No dia da morte de Bin Laden, o seu projecto político-religioso parece irremediavelmente fracassado. Ele foi o rosto da ascensão do terrorismo islamista, entre 2001 e 2006, numa sucessão de atentados espectaculares pela sua crueldade. Foi tal o horror que causou, pelo «atrevimento» de atacar em solo norte-americano e na Europa, por usar bombistas suicidas e pela óbvia intenção de maximizar o número de vítimas inocentes, que se tornou quase um acto de traição tentar compreender o homem e os que o rodeavam. Mas, no momento do seu assassinato, a sua estratégia de polarização estava esgotada: o islamismo só tomou o poder em zonas de guerra endémica como a Palestina ou a Somália, os atentados na Europa terminaram, e os povos árabes parecem mais interessados na democracia e na laicidade do que estavam há dez anos.
Ossama Bin Laden foi, no seu tempo, o mais influente líder religioso do mundo. A sua notoriedade global deveu-se a ter inspirado, financiado e parcialmente planeado uma campanha terrorista, mas o discurso que usou para justificar essa campanha apresentava a especificidade de ser integralmente religioso, e sem esse apelo religioso não teria mobilizado tantos seguidores nem teria podido pretender falar por centenas de milhões de muçulmanos. A percepção do Islão alterou-se radicalmente (não para melhor) desde 2001, e é graças a ele que muitos hoje compreendem que nem tudo o que é inspirado pela religião é necessariamente bom. A fronteira entre a devoção e o fanatismo, na realidade e ao contrário do que pensam os que só vêem qualidades na religião, não é clara. E o rosto de Bin Laden, com aquele sorriso tranquilo, é mais próximo do de um santo da ICAR do que da compleição enfurecida de um Hitler ou do que da frieza gélida de um Estaline. Provavelmente, matava convencido de estar a fazer o bem. O que isso nos diz sobre o ser humano e a religião ainda vai demorar a ser compreendido.
Bin Laden teve as suas vitórias. Pretendia polarizar o mundo entre uma revolta islamista e as democracias europeias, e a sua estratégia passava por arrastar estas para a guerra, os assassinatos arbitrários e a violência sobre civis. Em parte, conseguiu o que queria: as democracias da Europa e dos EUA rebaixaram-se ao voltarem a legitimar a prática da tortura, ao invadir Estados muçulmanos sem mandado legal, e ao vigiarem cidadãos que não cometeram qualquer crime mas são muçulmanos. Que Barack Obama diga que se «fez justiça» (sem julgamento) é um sintoma do recuo civilizacional que Ossama logrou: um verdadeiro sinal de superioridade civilizacional seria tê-lo preso e julgado (o que nem sequer foi tentado). A sua herança, para nós europeus, inclui também o poder imenso que os serviços ditos «de informações» reuniram nesta década: existem mais pessoas e meios envolvidos na vigilância dos cidadãos das democracias do que acontecia durante a «guerra fria». E, igualmente assustador, parece haver hoje menos resistência à intrusão do Estado policial na vida privada do que havia nessa época.
As circunstâncias da sua morte têm zonas cinzentas. Da caverna nas montanhas tribais (onde nos diziam que apodrecia) para a mansão de luxo fortificada próxima da capital, vai uma grande distância. As alegações de que o ISI faz jogo duplo ganharam novo crédito. E há portanto mais um indício de que a raiz do terrorismo islamista é o próprio Paquistão.
Finalmente: supondo que o terrorismo islamista a partir de agora agravará o declínio em que já vem desde 2006, não será a altura de encerrar Guantánamo e a rede de prisões ilegais? Penso que sim: a guerra acabou. Ou não?
[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]
11 comentários :
o islamismo só tomou o poder em zonas de guerra endémica como a Palestina ou a Somália....
falta o Sudão, a Líbia, o Irão etc
os atentados na Europa terminaram...jura?
e os povos árabes parecem mais interessados na democracia e na laicidade do que estavam há dez anos....em tempos de crise cada vez mais se voltam para a religião
o Iraque de Saddam ou a Siria de Assad eram regimes laicos
e a Tunísia desde Bourguiba
ou o Egipto de Mubarak
confundir democracia ou pluralismo partidário com laicidade
tal como em Israel o Iraque de hoje tem partidos com pendor religioso
e podiamos fazer a analogia com o Tea Party amerikander logo...
muy mauzinho em termos de análise
Excelente texto!
