sexta-feira, 30 de junho de 2006

Debate: «Direitos LGBT, que objectivos além do casamento?»

Data: 30/06/2006 (19 horas-21 horas)
Local: Livraria Almedina (Átrium Saldanha, Lisboa)
Entrada: Livre

Participantes:
António Serzedelo - Opus Gay
Sérgio Condeço - Movimento Liberal Social
Miguel Duarte - Moderador

quinta-feira, 29 de junho de 2006

Até nunca?

  • «O referendo à despenalização do aborto será repetido em Janeiro. O Presidente está aberto a dar seguimento ao processo referendário, se este lhe chegar em condições normais da Assembleia. E o PS mantém a intenção de avançar em Setembro.» (Público)

E o referendo ao «Tratado constitucional europeu»? Não interessa? É para esquecer? Ficou adiado até nunca?

quarta-feira, 28 de junho de 2006

Vital Moreira: «A separação inacabada»

«A discussão sobre a presença dos bispos católicos no protocolo oficial do Estado mostrou tanto o atraso e as dificuldades na realização do princípio da separação entre o Estados e as igrejas como a continuidade, no campo da direita política, de uma posição de resistência à realização plena da laicidade do Estado e ao fim dos privilégios oficiais da Igreja Católica. A Constituição de 1976 restaurou o princípio da separação, mas na realidade dos factos a imiscuição da religião no Estado persiste em vários aspectos.
(...)
Por definição, o protocolo do Estado tem que ver com o Estado. Havendo separação entre Estado e igrejas, a presença de representantes destas na esfera daquele implica uma óbvia violação do referido princípio. A que se deve acrescentar, aliás, uma subversão da igualdade de direitos das diferentes igrejas, porquanto só a Igreja Católica é beneficiária desse privilégio.
(...)
###
Por mais que preste homenagem verbal à separação entre o poder secular e a esfera religiosa, a Igreja de Roma não consegue cortar definitivamente com a tradição cosntantiniana de se valer do braço do Estado em proveito próprio. Porém, separação significa separação. Nem o Estado se pode imiscuir nas igrejas ou tomar parte na sua vida e na sua liturgia, nem as igrejas se devem intrometer no Estado ou participar nas manifestações do poder político. Nenhuma habilidade doutrinária ou legal pode contornar a radical incompatibilidade da mistura do Estado e das igrejas com o princípio da separação. Nem se invoque a "tradição" ou o "carácter maioritariamente católico da população portuguesa", simplesmente porque nem uma nem outra coisa são relevantes para a questão. Por um lado, a tradição não pode valer contra norma expressa da Constituição; e, de resto, se a tradição valesse alguma coisa nesta matéria, então ainda hoje Portugal teria uma religião oficial. Por outro lado, o argumento da maioria religiosa, se fosse aqui relevante, deveria funcionar ao contrário: se alguém precisava de ajuda seriam as confissões minoritárias e não a religião hegemónica, a qual, por o ser, não deveria necessitar do Estado para nada. A separação entre o Estado e as igrejas vale por si mesma, como condição da universalidade e da neutralidade religiosa do Estado e especialmente como pressuposto essencial da igualdade dos cidadãos perante o Estado, independentemente da sua posição religiosa
(Público, 27/6/2006)

terça-feira, 27 de junho de 2006

Um passo importante

O Hamas finalmente aceitou assinar o documento dos prisioneiros depois de constantes pressões por parte do presidente Abbas, e da ameaça deste em submeter o texto a referendo, o que poderia colocar em causa a representatividade política do Hamas em caso de sua aprovação em seu contra (ler post anterior). Um risco que os homens do Hamas parecem ter preferido não correr. Na prática esta assinatura corresponderia finalmente ao reconhecimento por parte do Hamas do Estado de Israel, ainda que de forma indirecta. A única organização importante a ficar de fora do acordo seria então a Jihad Islâmica.

