O erro dessa alegação é tão grosseiro, que só se justifica por significativa ignorância, alienante negação, ou - mais provável - insidiosa malícia.
Afinal, o fascismo e outras correntes de direita, ao longo da história e ainda hoje, pretenderam um estado poderoso, não só na proporção dos recursos económicos por si geridos, mas - mais importante - no poder sobre o indivíduo, no desrespeito pelos direitos civis, pelas liberdades individuais.
Pelo contrário, no que diz respeito à defesa das liberdades individuais, a esquerda tem sido, nas democracias ocidentais, quem mais se tem oposto aos diversos ataques, seja no que diz respeito ao uso de tortura (técnicas «avançadas» de interrogatório), seja no que diz respeito ao uso indiscriminado de escutas ou invasões várias da privacidade, seja na tentativa de manter violações flagrantes do princípio da igualdade perante a lei, tais como o não reconhecimento do casamento homossexual - como décadas antes foi a esquerda quem mais apoiou o movimento contra a segregação racial, e décadas antes o movimento das sufragistas.
Note-se que nada impede que pessoas de direita - verdadeiros liberais de direita - tenham uma genuína preocupação por estes assuntos. Desde Milton Friedman que queria legalizar todas as drogas, a Ron Paul que critica duramente o Patriot Act, existe uma legítima e sincera preocupação com as liberdades individuais por parte de algumas pessoas de direita, mesmo quando o direito à propriedade privada parece receber mais atenção que os outros.
Mas quando olhamos para a proporção de gente que luta por estas causas à esquerda e à direita, é um absurdo defender que é a esquerda quem dá menos valor às liberdades individuais - a história tem mostrado que dá mais.
Aliás, esse mito de que a esquerda tem uma simpatia especial pela figura do estado esbarra no facto do anarquismo - que pretende destruir o estado desde já - ser uma corrente de esquerda. No facto da doutrina marxista - de esquerda - ter como objectivo último a destruição do estado.
Não obstante, alegará alguma direita, a esquerda que chega ao poder - seja a social democrata nas democracias ocidentais, seja a marxista noutros países - quer um estado com maior peso na economia. Ao lutarem por um sistema de saúde público, um sistema de ensino público, um sistema de segurança social, ao insistirem em nacionalizar, ou resistirem às privatizações, as pessoas de esquerda defendem ideias que implicam um estado com um papel maior na economia, e por consequência um estado com mais poder nas suas vidas. Assim quanto maior o peso do estado na economia, mais a esquerda levou a sua avante.
Faz sentido?
Não é um absurdo, mas não deixa de ser errado.
Nos EUA um terço dos gastos federais corresponde ao orçamento de «defesa». São valores semelhantes à soma dos gastos do resto dos países do mundo. É a esquerda quem mais luta por diminuir esses gastos.
Existem significativos subsídios às indústrias petrolíferas, naquilo que é uma intervenção flagrante do estado na economia. É a esquerda quem mais luta por diminuir esses gastos.
Existem duas guerras a ser travadas, no Iraque e no Afeganistão. É a esquerda quem luta por lhes pôr um ponto final.
A privatização do serviço prisional, proposta pela direita, fez disparar os gastos do estado com os prisioneiros.
Note-se que o mesmo acontece várias vezes que o estado quer garantir a prestação de um serviço, mas deixa de o prestar ele próprio: os custos sobem. Nesse caso, o fim da prestação directa desse serviço pode aumentar a dimensão do estado (se medida sob a forma da razão entre os gastos e o produto interno bruto). Quando a direita luta pelo cheque ensino, pode estar a lutar por um estado maior, assumindo que não quer uma educação pior.
Devo mencionar que não considero esta possibilidade no abstracto. Muita da corrupção no Iraque, na Rússia, em Nova Orleães, deveu-se a este tipo de contratos, nos quais o estado optava por pagar a privados a peso de ouro o serviço que antes era prestado com menores custos.
Em Portugal tivemos exemplos deste tipo no que diz respeito às obras públicas, as agora tão célebres PPPs, criticadas principalmente à esquerda do PS.
E depois há outras questões mais subtis. Quando se corta no rendimento social de inserção (rendimento mínimo garantido), é natural que, para manter a criminalidade constante, se tenha de pagar mais polícias, juízes, guardas prisionais, esquadras, tribunais e prisões.
Há coisas nas quais a esquerda tende a alargar a dimensão do estado, noutras tende a diminuir. Dizer que a dimensão desejada do estado, ou o seu poder, são aquilo que separa a direita da esquerda é dizer um disparate.
12 comentários :
Não é nada óbvio para mim que o fascismo puro e duro seja de direita. Se vires o "Political Compass", o Hitler e o Mussolini vêm no topo do autoritarismo, claro, mas na dicotomia esquerda/direita vêm bem ao centro.
Não é nada óbvio para mim, também, que o anarquismo puro e duro seja de esquerda. Há anarquistas de esquerda, sim.
