O sentido que dou ao termo, como já tinha defendido antes, está indicado no esquema acima. Em Portugal, no entanto, é comum auto-designarem-se liberais aqueles que defendem um menor peso do estado na economia e, alegadamente (se bem que em vários casos não seja assim na prática), e uma maior defesa dos direitos individuais. Vou chamar-lhes liberais de direita, conotando a direita com uma maior defesa da propriedade privada face a outros valores que possam estar em oposição.
Aquilo que quero distinguir com este texto é os dois possíveis fundamentos que podem estar subjacentes à defesa desta posição ideológica:
-Argumentos de índole ética. Alega-se que, sendo a liberdade um valor fundamental, ela está em causa quando o estado tem poder sobre a propriedade das pessoas. Assim, independentemente das consequências práticas da tributação e das funções sociais do estado, estas devem ser reduzidas à sua expressão mínima. (Hayek)
-Argumentos de índole utilitarista. Implicitamente assume-se um ponto de vista utilitarista, e um no qual a prosperidade é uma componente central do bem estar. Depois, mostra-se como as organizações sociais onde o estado tem menos peso na economia promovem a prosperidade global. (Friedmann)
Poucos alegam explicitamente este segundo fundamento para a sua posição pessoal. É sempre o primeiro. Mas, na prática, grande parte do discurso liberal de direita é convincente apenas na medida em que passa esta segunda mensagem. Em teoria apela-se à defesa da liberdade, e a prosperidade é uma consequência natural. Na prática, quase todo o discurso é direccionado para mostrar como o liberalismo de direita traria mais prosperidade à sociedade em que fossem implementado.
Neste blogue já denunciei o primeiro fundamento como erróneo. A defesa vigorosa da propriedade privada não só não leva garantidamente à maior liberdade dos membros da comunidade em que ela acontece, como pode em grande medida restringir essa liberdade.
Interessa pois falar sobre o segundo fundamento.
18 comentários :
"Em Portugal, no entanto, é comum auto-designarem-se liberais aqueles que defendem um menor peso do estado na economia e, alegadamente (se bem que em vários casos não seja assim na prática), e uma maior defesa dos direitos individuais. Vou chamar-lhes liberais de direita, conotando a direita com uma maior defesa da propriedade privada face a outros valores que possam estar em oposição."
Penso que é o significado da palavra "liberal" em quase todo o mundo - "liberal" só significa outra coisa nos EUA porque, como não há lá (ou "aí?") "socialismo" a sério e os conservadores (tirando alguns paleos e "agrarians") são a favor do mercado livre em vez de do paternalismo ou da "doutrina social da Igreja", os liberais acabaram por ficar em termos relativos como os maiores defensores do intervencionismo económico.
Miguel:
Creio que estás enganado.
Por exemplo, no Reino Unido, tanto quanto sei, o partido liberal está à esquerda do partido trabalhista.
(Com a terminologia "direita" "esquerda" neste caso refiro-me à protecção que é dada à propriedade privada.)
Na UE o partido liberal está ao centro, e mesmo em termos económicos está ao centro, ao invés de à direita do partido popular, como sugeriria o sentido que é dado ao termo em Portugal.
Há algo mais liberal do que o Partido Repúblicano (conservador) dos EUA? risos
Lucas:
Sim, nos EUA aquilo que os que se chamam liberais por cá defendem é chamado de "fiscal conservatism", e para eles "liberal" é usado como insulto.
O discurso é muito semelhante, mas é usada a palavra "liberal" como cá é usada a palavra "socialista". Lá a palavra "socialist" é usada da mesma forma que cá os auto-intitulados liberais usam a palavra "estalinista".
João Vasco,
"Neste blogue já denunciei o primeiro fundamento como erróneo"
Apenas vi denunciada a sua ignorância total relativamente às condições indispensáveis ao funcionamento do mercado livre, nomeadamente, a existência de concorrência.
Nuno:
Peço desculpa mas esse próprio comentário é que denuncia alguma ignorância.
O mercado livre é uma abstracção económica, na qual, entre outras coisas, existem infinitos agentes produtores de um bem.
