segunda-feira, 11 de junho de 2007

Pensamento e Acção - IV

Ou seja: se é verdade que «pensamento sem acção ou é aborto ou é traição», também é verdade que aquilo que acreditamos sobre o mundo não deve estar dependente daquilo que nos desse mais jeito que fosse verdade.

Devemos esquecer que acções é que cada crença implica, quando procuramos saber qual o mundo mais desejável. Devemos estar dispostos a rever tais crenças sempre que bons argumentos, factos, dados, raciocínios ou conclusões o justificarem. E apenas nessas circunstâncias.

Posto isto, creio que é louvável que façamos sacrifícios em nome daquilo que acreditamos, tentando ser coerentes com as nossas crenças. O altruismo é geralmente uma boa qualidade, e deve ser encorajado e aplaudido.
Mas se não formos capazes de fazer aquilo que consideraríamos mais desejável, é melhor reconhecermos as nossas limitações do que tentar enganarmo-nos a nós próprios reformulando as nossas crenças para evitar grandes trabalhos ou sentimentos de culpa.

Estar disposto a ouvir quem pensa de forma diferente é fundamental. O Compromisso é sempre necessário nas grandes transformações. E as discussões devem centrar-se nas ideias, e não em críticas como as do Matias.

34 comentários :

Max Mortner disse...

Caro João Vasco,

O que eu quero dizer é que hoje a leveza com que se encara tudo, inclusive o abraçar de uma ideologia radical, permite que se viva com um enorme distanciamento entre o pensamento (ideologia) e a o modo de vida das pessoas (acção). Há um enorme relativismo no meio de tudo isto que é, obviamente, bem aceite pelas pessoas que, afirmando serem diferentes, não querem perder as regalias (ou as vantagens) de serem iguais. Partindo para o sempre perigoso caminho das comparações e dos exemplos, permita-me dar-lhe o seguinte exemplo: um indivíduo que se afirme vegetariano, porque acredita que comer vegetais é mais saudável (ou que matar animais é cruel) pode, na sua perspectiva comer carne, porque não é por isso que vai deixar de acreditar que é, de facto, melhor ingerir unicamente vegetais. É, certamente perigoso, comparar ideologias a restaurantes, dietas, etc. Contudo, este exemplo ilustra bem a maneira como uma certa extrema esquerda ( e também uma certa extrema direita) encaram as suas posições ideológicas.
Deve haver um mínimo exigível: a um comunista deve-se exigir que não seja capitalista (não estou a falar de classe média ou média-alta, estou a falar de capitalismo a sério!), a um fascista deve exigir-se que não vote, pois não é democrata.
Se eu fosse anarquista procuraria viver de acordo com os meus ideais, ainda que para tal tivesse que abdicar do meu bem-estar. Não me afirmaria publicamente como um anarquista se vivesse dependente do Estado (noutro dia naquela reportagem que saiu sobre o anarquismo havia um “anarquista” que vivia do rendimento mínimo!). Também não o faria se fosse um grande capitalista.

PS:deixei este comentário na caixa do texto "dar mau nome ao anarquismo". Como há relação entre os dois textos deixo também aqui.

João Vasco disse...

«é, obviamente, bem aceite pelas pessoas que, afirmando serem diferentes, não querem perder as regalias (ou as vantagens) de serem iguais.»

Aquilo que digo é que o facto de não querermos perder as regalias de "ser igual" não nos deve impedir de pensar diferente.

Agora, se pensamos diferente, quanto «bem» (da nossa perspectiva) estaremos dispostos a fazer?
E exemplo do vegetariano diz-me bastante. Gosto muito de carne, e parece-me difícil renunciar a ela, mas isso deve-me impedir de louvar a atitude de quem come soja em vez de carne de vaca?

Claro que eu acredito que outros sacrifícios que eu poderia fazer teriam consequências ainda mais positivas - a kuta contra a pobreza parece-me mais importate que a luta contra o sofrimento animal. Mas ainda assim eu estou longe de fazer tantos sacrifícios que deveria - como (quase) toda a gente!