Direita é a Margaret Thatcher.
Dito isto, reconheço que uma presença forte do estado na economia (falamos da economia agora) não é, de todo, a única "esquerda" possível. Mas, queiras ou não, é a isso que se chama o socialismo clássico.
"Se vires o "Political Compass", o Hitler e o Mussolini vêm no topo do autoritarismo, claro, mas na dicotomia esquerda/direita vêm bem ao centro."
Isso é mais um problema do "Political Compass" do que outra coisa qualquer - afinal, se eles definem o eixo esquerda-direita com base na sua atitude face ao liberalismo económico, é natural que a direita anti-liberal não fique graficamente na "direita".
"Direita é a Margaret Thatcher."
Será que a velha gurda do Partido Conservador (estilo Disraeli) concordaria?
Filipe Moura,
Os teu argumento parece limitar-se ao reconhecimento da autoridade do «Political Compass».
Mas os termos esquerda e direita não foram inventados por eles. Esses termos correspondem a uma tradição histórica de identificação ideológica.
E é nesse contexto que um fascista nunca correspondeu ao centro. O PNR é de «extrema direita».
Por outro lado, eu percebo a ideia deles de dividir a esquerda e a direita pelo eixo da protecção dada à propriedade privada. Hoje, na realidade muito recente, parece ser essa a maior distinção, com os liberais de direita a serem uma das correntes mais vocais da direita, ao ponto de mesmo fascistas quererem chamar-se a si próprios liberais (ainda me lembro da tese no Blasfémias segundo a qual o Salazar era muito liberal...).
Mas devo reforçar que há muita esquerda além daquilo a que chamas «socialismo clássico».
Por falar em partidos britânicos, é interessante lembrar-nos:
- qual dos grandes partidos britânicos foi criado por um grupo de deputados que tinha como principal causa a defesa dos limites às importações de cerais?
- qual desses grandes partidos teve a sua origem na luta contra a intervenção dos tribunais nos conflitos laborais?
Mas o Political Compass apesar de tudo reforça uma parte importante da minha tese aqui:
«The assumption that economic deregulation inevitably delivers more social freedom is flawed. The welfare states of, for example, the Nordic region, abolished capital punishment decades ago and are at the forefront of progressive legislation for women, gays and ethnic minorities - not to mention anti-censorship. Such established high-tax social democracies consistently score highest in the widely respected Freedom House annual survey on democratic rank eg Denmark ranks 2, Sweden 3 and Norway 7, while comparatively free markets such as the US, Singapore and China rate 15,74 and 121 respectively (this detailed checklist can be viewed at http://www.worldaudit.org/civillibs.htm).
Despite their higher taxes, the social democracies' degree of social freedoms would presumably be envied by genuine libertarians in more socially conservative countries.
Our point is that a regulated economy and a strong public sector are not necessarily authoritarian, and a deregulated economy with a minimal public sector is not necessarily socially libertarian.
Interestingly, many economic libertarians express to us their support for or indifference towards capital punishment; yet the execution of certain citizens is a far stronger assertion of state power than taxation. The death penalty is practised in all seriously authoritarian states. In Eastern Europe it was abolished with the fall of communism and adoption of democracy. The United States is the only western democracy where capital punishment is still practised.»
Até creio que faz sentido acrescentar isto ao texto.
João Vasco, sim, o PNR é de extrema direita, por várias razões. Mas que dizes do partido do falecido Pim Fortuyt, na Holanda? O Pim Fortuyt era homossexual e não era nada racista - uma das suas frases mais conhecidas era "é claro que não tenho nada contra os negros - ainda esta noite dormi com um". O Pim Fortuyt era de esquerda? De direita? O quê?
Miguel, se a ideia é olhar para o passado e ver como os partidos políticos evoluíram, seguramente o Partido Republicano, nos EUA, quando apareceu, era um partido de esquerda - antiesclavagista. Uma das minhas referências políticas, um dos políticos que mais admiro, foi o primeiro presidente republicano dos EUA.
Devemos pensar nos dias de hoje, nos problemas que hoje se colocam. O problema que hoje se coloca é uma ameaça de avanço sem paralelo do liberalismo económico, e a meu ver a principal razão para distinguir esquerda de direita, nos dias de hoje, é a posição face ao liberalismo económico, como faz o Political Compass. O resto é para "épater le bourgeois", como dizem os franceses.
Obrigado pelos vossos comentários.
JV,
a esquerda não era «estatista» até ao final do século 19. A questão principal nessa época, para a esquerda, era pugnar por uma diferente relação de poder entre capital e trabalho (os «serviços públicos», com a excepção da educação, são uma bandeira que vem de meados do século 20). E portanto nessa época tinhas esquerda anti-estatista (os anarquistas) e uma esquerda institucional que se designava por «radical» (ou liberal!). A solução socialista de estatizar os meios de produção só começa a ser hegemónica de 1917 em diante.