Parabéns... e obrigado!
Um abraço.
o declínio já vem de 2006?
e a ascensão vem de 2001
aparentemente um historiador fazer juízos de valor
para períodos temporais tão curtos
e o IRA é um fenómeno que se esfumará em alguns anos
isto foi dito em????
http://www.outraspalavras.net/2011/05/02/como-os-estados-unidos-criaram-bin-laden/
este texto do blog parece saído da Casa Branca....
«o islamismo só tomou o poder em zonas de guerra endémica como a Palestina ou a Somália....
falta o Sudão, a Líbia, o Irão etc»
Eu referia-me a ascensões ao poder *depois* de Ossama ter iniciado a sua jihad (em 1998) ou de se ter tornado uma referência política global (em 2001). Os regimes que refere são todos anteriores: o Irão tornou-se uma teocracia em 1989 (e são xiítas); o Sudão tornou-se um regime islamista em 1989 (aliás, foi al-Bashir que deu guarida à al-Qaeda depois de 1996). A Líbia não é um regime islamista.
«os atentados na Europa terminaram...jura?»
Desde os de Londres em 2005 que não há qualquer atentado em solo europeu com real impacto político.
Só conspirações amadorísticas.
«e os povos árabes parecem mais interessados na democracia e na laicidade do que estavam há dez anos....em tempos de crise cada vez mais se voltam para a religião»
Pelo contrário: a revolução tunisina não parece nada islamista. E tenho publicado neste blogue textos de tunisinos que defendem a laicidade (não os leu?). Já no Egipto, acho que há um real perigo de a IM tomar o poder, mas ainda não aconteceu e há muitos que se lhes opõem.
«o Iraque de Saddam ou a Siria de Assad eram regimes laicos»
Ditaduras seculares. Não é a mesma coisa. Mas nenhum parece estar prestes a ser substituído por uma ditadura islamista.
«e a Tunísia desde Bourguiba»
Idem.
«ou o Egipto de Mubarak»
Ditadura do exército desde a queda da monarquia.
«confundir democracia ou pluralismo partidário com laicidade
tal como em Israel o Iraque de hoje tem partidos com pendor religioso»
Pois sim. O que é péssimo. Mas a situação no Iraque é excepcional no panorama dos países árabes.
Onde os islamistas são contados em eleições com um mínimo de seriedade, têm 5%-10% dos votos (Jordânia ou Marrocos).
«e podiamos fazer a analogia com o Tea Party amerikander logo...»
Um bocado deslocada, logo...
«muy mauzinho em termos de análise»
;)
«o declínio já vem de 2006?
e a ascensão vem de 2001»
Foi rápida a queda.
«e o IRA é um fenómeno que se esfumará em alguns anos
isto foi dito em????»
Não sei. Mas não acho que sejam fenómenos comparáveis.
Stefano,
os EUA foram *usados* por Bin Laden. Ele não precisava de dinheiro da CIA (com a qual aliás parece não ter tido muitos contactos): era rico. E o Paquistão armou e treinou os mujahedines por necessidade de se afirmar como potência regional.
A esquerda que acha que Bin Laden foi um pião dos EUA não entende nada, e recorre a uma forma de racismo subtil que consiste em imaginar sempre que os ex-colonizados não podem ter a sua agenda política própria. A agenda dos islamistas não foi criada pelos EUA: foi criada pelo egípcio Qutb e pelo paquistanês Maududi. Por razões especificamente islâmicas, e que não foram um «serviço» feito aos EUA.
Quem não entende isto e continua a dividir o mundo entre os pró-Casa Branca e os anti-Casa Branca só confunde o debate.
Obrigado, Ana Paula Fitas. ;)
Muito bom o texto, e muito bom o comentário das 10:15.
Claro e inteligente, como sempre!
Abraços
Catalina
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