Mas de repente, parece que nós exigimos um nível de sacrifícios maior a quem pensa de forma mais diferente.
Isso é um forte encorajamento para que todos pensem de forma semelhante: se és uma pessoa normal (que sabe que existem pobres a morrer) podes ir ao restaurante em vez de dar essa poupança aos pobres, mas se és um anarquista já tens de abdicar do rendimento mínimo garantido a que terias direito - é uma dádiva de cerca de 40 contos por mês.

Do ponto de vista intelectual isto é errado. E do ponto de vista do debate das ideias e valores é empobrecedor.

Acho bem que exijamos uns dos outros alguma fibra moral. Mas na mesma medida - não podemos exigir maior fibra moral apenas porque alguém tem uma ideia diferente a respeito daquilo que seria um mundo melhor.

Será que os anarquistas em geral se sacrificam menos por aquilo em que acreditam que os não-anarquistas?
E os comunistas?
E os ecologistas?
Etc...


Se eles tiverem certos, e o mundo que defendem é um mundo melhor, não é por «não se sacrificarem o suficiente para viver de acordo com esses ideias» que perdem a razão.
E quanto ao altruismo, duvido a maior parte de nós, se acreditássemos no mesmo, fizessemos muito mais do que eles fazem em nome das suas crenças.

Achamos que as crenças estão erradas? Então tentemos expôr o porquê.
Acho que criticar os seus estilos de vida atrapalha um pouco a discussão.

Anónimo disse...

"um indivíduo que se afirme vegetariano, porque acredita que comer vegetais é mais saudável (ou que matar animais é cruel) pode, na sua perspectiva comer carne, porque não é por isso que vai deixar de acreditar que é, de facto, melhor ingerir unicamente vegetais".

Certo. Mas há aqui outra questão no meu entender. Imaginemos que esse vegetariano decide criar e organizar um movimento social que defenda o vegetarianismo, e que tenta mobilizar e sensibilizar outras pessoas para essa prática. Será legitimo que esse vegetariano tente coagir outras pessoas a adoptar um estilo de vida que ele próprio não segue? Um ideal que ele próprio não leva muito a sério?
O vegetariano defende o vegetarianismo enquanto princípio ou regime alimentar ideal, mas enquanto prática desdenha deste não o praticando. É este tipo de vegetarianos que queremos?

Um abraço

Max Mortner disse...

Caro anónimo,

Poupou-me o trabalho de escrever outro comentário. Era esse o ponto que eu queria focar.

Obrigado,
Mortner

PS: Quem pensa de forma diferente tem sempre que fazer sacrificios.Foi assim que aconteceu com aqueles que lutaram contra o Estado Novo e contra outras ditaduras. Nada de novo se consegue sem sacrificios.

João Vasco disse...

«Certo. Mas há aqui outra questão no meu entender. Imaginemos que esse vegetariano decide criar e organizar um movimento social que defenda o vegetarianismo, e que tenta mobilizar e sensibilizar outras pessoas para essa prática. Será legitimo que esse vegetariano tente coagir outras pessoas a adoptar um estilo de vida que ele próprio não segue? Um ideal que ele próprio não leva muito a sério?
O vegetariano defende o vegetarianismo enquanto princípio ou regime alimentar ideal, mas enquanto prática desdenha deste não o praticando. É este tipo de vegetarianos que queremos?»

Isso faria todo o sentido, e seria um excelente argumento, se os partidos comunistas tentassem convencer os ricos - cada um deles individualmente - a abdicar de toda a sua riqueza para dar aos pobres.

Mas não é nada disso que os partidos comunistas fazem: eles lutam para que um dia não exista propriedade privada - mas entretanto não apelam a que nenhum rico abdique dela individualmente.

Assim sendo, um rico que é comunista, ao militar na causa, não está a apelar aos outros ricos para abdicarem individualmente da sua riqueza.
Está a lutar por uma sociedade onde deixaria de existir propriedade privada - para todos - o que o desfavoreceria, mas ele aceitaria. Mas aí - alegadamente - não haveriam outros ricos ou pessoas a explorar o seu trabalho.


O mesmo posso dizer em relação aos anarquistas. Se um anarquista critica os outros por receberem dinheiro do estado, então não faz sentido que receba o rendimento mínimo garantido.
Mas se esse anarquista apenas defende que a anarquia seria melhor para todos, e que as pessoas deviam abrir os olhos e ver a opressão, quer do estado, quer do capital, quer da sociedade - do sistema - e que tal opressão é lamentável, ele não está a exigir de ninguém mais do que aquilo que sacrifica.

