«Aqui vai um texto um pouco maior do que se aconselha neste meio. Quero falar aqui desse assunto tão raro nas colunas de opinião: José Sócrates. Disse Almeida Santos que já o tentaram tramar quatro vezes. E que das quatro vezes falharam. Como as coisas não são todas iguais, como o nem as pessoas nem os factos se dividem entre os que são a favor de Sócrates e os que são contra Sócrates, vale a pena voltar a lembrar do que estamos exactamente a falar.
Fica o meu resumo (e por ser meu, sempre questionável) de cada um dos seis (e não quatro) casos que tomaram muito do nosso tempo (aquele em que podíamos ter estado a discutir a crise e o futuro do país):
O caso da licenciatura. Aqui, a única coisa que interessava saber era se José Sócrates usou o seu poder ou influência política para obter uma licenciatura. Nada do que se soube permite tirar esta conclusão. Não há, por isso, tema.
O caso dos projectos de casas a que deu o seu nome como engenheiro. Das duas uma: ou os projectos eram realmente seus, e tivemos como ministro do ambiente alguém que na sua vida profissional se dedicou a grotescos atentados ao património arquitectónico (e isso é um pouco grave); ou os projectos não eram realmente seus e Sócrates assinou em nome do verdadeiro projectista, e isso é ilegal. A gravidade também depende em nome de quem assinou.
O caso Freeport. A parte da justiça está, ao que parece, encerrada. Manda o rigor que se aceite esse facto. Restam então as dúvidas estritamente políticas: a que se deveu a pressa de, em vésperas de passar o poder para outros, encerrar o licenciamento daquele projecto, tendo em conta todas as dúvidas que subsistiam quer em relação aos efeitos ambientais da obra quer em relação às estranhas alterações que se fizeram aos limites da zona ecológica. Uma coisa é aceitar o encerramento do processo judicial, outra é fingir que é politicamente normal a forma como as coisas foram feitas.
O caso do seu apartamento em Lisboa. Foi avançado pelo jornal "Público". A dúvida, ao que parece, era o preço a que o apartamento foi comprado. Como o jornal não explicitou qual era exactamente a suspeita que recaia sobre Sócrates nem avançou com nenhum dado relevante para que alguma suspeita tivesse sustentação, é um não caso. Nada a dizer a não ser que a notícia foi absurda.
As pressões sobre os jornalistas. Misturaram-se aqui coisas muito diferentes. Desabafos de um primeiro-ministro, processos a jornalistas, telefonemas a directores e uso de publicidade como forma de punir jornais indesejados. Não devemos pôr tudo no mesmo saco. Os jornalistas devem saber viver com as pressões do poder político. Apesar do que dizem algumas virgens com amnésia em relação às suas responsabilidades passadas, muito disto não tem nada de novo.
A questão é saber até que ponto foram usados meios do Estado para silenciar vozes incómodas e se há um padrão de comportamento em José Sócrates que prova não apenas o seu incómodo em relação à descoberta da verdade, mas uma intenção clara e premeditada de diminuir as garantias de liberdade de imprensa. A resposta é para mim evidente: sim, tudo indica que houve essa intenção.
Isto não quer dizer - e basta ler os jornais para o perceber - que esse objectivo tenha sido alcançado. Não foi, como é óbvio. Arrisco-me mesmo a dizer que teve, na maior parte dos casos, o efeito exactamente oposto ao pretendido. Não vivemos nem sem liberdade de expressão nem num processo de berlusconização do país. Quem o disser apenas consegue reduzir a credibilidade das justas queixas sobre relação de José Sócrates com a comunicação social.
O caso PT e TVI. Está a meio. Sem esquecermos as escutas, podemos dizer que Sócrates tem de responder por duas coisas:
Pela colocação de boys pornograficamente pagos em lugares de enorme responsabilidade numa das maiores empresas portuguesas, para, através das golden shares do Estado, ter influência partidária nos negócios da PT. Só quem nos queira tomar por parvos acredita que Rui Pedro Soares chegou onde chegou por mérito profissional. Basta olhar para o seu currículo e para a coincidência de estar várias vezes envolvido em negócios que se cruzam com os interesses políticos de Sócrates - o seu nome volta a aparecer no caso Targuspark/Figo - para perceber o que lá estava a fazer.
Pela mentira. Todas as provas, sem precisarmos de escutas, mostram que Sócrates não disse a verdade ao Parlamento sobre o que sabia e não sabia sobre o assunto.
As escutas, que são parcelares e em alguns casos contraditórias, levantam muitas outras questões, uma delas muito mais grave do que as anteriores: a possibilidade de existir um plano para a utilização de empresas e do Estado no silenciamento de vozes incómodas na comunicação social. Seria de uma gravidade extraordinária. Mas para confirmarmos ou desmentirmos esta suspeita teremos de esperar que muito mais seja conhecido.
A esta sucessão de casos, tem havido duas péssimas reacções:
Primeira: partir do princípio que há uma cabala montada, que envolve mais de metade da comunicação social, e que inventa história mirabolantes que, curiosamente, correspondem todas ao mesmo padrão: falta de rigor profissional, falta de verdade nas declarações que se fazem e dificuldade extrema em viver com um dos mais importantes patrimónios da nossa democracia - a liberdade de imprensa. Este padrão não confirma à priori nenhum facto. Mas muitos dos factos dão-nos este padrão.
Segunda: partir do princípio que todas as suspeitas, desde que sejam sobre José Sócrates, serão verdadeiras. Muita gente já nem pára para ler as notícias e saber da verdade. Se confirma que Sócrates é pouco sério então só pode ser verdade. E qualquer dúvida que se levante sobre qualquer revelação atira o cuidadoso para o campo dos oportunistas e vendidos.
Mais estranho: cada um parece estar obrigado a aplaudir todo aquele que se oponha a José Sócrates e a transformá-lo num freedom fighter. Desculpem, não elevo Mário Crespo, Manuela Moura Guedes ou Felícia Cabrita a heróis libertadores. Nem Sócrates consegue tanto de mim.
A histeria que tomou conta do debate político, dos colunistas e, mais grave, dos próprios jornais. Todos se chegam à frente a ver se ganham a medalha de heroísmo, tentando escrever uma barbaridade maior do que a do vizinho do lado. E do lado oposto estão aqueles que se dispõe a dizer iguais enormidades, a defender o indefensável e a imaginar conspirações delirantes.
No meio desta histeria, que torna o debate político insuportável - é já quase sinal de cedência escrever sobre qualquer outro assunto que não seja José Sócrates -, a falta de rigor e de apego à verdade de que o primeiro-ministro é acusado parece ter tomado conta do país inteiro. Interessa saber se José Sócrates fez o que se diz que ele fez. Mas, se não levarem a mal, a verdade dos factos pode, de vez enquanto, ter voto na matéria.»