domingo, 13 de junho de 2010

Tradições «Académicas»

Não simpatizo com as tradições académicas.

Não devo dizer que lhes seja declaradamente hostil. Na verdade, nunca lhes dei muita importância, nem nunca fiz parte de um movimento anti-praxe. A sua existência não me revolta.

Sei bem que para muitos as praxes não correspondem a qualquer tipo de abusos, que quem as quiser rejeitar pode fazê-lo livremente (e se não as recusa, não por medo de violência mas sim por vontade de ser melhor aceite no grupo, temos pena, é uma decisão livre feita por um adulto), e que para muitos a "praxe" porque passaram foi uma ocasião divertida da qual guardam boas recordações, uma oportunidade de socializar, de conhecer os colegas mais velhos.

Sei que muitos vêem no traje um símbolo esteticamente apelativo, algo solene ao qual podem associar o muito de positivo que aconteceu ao longo do seu curso. Que a queima ou bênção das fitas é um ritual de passagem que evoca a importância do momento em que se deixou de ser um estudante para seguir para vida profissional, e que pode tornar essa transição importante num evento memorável.

E, assumindo que os abusos que já têm ocorrido nas praxes são a excepção e não a regra, podemos dizer que do ponto de vista material as tradições académicas são em si pouco relevantes. A minha razão para não simpatizar com elas é portanto estética, relaciona-se com todo o simbolismo associado.

Na verdade, as tradições «académicas» evocam, pelo seu simbolismo, um enorme espírito anti-académico.



Aquilo que, a meu ver, o espírito académico evoca, projectado para o futuro, é um mundo onde cada um chega onde chega pelo mérito daquilo que alcançou. Não pela antiguidade, não pela permanência, não pela família, nem sequer pelo carisma ou simpatia.
Eu sei que esta não é a realidade do mundo académico. Mas duvido que algum académico negue publicamente que este seria um ideal a alcançar.

O espírito académico também evoca a ideia de que as ideias devem ser avaliadas pelos seus próprios méritos, e nunca pela autoridade de quem as profere. E, no sentido em que recompensa quem ousa desafiar as autoridades com sucesso, é um ideal anti-autoritário, um ideal que enfraquece as hierarquias instituídas, que as subordina à força das ideias e dos argumentos que as suportam.
Novamente trata-se de um ideal: não podemos ser especialistas em tudo, e cada vez que estamos fora da nossa área de especialidade, em que não temos as ferramentas e a capacidade para avaliar as ideias pelos seus méritos, o bom senso obriga-nos a aceitar a heurística da autoridade.

Mas as tradições «académicas» não se limitam a ser indiferentes a este ideal, acabando por ser quase a sua negação. O elitismo económico presente na história do traje caro que o estudante enverga, os postos alcançados por antiguidade - os mais altos dos quais inacessíveis ao estudante que acaba o curso no tempo previsto(!!), o poder da autoridade como legítimo, forte e inquestionável. A história da relação entre estas tradições e o fascismo ou o elitismo pseudo-feudal de antigamente não passam da cereja em cima do bolo que compõe a associação que faço entre estas tradições e tudo aquilo que a Universidade não deve ser.

Quanto às «praxes» divertidas, estou convencido que existem outras formas divertidas de interacção social, de integração dos mais novos, que não passem por essa tradição hierarquizada. Outras «tradições» podem ser criadas, de forma dinâmica, podem ser próprias de cada curso, universidade, adaptadas a cada contexto.
Até mesmo porque no meu curso foi isso mesmo que aconteceu.

Por fim, eu sei que os abusos são uma excepção tão rara que quase poderia ser considerada irrelevante. Pelo menos aqueles de que temos notícia... Mas de alguma forma, eu, que nunca fiz parte de um movimento anti-praxe, sou da opinião que temos isso a agradecer a tais movimentos.
Enquanto eles tiverem força, forem capazes de manifestar a sua presença, evocar em todos os que «praxam», mesmo os potencialmente mais abusadores, o medo da denúncia, o medo de encontrar problemas; enquanto a praxe, enquanto tradição, tiver de se afirmar contra aqueles que se lhe opõem, parece-me natural que os abusos não sejam frequentes. Que qualquer um que queira evitar a «praxe» o possa fazer sem medo de violência.

3 comentários :

Ricardo Alves disse...

Não sei se os casos de abuso da praxe (violências físicas, comportamentos no limite das sevícias sexuais...) são tão poucos assim. Parece-me que há escolas, curiosamente as mais recentes, em que são comuns. E mesmo quando não há esses abusos, há humilhações que são perpetradas. Por isso, defendo que as universidades devem banir as praxes dos campi académicos.

João Vasco disse...

Ricardo:

A minha ressalva foi «Pelo menos aqueles de que temos notícia...».

De qualquer forma, este texto não surge em abstracto, surge de várias conversas e discussões que tenho tido com estudantes universitários que viram esses momentos como momentos agradáveis e até inesquecíveis, e não entendem a minha aversão à tradição académica. Geralmente é-me sempre dito que qualquer um pode recusar a praxe, e que os casos de abuso são um ínfima minoria, mais própria das caracteristicas psicológicas dos abusadores do que da tradição em si.

Quanto a isto, eu diria:

a) Talvez os casos de abuso sejam mais do que aqueles que temos notícia. A tal ressalva.

b) Mais abusos existiriam sem um movimento anti-praxe forte, e realmente é onde tal movimento é mais fraco que se verificam mais abusos.

c) Tudo o que essa actividade tem de positivo pode ser obtido através de outro tipo de actividades, ou mesmo "tradições" que se criem, etc... E assim pode evitar-se toda a carga anti-académica que todas as regrinhas da instituição actual têm.

JDC disse...

Sobre este assunto, vejam, se tiverem oportunidade, a SICA - Semana de Integração ao Caloiro de Ambiente. É a praxe de Eng. do Ambiente da Universidade de Aveiro. Julgo ser, pelo menos do que vejo, o que a praxe deve verdadeiramente ser: brincadeiras, convívio e integração.