No entanto parte central do acordo, que trata do tal reconhecimento implícito do direito de Israel a existir, parece à primeira vista em perigo perante as declarações dos dirigentes do Hamas ao esclarecer a leitura que fazem do conteúdo do documento... Ainda assim Israel deve demonstrar sabedoria suficiente para entender as sutilezas políticas da questão como espaço verbal necessário para a evolução interna do discurso do Hamas. Seria demasiado mal para todos que Israel se deixasse cair na armadilha radical criada pelo sequestro do soldado israelita Shalit por militantes palestinianos, e desperdiçasse assim esta oportunidade de dar seguimento conjunto ao que parece já ter sido alcançado depois de uma primeira fase de passos unilaterais que, apesar de tudo, deram importantes frutos. Demasiado importantes para serem jogados fora.

segunda-feira, 26 de junho de 2006

A fragilidade da democracia

A desproporção e a confusão reinante na política norte-americana contra o terrorismo desde o 11-S será no futuro descrito pelos historiadores como um reflexo do grau de poder vertiginoso que os Estados Unidos materializou no ínicio do século XXI, e outro exemplo de como o excesso de poder faz esquecer o bom senso. Um ataque perpretado por 19 terroristas financiados pela Al-Quaeda, e que provocou a morte de, aproximadamente, 3000 pessoas, levou a super-potência mundial a realizar duas invasões militares, uma das quais claramente à margem do direito internacional e absolutamente irresponsável na sua previsão; a afrouxar a protecção dos direitos civis dos seus próprios cidadãos; a utilizar cadeias secretas espalhadas por países mais ou menos duvidosos para os seus interrogatórios sem lei; a ignorar todas as convenções internacionais e o seu próprio código legal com Guantanamo; a realizar escutas telefônicas de forma massiva sem autorização judicial; e agora sabemos que também a investigar as contas e operações financeiras de meio planeta.
###O caso da compra de informação financeira é apenas o exemplo mais recente de toda uma escalada de acções exacerbadas da América perante a falsificação parcial da sua omnipotência, não sendo nem de perto nem de longe a mais grave entre elas. O que é curioso no entanto é a resposta de Bush aos diários que publicaram a notícia, acusando-os uma vez mais de ajudar o inimigo, etc, e afirmando que: Estamos em guerra com um punhado de pessoas que querem fazer dano aos Estados Unidos de América e o que estávamos a fazer era o correcto. É o próprio Bush que admite que a sua guerra é contra "um punhado de pessoas", ao mesmo tempo que identifica o tempo das acções com o passado, o que indica em parte o já pressentido recuo do seu governo (vejam-se as declarações recentes sobre Guantanamo, e mesmo as recentes contextualizações da invasão de Iraque) perante uma política desastrosa para o combate ao terrorismo (e para a popularidade interna de Bush...), e desastrosa na medida em que precisamente escapa, em vários aspectos de forma contra-producente, a todos os limites da proporcionalidade. É acima de tudo desagradável verificarmos o tempo que se tardou em começar a reverter este processo, a forma como em um país com a tradição de liberdade dos Estados Unidos, não só a oposição mas os próprios media demoraram em reagir criticamente perante a degradação do bom senso e do espírito democrático inaugurado por esta administração no rescaldo dos ataques às Twin Towers.

A conclusão de tudo isso é a fragilidade do Estado de Direito. A forma como as democracias, por mais maduras que sejam, estão sujeitas a, perante crises ou até mesmo apenas episódios, cair na sua própria negação. São vários, e de diferentes partes do espectro ideológico, os que sacralizando o voto das massas como único pilar de avaliação moral dos tempos entendem que este, sendo o valor supremo, obriga a todos a curvarem-se perante as decisões populares de alguns países em optarem pela barbárie. Transformam o bom senso em ingenuidade, e os instintos mais básicos e irresponsáveis em realismo. Neste lugar mau onde os fundamentalistas do Hamas se encontram de alguma forma com Bush, que os cristãos norte-americanos se abraçam sem o saberem com os muçulmanos árabes radicais, muitos insistem em falar ainda de legitimidade, e muitas vezes da mesma legitimidade. A democracia é muito mais que o voto, e por isso mesmo muito mais frágil e exigente. Pela negativa quando definimos a democracia apenas como isso, o voto, transformamos a civilização e a dignidade humana em contingências.

O futebol é o haxixe do povo

O futebol é das poucas actividades em que se pode fazer um herói de quem dá cabeçadas maldosas no adversário, exagera ou até simula faltas, ou recusa-se a dar a bola ao oponente. Geralmente, assume-se que os valores éticos são universais. No futebol, considera-se que são relativos ao comportamento do adversário. Em vez de ser uma escola de carácter, o futebol é o seu contrário, sem que isso impeça os media de glorificarem os jogadores, os publicitários de lhes pagarem anúncios, a Carris de apoiar a selecção da FPF, e os políticos de lhes darem importância.
Depois do jogo de ontem, nenhum jornal criticará a equipa de Scolari, dita «de todos nós», comentador algum deixará de desculpar as faltas e os cartões dos portugueses, e todas as bandeiras permanecerão nas janelas e varandas. Em Portugal, o défice de crítica ao futebol é quase pior do que o défice de crítica à religião.

