É comum existirem árvores perto da fronteira entre as propriedades, ao ponto de vários ramos e frutos estarem localizados na área da propriedade adjacente.
No entanto, a pertença de tais ramos e frutos nunca foi legislada. Qualquer que seja a legislação adoptada, alguns agricultores serão prejudicados, e outros serão beneficiados. E, assumindo que o consenso entre todos os agricultores é impossível, o que é natural visto que têm interesses contraditórios, qualquer legislação que seja estabelecida será sempre uma imposição sobre aqueles que não a desejam.
Quer seja estabelecida por um ditador, por um comité central, pelo autor de um estudo, por um rei, por uma assembleia de representantes democraticamente eleitos, ou por um referendo entre todos.
Caso a decisão seja democrática, não creio que se trate de uma forma de «ditadura da maioria» visto que nenhuma alternativa poderia deixar de o ser. Deverá existir uma lei que regulamente a propriedade desses ramos e frutos, e na impossibilidade de consenso, é legítimo que a maioria da população legisle a esse respeito.
O mesmo não pode ser dito a respeito de uma lei que altere a igualdade dos cidadãos perante a lei. Se a assembleia da república da Katralândia acordar que as pessoas de olhos verdes deveriam ser escravas das restantes, trata-se, aí sim, de ditadura da maioria.
Porque é que eu estabeleço esta diferença?
Porque é a democracia que encontra a sua legitimidade na igualdade dos cidadãos perante a lei; e não a igualdade que encontra a sua legitimidade na vontade da maioria.
Assim, se a maioria quiser legislar de forma contrária ao princípio da igualdade, ela está a rejeitar o princípio basilar que legitima o seu poder.
É possível concluír que a maioria da população tem o direito de impôr coercivamente o cumprimento de regras a uma minoria que não as deseja. Mas nem todas as regras. Regras que violem o princípio da igualdade nunca deverão ser legítimas.
Acrescentaria também que não deverão ser legítimas regras que visem proteger o indivíduo maior autónomo e na posse das sua capacidades apenas dele próprio.
E mais haverá a acrescentar.
Quando existe um conflito de interesses, e nenhuma lei que preserve a igualdade perante a lei pode ser neutra, pode ser legítimo que a maioria legisle.
Por exemplo: é legítimo que se respeite e valorize a construção social a que damos o nome de «propriedade», através, por exemplo, da imposição coerciva da proibição do furto. Não se trata de uma «ditadura das maiorias» que oprime aqueles que são particularmente hábeis na «arte» do furto, trata-se de uma forma de regulamentar os conflitos entre indivíduos, de legislar a respeito das pretensões de cada um face a diferentes bens materiais.
Outro exemplo: é legítimo que se imponha a todos (através de impostos) o pagamento das forças de segurança e de justiça que levam à prática, entre outras coisas, a dita proibição do furto. Mesmo que alguns preferissem não contribuír para tal gasto.
Mas os exemplos não acabam por aqui...
É legítimo que se imponha a todos o pagamento de uma rede social mínima de apoio. É legítimo que se imponha a todos o pagamento de uma rede educativa que garanta a todos certas oportunidades. É legítimo que se imponha a todos alguma redistribuição dos rendimentos.
Isto não é ditadura das maiorias.
Não o digo por ser aquilo que acontece em todo o mundo democráticos. Não o digo porque empiricamente verificamos que um muito menor grau de redistribuição apenas foi possível em sistemas ditatoriais (Pinochet é o exemplo canónico disto).
Digo-o porque quem assume que qualquer redistribuição da riqueza constitui um roubo perpetrado pela «ditadura das maiorias», esquece que pelo mesmo critério impedir o roubo seria igualmente coercivo.
2 comentários :
*aplausos*
Muito bem!
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