il subir les avanies d'une tradition homophobe?
(...)
Une culture qui prétend s'imposer n'est plus une culture, mais une politique. Elle relève donc d'un traitement politique, avec droit de regard sur le sort qu'elle réserve aux libertés. Dès lors, tout individu doit pouvoir disposer librement de ses références culturelles, et non être contraint par elles.
(...)
Liberté de conscience, égalité stricte des divers croyants et des humanistes athées ou agnostiques, autonomie de jugement cultivée en chacun grâce à une école laïque dépositaire de la culture universelle, constituent en effet les valeurs majeures de la laïcité. La séparation de l'État et des Églises n'a pas pour fin de lutter contre les religions, mais de mettre en avant ce qui unit ou peut unir tous les hommes, croyants de religions diverses ou croyants et athées. L'effort que chacun accomplit pour distinguer en lui ce qu'il sait et ce qu'il croit, pour prendre conscience de ce qui peut l'unir à d'autres hommes sans exiger d'eux qu'ils aient la même confession ou la même vision du monde est le corollaire d'un tel idéal. Dans des sociétés souvent déchirées, l'idéal laïque montre la voie d'un humanisme critique, d'un monde véritablement commun. Nul besoin pour cela que les hommes renoncent à leurs références culturelles: il leur suffit d'identifier les principes qui fondent le vivre ensemble sans léser aucun d'entre eux.
(...)»
(Henri Peña-Ruiz no Observatoire du Communautarisme; ler na íntegra.)

quinta-feira, 9 de março de 2006

Da «guerra dos sexos» intra-partidária às quotas de gajas

Existe um problema real de discriminação das mulheres no mercado de trabalho: entram mais mulheres do que homens nas universidades, mas há mais homens do que mulheres empregados. Evidentemente, uma parte da explicação residirá no ciclo biológico, outra parte na divisão do trabalho doméstico, mas a única parte que pode ser discutida politicamente é a discriminação no emprego, que não é nem uma fatalidade genética nem um assunto privado, e é bem real (notar também que as mulheres têm salários inferiores aos dos homens).
Instituir quotas sexuais nas listas de candidatos a cargos políticos não ataca os problemas acima referidos. Pelo contrário, trata-se apenas de mais um episódio da «guerra dos sexos» no interior dos partidos, que aliás nos mostra que os dois partidos mais afectados pela lógica «identitária» («género», «orientação sexual»...) a nível interno são o PS e o BE.
As consequências destas quotas eleitorais na representação política serão despiciendas. Nos cargos de decisão (o Governo, por exemplo), o efeito será nulo. Talvez fosse melhor ter tentado outra abordagem. Por exemplo, recompensas fiscais para empresas de dimensão grande ou média que tenham mais de 50% de mulheres...

quarta-feira, 8 de março de 2006

Novidades sobre a era sampaísta

«P: E era impossível deixar de nomear Pedro Santana Lopes?
R: (...) ninguém apresentou alternativas ao nome de Pedro Santana Lopes (...) Se eu dissolvesse era o equivalente a dissolver por um primeiro-ministro ter, por exemplo, morrido.
(...)
P: Olhando a esta distância, a impressão que fica é que o Governo de Santana Lopes funcionou como uma espécie de vacina que abriu caminho à maioria socialista...
R: (...) Santana Lopes foi nomeado para ficar! Tratei-o de modo igual aos outros primeiros-ministros! Não sei mesmo se não foi até com mais carinho (...)
P: Qual foi o ponto de viragem para a decisão da dissolução?
R: Uma sucessão de coisas. Desarticulações, etc. Mas há um ponto de que estão todos esquecidos: é que a maioria estava a desfazer-se. Durante o Governo do dr. Durão Barroso a maioria aparecia de uma maneira muito sólida. Depois passou a ser uma coisa completamente diferente, e eu comecei a perceber afastamentos, do lado do CDS, relativamente ao dr. Santana e à sua equipa.»
Dois comentários a esta entrevista. Em primeiro lugar, Durão Barrroso não morreu mas também não ficou incapacitado para o cargo. Decidiu, muito simplesmente, fazer a melhor escolha para a sua carreira política pessoal, faltando aos compromissos que assumira implícitamente com o país e com o seu partido. É verdade que a maioria parecia «sólida», mas o facto de ninguém ter apresentado alternativas a Santana Lopes deveria ter feito Sampaio desconfiar... Em segundo lugar, Sampaio afirma que o CDS estava a distanciar-se de Santana. Pois. Paulo Portas não comenta?