Claro que eu concordo que quem exige aos outros um determinado estilo de vida, não pode exigir mais do que aquilo que pratica - nesse sentido acho esse argumento bem válido.
Mas não é isso que fazemos ao exigir certos níveis de altruismo a alguém que pensa desta ou daquela forma? Caso acreditássemos no mesmo, seríamos igualmente altruistas?

João Vasco disse...

«Quem pensa de forma diferente tem sempre que fazer sacrificios.Foi assim que aconteceu com aqueles que lutaram contra o Estado Novo e contra outras ditaduras. Nada de novo se consegue sem sacrificios.»

Muitos mais estavam contra o estado novo, do que aqueles que tiveram a coragem e a força para lutarem contra ele (uma minoria, apesar de tudo).

Posto isto, não vou apontar o dedo a quem estava contra o estado novo e não fez muito para lutar contra o regime - antes essa lucidez do que acreditar que o governo de Salazar era o melhor para a nação. E fazer pouco na luta contra o regime (limitar-se à propaganda, por exemplo) sempre era melhor que não fazer nada.

Mas eu prefiro mostrar admiração pelos herois que, enfrentando medos e dificuldades várias, dedicando esforço e correndo riscos, lutaram contra o regime, do que criticar aqueles que, também sem gostar do regime, paralizados pelo medo, ou sem o altruismo ou a capacidade para fazer muito, acabaram por ser mais passivos.

Se uma destas pessoas mais passivas estivesse a discutir com algum apoiante do regime, acharia muito errado que este último argumentasse na base do argumento Matias: «se achas que o regime é tão mau, porque é que continuas tão passivo? És incoerente!»
Certamente que a bondade do regime não dependeria da postura passiva deste crítico, e fazê-lo é descentrar o debate de ideias para passar a fazer julgamentos morais, tantas vezes injustos.

Max Mortner disse...

Caro João Vasco,

Em primeiro lugar deixe-me falar-lhe da luta contra o Estado Novo. Se por um lado, dentro da classe mais esclarecida (que é um factor que deve ser tido em conta, especialmente durante os primeiros anos do regime) havia quem empreendesse uma luta efectiva, havia também quem, não querendo ou não podendo participar nessa luta efectiva, recusava certas oportunidades que o Estado Novo lhe oferecia: não se colavam ao Estado Novo.

Quanto às outras questões o seu raciocinio leva-me a crer que, para si, um capitalista (enorme detentor de propriedade privada e de meios de produção massiça) pode ser ao mesmo tempo comunista, porque estaria "a lutar por uma sociedade onde deixaria de existir propriedade privada - para todos - o que o desfavoreceria, mas ele aceitaria". Entretanto até podia ir explorando, alegremente, a classe operária.
Com este tipo de relativização tudo se torna possível...

Max Mortner disse...

massiça = maciça
desculpem...

João Vasco disse...

«Se por um lado, dentro da classe mais esclarecida (que é um factor que deve ser tido em conta, especialmente durante os primeiros anos do regime) havia quem empreendesse uma luta efectiva, havia também quem, não querendo ou não podendo participar nessa luta efectiva, recusava certas oportunidades que o Estado Novo lhe oferecia: não se colavam ao Estado Novo.»

Pois, mas ao trabalharem e pagarem impostos «alimentavam o estado/regime que queriam destruír».
Para eles, tudo bem - até aplaudimos quando se recusam «colar-se» ao Estado Novo.

Mas os anarquistas já não - se pagam impostos chamam-lhes incoerentes e hipócritas.

Isso é que me parece injusto e incoerente.

Max Mortner disse...

Caro João Vasco,

O Estado Novo foi um regime ditatorial que existiu a Portugal. Por favor não confunda Estado Novo com Estado.Os opositores ao Estado Novo pertendiam acabar com a ditadura e não com o Estado(ao contrário dos anarquistas que pertendem acabar com o Estado).
Quem trabalhava e pagava impostos durante o Estado Novo contribuia não só para a ditadura (que muitos queriam destruir) mas também para o Estado (que a maioria queria manter, comunistas incluidos).

