segunda-feira, 8 de junho de 2020

A extrema-esquerda e o autoritarismo


Quem vai acompanhando o que escrevo (há pelo menos um leitor a quem estas abstracções não o deixam indiferente) sabe que discordo profundamente que a divisão esquerda-direita corresponda grosso-modo ao eixo horizontal na divisão dos eixos popularizada pela "bússola política".
Na "bússola política" as convicções políticas são mapeadas em dois eixos: um vertical associado ao binómio autoritário/libertário e um horizontal associado ao binómio pró-redistribuição/pró-mercado. Muitas vezes diz-se que o eixo esquerda-direita corresponde ao eixo horizontal, e era também essa a minha convicção há muitos anos atrás. Em vez disso costumo dizer que (pelo menos nos países ocidentais) o eixo esquerda-direita corresponde à diagonal que que vai do extremo libertário e pró-redistribuição até ao extremo autoritário e pró-mercado.



Um aspecto que denuncia que o eixo horizontal não é o eixo esquerda-direita é o nosso uso do termo extrema-direita.
Nós consideramos que a extrema-direita corresponde aos partidos mais autoritários, com tendências fascistas e racistas, mesmo que os seus programas económicos sejam relativamente moderados.
Por exemplo, o PNR está à esquerda do CDS no eixo económico, mas ninguém duvida que o PNR pode mais facilmente ser considerado um partido de extrema-direita do que o CDS.
O mesmo acontece em relação a Bolsonaro, Trump, etc. A perspectiva dominante do partido Republicano é mais pró-mercado que a perspectiva de Trump, e no entanto ninguém pode negar que Trump arrastou o partido republicano para a direita.

Existem outras duas razões importantes (além do uso que fazemos do termo "extrema-direita") que justificam esta minha perspectiva: as origens históricas da terminologia e a enorme correlação que existe entre a convicção de que se deve distribuir (/concentrar) o poder económico e a convicção de que se deve distribuir (/concentrar) o poder político. Ora a forma de comprimir estes dois eixos num só perdendo o mínimo de informação seria escolher um eixo com o declive da correlação. Sobre todas estas questões já tinha falado em textos anteriores, mas sempre existiu um ponto fraco nesta tese.

Se a tese do eixo horizontal tem como ponto fraco o uso do termo "extrema-direita", a tese do eixo diagonal como como ponto fraco o uso do termo "extrema-esquerda".
Efectivamente, nós consideramos regimes como o regime de Estaline ou de Mao como regimes de "extrema-esquerda", e não podemos considerar que uma ditadura está no extremo libertário, certamente.
Aparentemente, o uso que fazemos do termo "extrema-esquerda" é completamente consistente com a suposição de que o termo está associado ao eixo horizontal. Todos os regimes de transformação radical da sociedade visando uma distribuição mais equitativa da propriedade e rendimento são considerados extrema-esquerda, trate-se de uma ditadura ou de um sistema anarquista (incompatível com o capitalismo).
Há alguns anos que reconhecia esta questão como sendo o ponto fraco da minha tese. Uma peça que não encaixa. Mas as outras razões a favor desta tese parecem-me tão fortes, que mantive esta perspectiva quanto ao eixo esquerda-direita.



Mas pensemos um pouco nos regimes ditatoriais ou totalitários que resultaram das revoluções socialistas. Em tese, tratam-se de regimes marxistas revolucionários.

Estou convencido que, na prática, aquilo que os líderes destas ditaduras querem é perpetuar-se no poder, concentrando poder em si e nos seus. Mas o que é que, em tese, a sua ideologia visa? O que é que visa a ideologia marxista revolucionária? Esta ideologia visa o comunismo: uma sociedade sem classes e sem estado.

O comunismo (ou "comunismo utópico" para distinguir do significado que o termo comunista ganhou devido à prática dos "regimes socialistas") é efectivamente indistinguível da anarquia. O que separou os marxistas dos anarquistas quando ocorreu a cisão da Primeira Internacional não foi o ponto de chegada almejado: ambos tinham o mesmo sonho. O que os separou foi o caminho.

Os marxistas propunham, para chegar ao comunismo - a utopia em que o poder político e económico não podia estar mais distribuído - instaurar a "ditadura do proletariado", roubando o estado às mãos da burguesia, para então usar esta ferramenta poderosa de forma a criar as condições para a sua dissolução. Ou seja, para chegar ao canto inferior esquerdo, fazer um atalho (ou desvio) pelo canto superior esquerdo. Os anarquistas nunca acreditaram nesta estratégia, e previram logo de início que a concentração de poder dela resultante iria auto-perpetuar-se de forma a que o "comunismo" nunca seria atingido.

Quer isto dizer que devemos colocar a generalidade dos partidos de extrema-esquerda no canto inferior esquerdo? A meu ver, isso seria uma péssima ideia. À medida que se foi conhecendo o "resultado prático" das revoluções socialistas, o pensamento marxista foi-se tornando mais rico e diverso, e tornaram-se muito mais comuns linhas de pensamento que rejeitavam a estratégia da "ditadura do proletariado", ou pelo menos nos termos em que inicialmente fora proposta. E para distinguir facções com menos desconforto face à ideia de uma ditadura que dure várias gerações (suponho que não era o que Marx tinha em mente...) de outras que são radicalmente avessas a essa ideia, devemos pensar na posição dos partidos de esquerda de acordo não com a sua derradeira utopia, mas sim com aquilo que em termos práticos querem implementar. Se estão dispostos a aceitar uma concentração excessiva de poder nas mãos do estado (mesmo que hipoteticamente seja para um dia o poder dissolver), então estarão mais acima no eixo autoritário-libertário. E note-se que as correntes de pensamento marxista radical que conseguiram conquistar o poder não são uma amostra representativa das correntes de pensamento marxista radical que existem.

Seja como for, esta discrepância entre o ponto para onde vários partidos e correntes de esquerda querem ir no futuro imediato e aquele que é o seu objectivo derradeiro parece explicar a aparente inconsistência no uso que damos ao termo "extrema-esquerda".
Efectivamente, todos os partidos ou correntes de "extrema-esquerda" sonham chegar ao canto inferior-esquerdo do mapa, mesmo que alguns usem uma estratégia que pode ser considerada claramente contra-producente.