sexta-feira, 3 de março de 2006

Timothy Garton Ash: «We must stand up to the creeping tyranny of the group veto»

«It was a bright cold day in February, and the digital watches were blinking thirteen. Across the street from the concrete skeleton of a large building, a noisy crowd was repetitively chanting "Stop the Oxford animal lab! Stop the Oxford animal lab!" Just around the corner, at least 500 demonstrators, among them many Oxford university students, gave their vocal reply: "Stand up for science! Stand up for research! No more threats, no more fear! Animal research, wanted here!" A student wordsmith had obviously worked hard on the chants, which continued with "Pro-science! Pro-gress! Pro-test!". Then there crackled through an oldfashioned electronic megaphone the voices of Oxford academics, a doctoral student and, most movingly, the mother of a disabled child. They explained how progress in medicine depends on carefully regulated animal tests and called on us to resist the "animal rights terrorists". A large banner held aloft in the middle of the crowd proclaimed "Vegetarians against the Alf". Alf stands for Animal Liberation Front, the extremist animal rights network which has attempted (sometimes violently, sometimes successfully) to intimidate universities into not doing research on animals.
(...)
Here the animal rights campaign has something in common with the extremist reaction to the cartoons of the prophet Muhammad, as seen in the attacks on Danish embassies. In both cases, a particular group says: "We feel so strongly about this that we are going to do everything we can to stop it. We recognise no moral limits. The end justifies the means. Continue on this path and you must fear for your life." I don't claim that the two cases are strictly comparable. Human lives are saved by medicines developed as a result of tests on animals; no comparable good is achieved by the republication of cartoons of the prophet. But the mechanism of intimidation is very similar, including the fact that it works across frontiers and is therefore hard to tackle by national laws or law enforcement agencies.
If the intimidators succeed, then the lesson for any group that strongly believes in anything is: shout more loudly, be more extreme, threaten violence, and you will get your way. Frightened firms, newspapers or universities will cave in, as will softbellied democratic states, where politicians scrabble to keep the votes of diverse constituencies. But in our increasingly mixed-up, multicultural world, there are so many groups that care so strongly about so many different things, from fruitarians to anti-abortionists and from Jehovah's Witnesses to Kurdish nationalists. Aggregate all their taboos and you have a vast herd of sacred cows. Let the frightened nanny state enshrine all those taboos in new laws or bureaucratic prohibitions, and you have a drastic loss of freedom. That, I think, is what is happening to us, issue by issue. These days, you can't even read a list of the British war dead in Iraq outside the gates of No 10 Downing Street without getting a criminal record. Inch by inch, paragraph by paragraph, we are becoming less free.
(...)
If someone says "the Nazis didn't kill so many Jews and had no plan for their systematic extermination", he is a distorter of history who deserves to be intellectually refuted and morally condemned, but not imprisoned. If, however, someone says "kill the Jews", or "kill the Muslims", or "kill the Americans", or "kill the animal experimenters", and points to particular groups of Jews, Muslims, Americans or animal experimenters, they should be met with the full rigour of the law. That's why, of all the recent high-profile cases where free speech has been at issue, that of the London-based hatepreacher Abu Hamza is the only one where I feel a criminal conviction was justified. Not because he was a Muslim rather than a Christian, a Jew or a secular European. No. Because he was guilty of incitement to murder. This is the line on which we must take our stand. Facing down intimidation, backed by the threat of violence, is the key to resisting the creeping tyranny of the group veto. Here there can be no compromise.
(...)»
(Timothy Garton Ash no The Guardian; ler na íntegra.)

quinta-feira, 2 de março de 2006

Os difíceis alinhamentos das «guerras civilizacionais»»