domingo, 25 de junho de 2006

Nuno Melo tem razão

No debate de sexta-feira no Parlamento, Nuno Melo teve uma ideia brilhante:
Eu acho que o deputado conservador tem toda a razão. Por mim, apoio totalmente esta sugestão. Também concordei quando este jovem tribuno atirou a seguinte farpa:
Aliás, lei alguma impede que se avance neste sentido. A actual Concordata não obriga a que haja sacerdotes católicos equiparados a oficiais das forças armadas, ao contrário do que acontecia com a anterior. Nuno Melo tem toda a razão em reclamar o fim desta situação, que até deve ser inconstitucional.
Mais um pouco e inscrevo-me no CDS.

sexta-feira, 23 de junho de 2006

Revista de blogues (23/6/2006)

  1. «Que raio de presidente» no Arrastão: «Que raio de Presidente começa por ameaçar de demissão um primeiro-ministro pela voz da sua mulher? (...) Que raio de Presidente acusa um primeiro-ministro de distribuir armas e de preparar um golpe de Estado com base numa reportagem de televisão? (...) Que raio de Presidente se julga no direito de dizer que não aceita os resultados de um congresso de um partido de que não faz parte? (...) Que raio de Presidente faz tudo isto no meio de uma quase guerra civil e com tropas estrangeiras no seu território?»
  2. «Por uma política do consumo» no Fuga para a vitória: «Interpretar os efeitos da globalização económica a partir de uma relação linear oferta/procura, é fazer simples uma realidade cada vez mais complexa. (...) considero, como já referi noutras alturas, que existe uma outra relação que organiza qualquer sistema económico nas suas diversas escalas: produção/consumo. (...) Sobreposta à decisão de produzir um dado produto em condições claras de exploração, manifesta-se a decisão de poder consumir (ou não) esse mesmo produto.»
  3. «Não compreendo a atitude do PS em relação ao esclarecimento dos alegados voos da CIA» no Canhoto: «O contributo do relator do Parlamento Europeu sobre as alegadas operações ilegais da CIA na Europa inclui uma lista detalhada de aviões, com voos, origens e destinos e datas, que carece de ser explicada. (...) Ficaria muito mais tranquilo se soubesse que as autoridades portuguesas de viva voz repudiam que qualquer operação ilegal da CIA nesse âmbito, envolvendo aqueles ou outros aviões, alguma vez tenha ocorrido em território português.»

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Ratzinger foi a Auschwitz

Consegui finalmente ler o discurso de Joseph Ratzinger em Auschwitz. Seguem os destaques. Como não tenho tempo para comentá-los, intercalei-os com excertos das respostas escritas pelo historiador português Rui Tavares e pelo filósofo francês Michel Onfray. Assim, ficamos com um diálogo interessante...
  • «O Papa João Paulo II veio aqui como um filho do povo polaco. Hoje eu vim aqui como um filho do povo alemão, e precisamente por isto devo e posso dizer como ele: não podia deixar de vir aqui. (...) Era e é um dever (...) estar aqui como sucessor de João Paulo II e como filho do povo alemão, filho daquele povo sobre o qual um grupo de criminosos alcançou o poder com promessas falsas, em nome de perspectivas de grandeza, de recuperação da honra da nação e da sua relevância, com previsões de bem-estar e também com a força do terror e da intimidação, e assim o nosso povo pôde ser usado e abusado como instrumento da sua vontade de destruição e de domínio.» (Joseph Ratzinger)
  • «É uma explicação muitíssimo insatisfatória, bem típica da geração do imediato pós-guerra na Alemanha e na Áustria. Caso a ouvíssemos de outra boca, é bem provável que desse origem a acusações de revisionismo e de ocultação de responsabilidades. O estado nazi foi um “bando de criminosos” e os alemães da época as suas vítimas? Seja, mas vítimas que sobreviveram obedecendo.» (Rui Tavares)
  • «Certes, on dira que le jeune garçon n’a pas choisi, comme des millions de gens à l’époque. Comme Eichmann, de fait, il s’est contenté d’obéir, de ne pas se rebeller, d’accepter, de consentir, de verser son obole au parti nazi. Comme Eichmann, il n’a pas tué de ses propres mains. Comme Eichmann il a prétendu qu’il n’avait pas le choix.» (Michel Onfray)