Já agora gostaria de saber qual é a sua opinião sobre o "capitalista -comunista" que referi há pouco.

Cumprimentos,
Mortner

João Vasco disse...

É verdade que quem estava contra o Estado Novo ao alimentar o regime com impostos, estava também a alimentar o estado. E que quem o fazia muitas vezes não tinha nada contra o estado - apenas contra o regime.

Mas os anarquistas, ao alimentar o estado também estão a alimentar hospitais. Como não estão contra a saúde e os hospitais, já podem pagar impostos com consciência tranquila.


Sobre o comunista, repito a pergunta «se fosse rico e concluísse que o comunismo era o melhor regime para todos, o que faria?» Deixaria de ser comunista para não se sentir culpado e poder continuar rico? Manter-se-ia rico e comunista? Ou abdicaria de toda a sua fortuna?

A última opção é sem dúvida a mais louvável. A primeira parece-me de longe a pior - um auto-engano da pior espécie. A segunda opção é sempre criticável por não ser tão louvável quanto a última.
Mas quantos de nós optaríamos pela última? Será que a maioria dos indivíduos o faria? Se não (e creio que não), será razoável estar a exigir a alguém uma fibra moral muito acima da do comum dos mortais?

Max Mortner disse...

O conceito de "ser rico" tem muito que se lhe diga. Há quem considere a classe média-alta, uma classe composta por gente rica, há quem considere que só é verdadeiramente rico quem possui grandes fortunas (capitalistas).
Se eu fosse rico no conceito capitalista do termo (milionário, detentor de grandes propriedades, ou detentor de grandes meios de produção) garanto-lhe o seguinte: abdicava do que tinha.
E digo-lhe uma coisa, não o faria por altruismo (como muitas vezes tem referido). Teria que o fazer porque, caso não o fizesse, viveria numa contradição moralmente insustentável. Não lhe parece? Seria possivel alguem conceber o comunismo como uma solução politica e social e enriquecer alarvemente, explorando trabalhadores? Não me parece.
Tal como lhe disse tem que haver um minimo de coerencia entre a ideologia de um individuo e o seu modo de vida...

Apenas quero deixar aqui mais duas notas relativas a comentários anteriores:

1º- Refere-se ao rendimento minimo, num tom irónico, como "uma dádiva de cerca de 40 contos por mês.". É dinheiro que faz muita falta a muito mais gente do que imagina.

2º-"Achamos que as crenças estão erradas? Então tentemos expôr o porquê." - penso que até agora não ataquei nenhuma ideologia, ataquei apenas a violência anarquista em Rostok e a incoerencia entre ideologia e modo de vida.

3º- Julgo que em alguns pontos posso ter exagerdo. Não tenho problemas em admitir. Contudo continuo a exigir um minimo de moralidade e de coerencia na relação, que deve existir, entre ideologia e modo de vida.

Max Mortner disse...

CORRECÇÃO:

Se eu fosse rico no conceito capitalista do termo (milionário, detentor de grandes propriedades, ou detentor de grandes meios de produção) e fosse comunista garanto-lhe o seguinte: abdicava do que tinha.

João Vasco disse...

«Teria que o fazer porque, caso não o fizesse, viveria numa contradição moralmente insustentável. Não lhe parece?»

Parece-me que todos vivemos nessas circunstâncias.
Sabemos que há gente a morrer de fome e de doenças. Se víssemos alguém a morrer pedindo ajuda e virássemos a cara, isso seria moralmente insustentável.

Mas todos nós sabemos que se abdicássemos de todos os pequenos luxos e gastos desnecessários, poupando para dar a certas instituições de médicos e outros voluntários, os medicamentos e a ajuda que dessa dádiva adviriam salvariam muitas vidas.
Mais grave que "explorar" é matar, e nós sabemos que matamos por omissão.
Podemos sempre evitar a culpa: dizer que esse sacrifício não adientaria de nada, ou outra treta qualquer - isso é fazer o mesmo que o comunista que prefere abdicar do comunismo a abdicar da fortuna. É traição intelectual e uma fuga cobarde à acção.