Na sequência das reacções à publicação dos cartunes de Maomé, alguns eminentes colunistas e bloguistas do torrão pátrio acusaram a esquerda em geral e Freitas do Amaral em particular de serem «inimigos do Ocidente», «islamófilos», «traidores» e sei lá o que mais. Até houve um blogue que lançou o movimento «Freitas do Amaral não fala por mim», em que aliás participei. Foram bastantes as acusações de «hipocrisia» lançadas a personalidades de «esquerda», que aliás em alguns casos (Daniel Oliveira, Joana Amaral Dias...) eram inteiramente merecidas, porque têm pruridos em troçar de Maomé que não demonstram para com Cristo.
Curiosamente, a operação recíproca também funciona: há muita direita que andou toda lampeira a caricaturar Maomé mas que se encolhe quando toca à religião maioritária cá do burgo. Para esses «guerreiros civilizacionais», e tendo em conta as declarações de ontem de José Policarpo («o respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade») e já mais antigas do Vaticano («a liberdade de expressão não pode incluir o direito de ofender os sentimentos religiosos dos crentes»), sugiro o seguinte programa de trabalhos: para começar, Pacheco Pereira faz uma das suas dissertações sobre a «decadência da Europa», explicando que «Ratzinger é um Papa politicamente correcto» e que «a ICAR é islamófila»; depois, Luciano Amaral escreve um artigo elaborando sobre o tema «o discurso católico é contrário aos valores ocidentais» e O Insurgente lança a petição «O Papa não fala por mim»; finalmente, Helena Matos faz um artigo com a expressão «politicamente correcto» uma vez por parágrafo, onde acusa José Policarpo de «ódio à nossa civilização», e José Manuel Fernandes chama «apaziguador» a José Policarpo num editorial em que fala de Churchill e Chamberlain e enfia a martelo umas palavras em inglês.
Senhoras e senhores, mais um esforço se quereis provar o vosso apego à liberdade de expressão!

quarta-feira, 1 de março de 2006

Rushdie et al:«Together facing the new totalitarianism»

«After having overcome fascism, Nazism, and Stalinism, the world now faces a new totalitarian global threat: Islamism.

We, writers, journalists, intellectuals, call for resistance to religious totalitarianism and for the promotion of freedom, equal opportunity and secular values for all.

The recent events, which occurred after the publication of drawings of Muhammed in European newspapers, have revealed the necessity of the struggle for these universal values. This struggle will not be won by arms, but in the ideological field. It is not a clash of civilisations nor an antagonism of West and East that we are witnessing, but a global struggle that confronts democrats and theocrats.

Like all totalitarianisms, Islamism is nurtured by fears and frustrations. The hate preachers bet on these feelings in order to form battalions destined to impose a liberticidal and unegalitarian world. But we clearly and firmly state: nothing, not even despair, justifies the choice of obscurantism, totalitarianism and hatred. Islamism is a reactionary ideology which kills equality, freedom and secularism wherever it is present. Its success can only lead to a world of domination: man's domination of woman, the Islamists' domination of all the others. To counter this, we must assure universal rights to oppressed or discriminated people.

We reject «cultural relativism», which consists in accepting that men and women of Muslim culture should be deprived of the right to equality, freedom and secular values in the name of respect for cultures and traditions. We refuse to renounce our critical spirit out of fear of being accused of "Islamophobia", an unfortunate concept which confuses criticism of Islam as a religion with stigmatisation of its believers.

We plead for the universality of freedom of expression, so that a critical spirit may be exercised on all continents, against all abuses and all dogmas.

We appeal to democrats and free spirits of all countries that our century should be one of Enlightenment, not of obscurantism
(Manifesto assinado por Ayaan Hirsi Ali, Chahla Chafiq, Caroline Fourest, Bernard-Henri Lévy, Irshad Manji, Mehdi Mozaffari, Maryam Namazie, Taslima Nasreen, Salman Rushdie, Antoine Sfeir, Philippe Val e Ibn Warraq, e publicado ontem no Jyllands-Posten e no Charlie-Hebdo.)