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  • «Quantas perguntas surgem neste lugar! Sobressai sempre de novo a pergunta: Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele silenciou? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal?» (Joseph Ratzinger)
  • «Eis uma questão muito perturbante, desde logo para a doutrina de um Deus omnipresente e omnisciente. Um agnóstico poderia responder que Deus estava exactamente onde se encontra hoje em dia — e não é no Darfur a impedir a matança. Vinda de um papa, esta pergunta aproxima-se perigosamente de considerar Deus como uma ficção conveniente.» (Rui Tavares)
  • «No fundo, aqueles criminosos violentos, com a aniquilação deste povo, pretendiam matar aquele Deus que chamou Abraão, que falando no Sinai estabeleceu os critérios orientadores da humanidade que permanecem válidos para sempre.» (Joseph Ratzinger)
  • «Em vez de reescrever a história dos nazis, fazendo-os passar por movimento contra Deus (quando estes, pelo contrário, se afirmavam defensores do cristianismo contra o materialismo judeu-bolchevista), poderia dizer-nos algo sobre onde estava a sua católica Baviera quando nela cresceu o partido Nazi e por que razão Hitler morreu católico uma vez que ninguém no Vaticano se lembrou de o excomungar.» (Rui Tavares)
  • «Rappelons que Pie XII a signé un concordat avec le nazisme; que le Vatican n’a jamais mis Mein Kampf à l’index, au contraire de Montaigne, Descartes, Sartre, Bergson et mille autres; qu’aucun nazi n’a été excommunié à cause de son appartenance à une idéologie criminelle - au contraire des communistes qui le furent, eux, en bloc; que le Vatican a permis, avec ses passeports diplomatiques et sa filière d’évasion via les monastères allemands, suisses et italiens, d’exfiltrer des criminels de guerre ainsi soustraits à la justice; que Hitler n’était pas païen, mais déiste sûrement pas antichrétien; que son livre fait l’éloge de Jésus chassant les marchands du temple - juifs...; qu’il célèbre la grandeur de la machine impériale chrétienne - donc du Vatican; que les ceinturons de ses militaires arboraient «Dieu avec nous» - slogan assez peu athée...; qu’au contraire de l’étoile jaune, du triangle violet ou rose qui stigmatisent juifs, témoins de Jéhovah et homosexuels, aucun signe n’a été retenu contre les chrétiens qui n’ont jamais été poursuivis en tant que tels...» (Michel Onfray)

terça-feira, 20 de junho de 2006

Paulo Portas, uns anos antes de ser ministro do Mar

Soube deste video pelo Oeste Bravio, onde escreve o Filipe, também autor deste blogue.
Não resisto a espalhá-lo por todo o lado, incluíndo aqui.
Deliciem-se:



Tem piada adicional lembrarmo-nos que o primeiro discurso de Paulo Portas enquanto ministro (na sequencia da gafe da sua cara de surpresa) foi a explicar a importância de ser ministro do mar, pelo papel que o mar tem para a nossa «nação», quer por corresponder a um território costeiro, quer pelo papel que o mar teve na nossa história, etc...

Um discurso comovente, como costumavam sempre ser...

domingo, 18 de junho de 2006

Nacionalismo e Religião

A propósito do discurso de doutoramento honoris-causa do cardeal arcebispo de Madrid, Antonio María Rouco Varela, dado pela católica Universidade San Pablo CEU, vi mais uma vez a tendência recorrente do catolicismo em associar-se com os pensamentos nacionalistas para sua auto-defesa. A bem da verdade se trata de uma simbiose, pois o contrário, que os nacionalismos utilizem a religião e, em particular, o catolicismo, na construção dos seus discursos também é farto conhecido. Os exemplos mais óbvios, mesmo restringindo-nos somente aos mais recentes e especificamente católicos, são inúmeros e para todos os gostos: Timor, Polônia, Irlanda, etc. Mesmo em países onde a religião não é "razão de balcanização" a Igreja Católica termina colocando o pé e, às vezes, mais que isso. Neste último grupo Espanha é um caso paradigmático.
###No tal discurso de Rouco Varela sobre la cuestión ética ante el futuro del Estado democrático de Derecho, ele terá dito, a propósito de Espanha mas não só, entre outras coisas que: el destino de una España unida humana, espiritual y socialmente depende de saber volver a sus raíces cristianas; el derecho a la vida, a la libertad religiosa y de conciencia y el derecho al matrimonio y a la familia se encuentran en profunda crisis; ha reclamado la reconstrucción del idálogo "entre los dros grandes protagonistas que son el pensamiento laico y el pensamiento cristiano" con el único límite del "justo orden público" porque, dice el Cardenal, "Si se excluye este diálogo social y es el hombre, sin Dios, quien dispone lo que es bueno y malo puede acabar aniquilando a muchas personas" tal y como sucedió "con el Tercer Right o en la Unión Soviética". É preciso dizer que todo o espetáculo conservador foi montado conscientemente pela própria instituição que outorgava o prêmio, e desde o seu próprio presidente, um tal Alfonso Coronel (o nome diz tudo, que me perdoem os coronéis), que defendeu a entrega do prêmio pela luta do cardeal pelos direitos da mulher, da família e da liberdade...: por defender a la personas, por defender a la mujer y hombre con sus identificaciones distintas; que la mujer no se convierta en un hombre y que nadie le ponga un burca; la actuación de Don Antonio para decir que una España y una Europa que reniegan de sus raíces están enterrando lo mejor de sí mismas e incluso puede ser que se estén enterrando ella misma. Nada de novo no panorama árido do pensamento cristão de cariz arcaico-conservador, mas que diz muito sobre a Igreja Católica espanhola actual, e também sobre a europeia e mundial, pois estas frases são fotocópias radicalizadas, ou nem tanto, das que o próprio Papa e o Vaticano realizam em seus discursos a propósito da Europa, do laicismo, da entrada da Turquia, etc.