Se não somos capazes de agir, ao menos não nos enganemos a nós próprios. Sim, matamos por inacção, é verdade. Não somos santos nem mártires, queremos ter uma vida agradável, queremos estar integrados e não marginalizados e a nossa vontade de fazer o bem não é suficiente para que os nossos sacrifícios sejam acima de um determinado limite. Não somos monstros: somos humanos.

Admitir isso é um passo: agora resta não exigir aos outros mais do que exigimos a nós. Quando são anarquistas, ecologistas ou comunistas é fácil: «como pode um aquele rico explorar os proletários se, sendo comunista, deveria achar isso horrível?». E como posso eu comprar um televisor, se, conhecendo o mundo que me rodeia, sei que abdicando dele e usando convenientemente o dinheiro poupado posso salvar vidas? Como posso ver televisão sabendo que matei por omissão? Não será pior que explorar proletários?

Quando se tem uma visão «moderada» da realidade não nos é exigida uma fibra moral superior à das pessoas em geral. Mas se tivermos uma visão mais extrema, já nos exigem a fibra dos herois. Mas as pessoas com tais perspectivas também são humanas - e não é isso que impedirá que estejam certas (ou erradas) naquilo que defendem.

João Vasco disse...

«penso que até agora não ataquei nenhuma ideologia»

É verdade. Mas a crítica aos anarquistas de não se marginalizarem o suficiente (pagar impostos, etc...) é uma crítica que creio que não colhe.

Não podemos exigir aos outros um nível de entrega pelas ideias que têm do mundo, que depois nós próprios não somos capazes de demonstrar. Na nossa sociedade poucos poderão dizer que não «matam por omissão» em nome de pequenos luxos, em nome do seu bem estar. Se o fazemos, como criticamos outros por não se entregarem o suficiente a tornar o mundo melhor de acordo com aquilo em que acreditam?

Max Mortner disse...

Repare no seguinte:
Uma coisa é matar por omissão, é triste e lamentável e infelizmente acontece-nos a todos.
Não podemos é confundir o resultado da nossa não acção com o resultado da nossa acção directa.

Eu quando vou comer a um restaurante não estou a provocar a fome no mundo (que obviamente desejo que acabe), ao passo que um comunista que explore operários está a alimentar directamente um sistema (capitalismo) que condena. Desculpe mas isto parece-me demasiado claro para que se discuta - o Vasco não pode comparar estas situações.

Eu não exijo herois, exijo um minimo de coerencia. E penso que certo tipo de relativismos são perigosos...

João Vasco disse...

Quando as consequências são más, a omissão é menos grave que a acção. Muito menos grave, aliás. Estamos de acordo.

Mas também espero que concordemos que matar é mais grave que explorar. Muito mais grave, aliás.

E isso empata um bocado as coisas...

Anónimo disse...

queria dizer uma coisa sobre o tema vegetarianismo que me é próximo. manter uma dieta vegetariana a maior parte do tempo mas comer carne esporadicamente não permite, em rigor, designar a pessoa como vegetariana. mas a verdade é que me dá grande satisfação, como defendor de uma transição global para o vegetarianismo, ouvir alguém dizer que é 80% vegetariana, como já me aconteceu algumas vezes. o que me interessa a coerência ou a radicalidade dessa pessoa quando de facto já está a contribuir grandemente para o desestabilizar da indústria da tortura e carnificina animal? estou perfeitamente convencido que o tipo de consciência que leva alguém a ter uma dieta 80% vegetariana por razões éticas e ecológicas é um passo de gigante para o resultado final que se pretende.

neste momento posso dizer que estou de acordo com a nova formulação do max mortner:

"continuo a exigir um minimo de moralidade e de coerencia na relação, que deve existir, entre ideologia e modo de vida."

talvez retirando mesmo o qualificativo "mínimo"

assim, concebo anarquistas que levem a sua vida dentro das possibilidades de um estado omnipresente, mas não concebo anarquistas que façam da sua prática diária uma relação de poder. há realmente princípios básicos que devem ser respeitados, senão a confusão é total. surgem os comunistas latifundiários e milionários, os vegetarianos estéticos de verão que comem carne o resto do ano, e os liberais cujo discurso social não se distingue de um qualquer padre católico.

mas poderiamos ir um pocuo mais além. como é que se colocaria esta questão da coerência a um democrata e apologista do mercado capitalista que ao mesmo tempo se afirmasse pessoa de paz, contra o sofrimento e a exploração, contra a corrupção e manutenção de interesses alheios ao bem-estar das populações por parte das elites políticas? neste caso parte-se geralmente de uma análise que tem por base a ideia do "melhor dos sistemas possíveis", mas isto não deixa de ser um aval à depredação global a que assistimos. esta é a incoerência que mais interessa analizar - deixando de lado as montras de bancos partidas em manifs e as pedras atiradas à polícia tipicamente em situação de auto-defesa - porque é esta a violência que domina o mundo nos dias de hoje.