Obviamente que não tenho nada contra ou a favor de tal conceito. Ele é uma aproximação da realidade adequada nuns casos, desadequada noutros.
As ideias que pretendi refutar nos textos a que faço referência eram propostas normativas.
Só agora vou criticar descrições da realidade, que os dados empíricos mostram ser errôneas. Nos textos a que me refiro não pretendi sequer fazê-lo.
"O mercado livre é uma abstracção económica, na qual, entre outras coisas, existem infinitos agentes produtores de um bem."
Não.
Num mercado livre existe um número finito de produtores e consumidores que podem entrar e sair consoante o preço lhe seja ou não conveniente. As situações descritas nas fábulas indicadas referem-se a mercados fechados em oligopólios em que o preço seria determinado por cartel e não pelas variações de oferta e procura de um bem.
...situação que normalmente se observa em bens comercializados por empresas públicas privatizadas - energia, telecomunicações, vias de comunicação...
Nuno:
Está enganado quanto ao mercado livre. Num mercado livre o "poder de mercado" de cada produtor é nulo. Se estivessemos perante um número finito de produtores, cada um teria um poder de mercado não nulo.
É verdade que no mercado livre existe entrada e saída de produtores, e é isso que faz com que o lucro de cada um tenda para zero. Não há aqui incompatibilidade nenhuma. Num mundo com infinitos consumidores, ter um produtor para cada 10 consumidores, ou um produtor para cada 20 cria equilíbrios diferentes entre oferta e procura. Assim são relevantes as entradas e saídas de produtores, mesmo que eles sejam sempre infinitos.
Mas tudo isto é irrelevante.
Porque as minhas "fábulas" não pretende "criticar" a abstracção do mercado livre. O mercado livre é uma aproximação que serve para DESCREVER a realidade. Essa aproximação pode ser melhor ou pior adequada.
As minhas fábulas, por outro lado, pretendem criticar, como escrevi neste texto, propostas NORMATIVAS.
Nenhuma delas pretendeu, como explico neste texto, criticar uma proposta DESCRITIVA.
O mercado livre por si, obviamente, não é uma proposta normativa.
Só nos próximos textos que eu vou escrever é que vou criticar algumas "descrições" da realidade. Até agora só critiquei propostas normativas, i.e. dizem respeito a valores.
O Nuno pensou que nesses textos estava a criticar o "mercado livre"?
Creio que não os entendeu.
Mas já agora tento ser mais claro. Aquilo que eu estava a criticar nos textos era a seguinte proposta normativa: «alega-se que, sendo a liberdade um valor fundamental, ela está em causa quando o estado tem poder sobre a propriedade das pessoas. Assim, independentemente das consequências práticas da tributação e das funções sociais do estado; estas devem ser reduzidas à sua expressão mínima.»
Por exemplo, e já que fala sobre oligopólios, em todos os países desenvolvidos existem autoridades para a concorrência que agem coercivamente para impedir oligopólios.
Hayek consideraria isto imoral, uma vez que corresponde a uma violação da liberdade dos produtores de colocarem o preço que entendessem, da forma que entendessem.
Isso faz com que, numa sociedade em que esta moralidade preside, seja possível o cartel.
Que cartel não é mercado livre é bastante óbvio. Mas eu pretendia criticar a proposta normativa, e não obviamente o mercado livre, que nem sequer é chamado para o caso.
Isso é fácil. Onde há ou houve menos propriedade privada e mais propriedade colectiva é onde existe mais pobreza, menos qualidade de vida, menos produtividade e menos desenvolvimento económico. Ainda estão para chegar os exemplos que demonstrem o contrário.
«Isso é fácil. Onde há ou houve menos propriedade privada e mais propriedade colectiva é onde existe mais pobreza, menos qualidade de vida, menos produtividade e menos desenvolvimento económico.»
Não, não é fácil.
Se o nível de protecção dada à propriedade privada tivesse, por hipótese, um ponto óptimo entre o tudo e o nada, então haveria pior qualidade de vida nos extremos.