Mas penso que hoje toda a esquerda é «estatista» no sentido que lhe dão os «liberais» actuais. Porque a questão central passou a ser a defesa dos serviços públicos.
«Mas penso que hoje toda a esquerda é «estatista» no sentido que lhe dão os «liberais» actuais. Porque a questão central passou a ser a defesa dos serviços públicos.»
Discordo pelas razões que enumerei no texto:
a) grande parte da direita acredita que os serviços públicos devem ser garantidos pelo estado, mesmo que prestados por privados (cheque ensino, cheque saúde, etc..), mas isso não corresponde necessariamente a um estado menor, como alegam. A experiência histórica (mesmo a nossa com as PPPs) mostra que muitas vezes isso acaba por corresponder a um estado MAIOR (medido em termos do racio entre as despesas e o PIB).
b) os serviços públicos que a esquerda defende têm implicações ao nível de outras despesas do estado. Se existe educação e saúde gratuita, ou alguma forma de combate à pobreza, ou outro tipo de políticas que levem a menores desigualdades, haverá menos criminalidade, com tudo o que isso implica em termos de menores despesas com tribunais, prisões, esquadras, etc..
c) na Europa estamos tão habituados à paz que já nem damos relevo às despesas militares. Mas nos EUA, a mais populosa das democracias ricas, essa questão é extremamente importante - é um terço do orçamento federal. E aí tens a esquerda menos «estatista» a querer menos guerra, menos invasões, menos despesas.
d) creio que com o terrorismo e tudo o mais (a propaganda à volta dele principalmente), não são só os serviços públicos a questão central.
Aliás, uma coisa boa neste blogue é a atenção que dás - bem merecida - às questões dos direitos civis, e aos ataques de que têm sido vítimas no ocidente, no que diz respeito à liberdade de expressão, à defesa da privacidade, aos abusos de poder.
E nessa questão a esquerda parece-me menos «estatista». E é uma questão central.
"Se existe educação e saúde gratuita, ou alguma forma de combate à pobreza, ou outro tipo de políticas que levem a menores desigualdades, haverá menos criminalidade"
Esta afirmação peremptória indica uma confiança na bondade do ser humano que muita gente não tem. Essa confiança não é nem de esquerda nem de direita, mas é ela que essencialmente distingue o outro eixo do Political Compass, os "libertários" dos "autoritários". Os "autoritários" não têm confiança nenhuma na bondade do homem. Essa tua frase, repito, faz sentido numa perspetiva mais "libertária". Mas não é necessariamente de esquerda. Nota: necessariamente.
Posso dar-te vários exemplos de pessoas de direita que querem menos guerra e se preocupam, muito mais que a esquerda clássica, com as liberdades individuais que referes.
Finalmente, o que eu não gosto no teu post não é o conteúdo em si - percebo e concordo em parte com a ideia principal. É mesmo o título. Entre "é" e "mais" acho que faz falta um "necessariamente".
Filipe,
«Esta afirmação peremptória indica uma confiança na bondade do ser humano que muita gente não tem»
O que fundamenta a minha afirmação sobre a relação entre desigualdade, falta de mobilidade social, e criminalidade não são as minhas convicções sobre a bondade do homem - aí partilho com muitos liberais de direita algum cinismo, pois não tenho dúvidas que homem é um animal, com tudo o que isso implica de bom e de mau - mas sim os dados empíricos.
Verifica-se que o aumento das desigualdades sociais (ou diminuição da mobilidade social) tende a corresponder, alguns anos depois, a um aumento da criminalidade, e vice-versa.
«Os "autoritários" não têm confiança nenhuma na bondade do homem. »
err.. e muitos libertários também não.
Muitas vezes justificam as suas ideias libertárias na crença de que ninguém governa para servir mas SEMPRE para SE servir (uma crença da qual até discordo, embora acredite que é uma atitude bastante saudável).
Aliás, se pegas nos liberais de direita, aquilo é tudo um enorme cepticismo face à bondade do homem, o homo economicus é um hino a isso mesmo.
É uma visão alienante no seu extremismo, até.
«Posso dar-te vários exemplos de pessoas de direita que querem menos guerra e se preocupam, muito mais que a esquerda clássica, com as liberdades individuais que referes.»
Eu refiro isso no texto: "existe uma legítima e sincera preocupação com as liberdades individuais por parte de algumas pessoas de direita"
«É mesmo o título. Entre "é" e "mais" acho que faz falta um "necessariamente".»
O "necessariamente" está implícito, a meu ver.
Mais esquerda pode ser mais estado, o mesmo, ou menos.
A equivalência entre mais esquerda e mais estado é a ideia que eu quero criticar no texto, por isso faz sentido que a sua negação seja o seu título.
"O "necessariamente" está implícito, a meu ver."
Não, não está nada implícito. Mas, enfim, concordas que lá "está" (ou então deveria estar) e isso é o mais importante.
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