Anónimo disse...

lá em cima o max mortner disse:

"Quem pensa de forma diferente tem sempre que fazer sacrificios."

concordo que seja o caso geral. quanto mais não seja sacrifica a aceitação por parte d@s outr@s.

mas isso não acontece por ser um imperativo moral ou uma exigência axiomática. é apenas uma consequência dadas as circunstâncias

Ricardo Alves disse...

Alguém leu «O banqueiro anarquista»?

Anónimo disse...

li e não gostei

Max Mortner disse...

Caro João Vasco,

“matar é mais grave que explorar”

Estamos de acordo. Só que eu, ao ir comer a restaurantes, ao ir ao cinema e ao comprar um livro não mato ninguém. Contudo admito que ao votar em lideres que nada façam contra a fome no mundo as guerras, etc aí sim poderei (sublinho poderei) estar a matar por omissão (estou de consciência tranquila porque voto sempre em branco). Esse argumento, desculpe-me, mas não empata nada.

Max Mortner disse...

Caro Panurgio,

Concordo consigo. Agora o que não quero é ouvir uns "meninos bem" a dizerem que são anarquistas. Que digam que são 20% anarquistas! Quando se é 50% vegetariano não se deve afirmar que se é vegetariano!
Quanto aos democratas pacifistas espero que resolvam os problemas do seu país dentro das regras democráticas. Quando forem chamados a interferir em problemas relacionados com a fome e com as guerras exijo que façam o seu melhor – e se for necessário que se insurjam contra interesses instalados que prejudiquem as pessoas por quem lutam.
É por isso que exijo coerência e moralidade na relação entre ideologia e modo de vida – é lógico que quanto mais radical for essa ideologia, mais difícil será ser coerente (é como o caso de um democrata, socialista ou social democrata, que viva numa ditadura: a sua posição é, aí, considerada radical e pode trazer-lhe dissabores)

João Vasco disse...

Um vegetariano não é alguém que acredita que os animais sofrem e que o ideal seria só comer vegetais. Se assim fosse, eu seria vegetariano.

Um vegetariano é alguém que não come carne (e eventualmente derivados).


Um anarquista não é necessariamente um "activista". Um anarquista é quem acredita que o mundo seria melhor se vivêssemos em anarquia. Seja ele rico ou pobre, receba o rendimento mínimo ou o rendimento máximo.
Se acredita nisso, é anarqusta.

Se acredita nisso e isso não altera em nada o seu modo de vida, então é anarquista E conformista. Podem chamar-lhe egoísta, podem dizer-lhe que se está a marimbar para o facto do mundo ficar melhor ou pior, e até podem dizer que é uma má pessoa.
Mas não há nada de incoerente em não querer saber dos outros, ou não estar disposto a sacrificar-se por um mundo melhor. Um anarquista que mantém o mesmo estilo de vida que quem não o é, não deixa de ser anarquista - quando muito é um anarquista conformista.

E o mesmo para um comunista. Se acredita que o mundo seria melhor se vivêssemos num regime comunista, é comunista. Se é rico e pensa isso, apenas mostra que tem a lucidez de não fazer os seus interesses pessoais interferirem naquilo que acha que seria um mundo melhor.

Um comunista rico não é incoerente. Quando muito podem dizer que é um indivíduo coerente e sem escrúpulos.

Mas eu discordo. Discordo porque acho que poucos dariam a sua fortuna por achar que o mundo seria melhor se deixassem de o fazer.

Não vou exigir a um comunista maior fibra moral que exijo a um moderado.


Não acho que devamos exigir a alguém que advoga enquanto ideal uma sociedade muito diferente maior fibra moral do que aquela que exigimos a um moderado.