Os dados empíricos são mais compatíveis com esta hipótese. Ao contrário daquilo que o Nuno diz, em muitas economias onde o peso do estado era quase inexistente havia tanta ou mais pobreza como naquelas em que o estado era quase omnipresente. A este respeito compare-se a Somália com Angola, para se observar como os extremos têm efeitos semelhantes sobre a economia.
Já na Europa e nos EUA os dados tendem a não dar nenhuma razão ao Nuno. Na Europa as economias mais competitivas (as dos países nórdicos) são aquelas em que o estado tem mais peso sobre a economia. Nos EUA os estados mais competivos tendem a ser "azuis".
Mas isto explorarei em detalhe nos próximos textos.
Sobre os males dos extremos outro caso elucidativo é a Rússia, que logo após a queda do comunismo (antes do mefistofélico Putin) passou para um regime de Laisez Faire com Ielsin à cabeça. Se a Rússia estava mal, ficou ainda pior.
A miséria, o crime, a desgraça foi de tal ordem, que os Russos foram apludindo a alternativa que lhes foi apresentada: o dirigismo de Putin.
O problema nisto é pensar a preto e branco: "se o colectivismo totalitarista extremo funcionou mal, o extremo oposto deve ser o que funciona melhor": não, nem por isso.
Continua fácil, João Vasco,
Quer mais estado quem normalmente dele recebe mais do que contribui. Quer menos quem para ele contribui muito e dele pouco recebe. O que distorce a balança é que habitualmente quem para ele menos contribui é quem mais o influencia.
Usar esse argumento para dizer que o estado deveria ser o menor possível é como usar o argumento de que, uma vez existindo tantos acidetes automóveis, viveríamos melhor com o menor número de estradas possível.
Não digo que esse factor não entre na equação, se é que as coisas se passem sempre dessa forma (assume que cada agente é egoísta, por exemplo, mas há eleitores que podem querer mais estado mesmo que acreditem ficar a perder individualmente; ou então assume que os ganhos são meramente económicos, mas alguém que tem a perder economicamente com a redistribuição, pode quere-la por preferir viver numa sociedade com menos criminalidade, etc...), mas parece-me evidente que haveriam mais factores a considerar antes de saltar para as conclusões.
muito bom. gostaria de sugerir que se debruçasse mais sobre a questão da propriedade dos terrenos visto que do ponto de vista legal é arbitrário e do ponto de vista ético é ílicito. Penso até que há razões muito fortes para um liberal e um socialista convergirem nesta matéria.
A questão da propriedade dos terrenos é realmente bastante interessante.
Porque uma coisa é adquirir bens através do trabalho próprio, ou de transacções voluntárias. No entanto, no que diz respeito a um terreno, como é que ele foi "aquirido" pela primeira vez?
Muito dificilmente de outra forma que não pela força.
Se um liberal considera essa forma de obter um bem ilegítima, considerará todas as transacções subsequentes que envolveram esse bem ilegítimas. E por maioria de razão, a pose de terrenos seria, quase sempre, ilegítima.
Num mundo em que não existe coerção e violência, apenas transacções voluntárias, como é que alguém adquiria terra pela primeira vez? A quem? Pediria autorização a todas as pessoas que existem, e ainda a todas as que estivessem por nascer? Limitar-se-ia a dizer "cheguei cá primeiro, e agora ninguém mais pode pôr os pés aqui sem minha autorização"? Com que direito?
No entanto, essa questão cabe na minha primeira série de textos, e não nesta minha próxima que, de qualquer forma, está a ser difícil encontrar tempo para escrever :s . É capaz de demorar mais de uma semana.
exactamente. É menos arbitrária uma nacionalização do que a apropriação que está na base da distribuição actual. A impossibilidade de uma redistribuição justa ou meritória de um bem limitado (até porque constantemente nascem pessoas com e sem terrenos) torna a discussão mais interessante. Por outro lado e isto poderá interessar aos liberais, o estado também tem a sua quota parte de responsabilidade por não permitir o acesso aos terrenos que possui. cá aguardamos.
gostava também de ressalvar que a aquisição de habitação é o que escraviza pessoas a empréstimos durante 50 anos e que entre outras coisas criou a enorme bolha que está na base da actual crise mundial. Isto dá-nos uma dimensão correcta do impacto desta questão.
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