Mas acho que isso acontece: as pessoas exigem muito mais de quem tem ideais mais diferentes.
Um cristão sabe que o "ideal" seria abdicar de toda a sua fortuna e dar aos pobres, Jesus disse que os cristãos deviam fazê-lo, e disse-o várias vezes. Ninguém chama a um cristão "normal" incoerente apenas porque ele não abdica da sua fortuna: ser cristão é acreditar em Jesus, não é nunca ter pecado. E eu não aceito que digam que o Hitler não era cristão apenas porque ele foi muito malvado: ser cristão é acreditar em Jesus, não é fazer isto ou aquilo.
Um cristão que faz maldades é pecador, não é incoerente.

Mas ao comunista, ao contrário do cristão, já exigimos que abandone a sua fortuna. Se não o fizer é um crápola explorador - que raio de motivação para acreditar que o comunismo é mau (e há tantas boas).

Só não chamamos incoerentes às pessoas moderadas e normais, ou pelo menos não lhes chamamos "sacanas", porque estamos demasiado habituados ao seu exemplo para vermos as coisas com lucidez. Todos fazemos coisas que não são as mais correctas de acordo com aquilo que acreditamos - isso faz o nosso comportamento ser menos exemplar, mas não faz de nós incoerentes. Isso não mostra crenças contraditórias ou incoerência: mostra que não somos santos.

Mas é incrível como exigimos muito mais de um anarquista. Exigir que esteja fora do sistema capitalista, que não pague impostos sequer, é uma exigência notável! Nós fazemos sacrifícios dessa magnitude em nome daquilo que achamos estar mais correcto? Eu estou a escrever num blogue e podia estar a fazer voluntariado - sou incoerente ou crápula?
E note-se, eu acredito realmente que o mundo teria mais a ganhar com o voluntariado que estivesse agora a fazer que com estas palavras que me apetece escrever. Mas nós nem sempre fazemos aquilo que acreditamos ser melhor para os outros. Isso não torna as nossas crenças incoerentes - não é relativismo, é chamar os bois pelos nomes.

Relativismo é relativizar a avaliação e criar um julgamento ético diferente (menos rigoroso) para os moderados.

Max Mortner disse...

Se para alguem se assumir como seguidor de uma doutrina, seja ela qual for e seja qual for a sua natureza (vegetarianismo, cristianismo, comunismo, socialismo, etc) basta dizer que se acredita nela então, tudo é permitido a quem se afirmar adepto de uma teoria. Não há a necessidade de coerencia ou de moral. Vale tudo!
O Hitler era cristão o Mao era comunista, o Salazar era patriota, etc

João Vasco disse...

Nem tudo é permitido a quem acredita em algo, mas isso é no plano moral.
Um comunista que mate alguém é um assassino, da sua perspectiva e da nossa, mas não deixa de ser comunista.
Um comunista que dê uns traques no meio da sala cheia do cinema, prejudicou os outros, tanto da sua perspectiva como da nossa. Não foi moralmente a melhor coisa a fazer, mas não deixa de ser comunista.
Da mesma forma, se tiver uma fortuna devido a várias indústrias, pode considerar-se a si próprio um explorador (quem não for comunista discordará), mas não deixa de ser comunista.

Posto isto, Hitler era cristão se acreditava em Cristo. Ele dizia que sim, portanto, se não mentiu, era cristão.

Mao era comunista se acreditava que os regimenes comunistas eram a melhor solução para todos. Eu acredito que ele pensava isso.

E Salazar era Patriota se acreditava que o bem da Pátria era fundamental. Não tenho razões para duvidar que ele acreditasse nisto.

O vegetarianismo é diferente. Isso descreve hábitos e não crenças. Quem acredita que é mau comer carne não é necessariamente vegetariano. Eu acredito que moralmente seria mais correcto evitar a carne e não sou vegetariano. Mas há quem não veja mal em comer carne, mas não goste do sabor: eles são vegetarianos.

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A necessidade da moral existe, por várias razões. Mas para acreditar nisto ou naquilo não precisamos de ser morais. E ser comunista/anarquista/liberal/etc.. descreve isso: que se acredita que o comunismo/anarquia/liberalismo é o melhor sistema para a nossa comunidade.

Se as pessoas agem de acordo com os seus próprios princípios morais é uma questão de moral. Mas quanto às questões de moral, eu não vou ser mais exigente com uns do que com outros: ou a pessoa faz muito para ajudar os outros, ou faz algo, ou não quer saber. Se não quer saber, de todo, acho mal.
Se faz algo, mas não faz muito, não serei eu a criticar por não fazer mais - acredite ela no que acreditar.
Se fizer muito, não vou achar que não faz mais que a sua obrigação, ou que está "apenas" a ser coerente. Vou aplaudir a sua entrega, mesmo que ache lamentáveis as suas acções (como no caso de quem se atirou contra as torres gémeas - acho que praticaram o mal (não sou relativista) - mas não esqueço que deram a vida por aquilo em que acreditavam: um gesto extremamente altruista - é possível ser altruista e fazer o mal, como se vê).

João Vasco disse...

Onde escrevi "quem não for comunista discordará" deveria ter escrito "quem não for comunista poderá discordar".

Max Mortner disse...

Há partes do seu raciocinio que me fazem lembrar uma tirada do Duque no filme Saló(Pasolini): "Nós os fascistas, somos os verdadeiros anarquistas"...
Na minha opinião têm que haver não só um mínimo de moral mas também um mínimo de coerencia nas acções.
Caso contrário tudo é possível. Podemos ter um comunista que explora de forma selvagem os operários, um Nazi que acha que os judeus são a raça superior, etc.
Acho que as comparações entre política, religião e alimentação não são lá muito saudáveis ;)

Max Mortner disse...

"Mas para acreditar nisto ou naquilo não precisamos de ser morais"

Infelizmente penso que a maior parte dos políticos deste país (e não só) segue este raciocinio...

Ricardo Alves disse...

Humpf. Em princípio, é anarquista quem se considera anarquista, comunista quem se considera comunista, fascista quem se considera fascista, etc.

O problema é que isso depois cria exigências a cada uma dessas pessoas que raramente são cumpridas. E dá disparates, claro.

Ricardo Alves disse...

Distinga-se a identificação pessoal das exigências morais consequentes. É isso que eu quero dizer.

Max Mortner disse...

Caro Ricardo Alves,

Têm que existir limites minimos de exigência moral e, inclusivamente, de coerencia na acção. Caso contrário passa a valer tudo.

Anónimo disse...

uma pessoa pode ser considerada comunista ou liberal sem nunca ter ouvido falar de comunismo?

anarquista pode concerteza. não é preciso alguém declarar-se anarquista para o ser. sabe-se que há pensamento anti-autoritário milénios antes de aparecer a designação anarquista ou de haver qualquer movimento social libertário.

João Vasco disse...

Uma pessoa pode ser considerada comunista se ACREDITAR que o comunismo seria a forma de organização da sociedade que seria melhor para todos - se fosse nessa sociedade que gostaria mais de viver. Isso independentemente de conhcer a palavra "comunismo".

O mesmo para anarquia, liberalismo, etc...


Se a pessoas não faz nada para que as coisas mudem, podem ser por conformismo, egoismo, etc.. É irrelevante para aferir se é comunista/anarquista/liberal/etc ou não.



Um nazi que ACREDITE que as raças são todas iguais é incoerente. Porque acreditar que as raças são iguais é incompatível com acreditar que a raça ariana é superior. São crenças incompatíveis: existe incoerência.

Mas um nazi que viva como outra pessoa qualquer não é incoerente. Se calhar acha que no "mundo ideal" os emigrantes iam todos "para casa", mas não quer arranjar chatices por causa das suas crenças, e por isso trata toda a gente por igual.
Um outro nazi pode achar "imoral" o seu comportamento, mas isso não é uma questão de coerência - é uma questão de moral.

Um cristão pecador não é incoerente. Acredita que o adultério é mau, mas continua a enganar a mulher - não há incoerência nenhuma: há falta de fibra moral.
Um cristão que acredite em Poseidon e Thor é incoerente: a crença em Poseidon e Thor é incompatível com a crença na palavra de Jesus.


Crenças incompatíveis: incoerência.

Acreditar que algo seria eticamente louvável, mas não fazer isso (ou acreditar que algo seria eticamente reporovável - e ainda assim fazê-lo): falta de fibra moral.