O catolicismo sempre soube que a sua fonte era a ignorância, e a cegueira identitária dos povos, que a sua mentira era transmitida de geração em geração no mesmo pacote dos mitos nacionais e das tradições conservadoras. Desde Constantino é assim. Por isso mesmo termina por ser natural a forma ambígua com que a Igreja Católica trata outros nacionalismos opostos locais, como é melhor exemplo o do país basco. Não há discussão sobre o problema basco sem padres bascos no meio, e os terroristas da ETA nunca mataram nenhum monge... É que o pacote é o mesmo! No entanto se a cultura, a ciência, o racionalismo em geral, foram e são capazes de desmontar as mentiras religiosas, ainda não demonstraram a mesma capacidade com relação aos mitos nacionais. Provavelmente porque os nacionalistas souberam sempre muito melhor lidar com o seu status convencional que os místicos. Sempre lhes sobrará aos nacionalistas o último reduto, perfeitamente justo, de lutar pelos direitos de uma comunidade e contra a sua opressão (até mesmo quando essas comunidades são tão ricas como podem ser a catalã ou a basca). E a verdade é que até mesmo os mais eludidados intelectuais sempre são sensíveis ao poder dos discursos defensores de algo, tão convencional por outra parte, como a língua. O poder do pacote essencial de mentiras com que nos brindam na infância, é inevitável admitir-lo, é quase infinito.

Graças ao poder de resistência da mentira nacionalista é provável que vejamos as mentiras religiosas a recuperarem as suas forças mesmo nos lugares mais inesperados, pois a mentira é como dizem ser a droga: "começa-se sempre pelas mais leves e depois termina-se agarrado ao cavalo". Por enquanto talvez só na Venezuela e no Irão vemos, agora mesmo, um chefe de Estado (nacionalista) a fazer discursos-rezas com as mãos juntas e olhos fechados, mas se nos Estados Unidos já não andamos longe, mais cedo do que pensamos terminaremos por ver coisas parecidas em França... Talvez seja apenas eu a exagerar a importância do tal fatal pacote, mas será mesmo?

sexta-feira, 16 de junho de 2006

Revista de blogues (16/6/2006)

  1. «Curiosidades da evolução do rendimento auferido pelos 0,1% mais ricos em 5 países», no Véu da Ignorância: «os super-ricos franceses e japoneses devem estar cheios de inveja dos canadianos, ingleses e, sobretudo, americanos: o modo de funcionamento do 'seu' capitalismo impede fenómenos de espantoso e rápido enriquecimento, que permitem no primeiro grupo de países o (r)estabelecimento de hiper-poderosas oligarquias económicas nacionais que se julgava serem apenas do outro tempo».
  2. «Sindicatos = Desemprego?», no Véu da Ignorância: «Uma das asserções que vem várias vezes a público é que os sindicatos criam desemprego, em particular desemprego de longa duração (...) Infelizmente, é raro ver estas asserções confrontadas com o que sabemos das realidades económicas nacionais. (...) Como é que, ao contrário do que nos dizem, os países com mais baixos índices de sindicalização têm níveis de desemprego mais elevado?»
  3. «Já nem a Holanda é o que era?», no Aspirina B: «também os holandeses têm a sua "bible belt"; áreas pejadas de gente que se agarra ao Santo Livro em busca de instruções detalhadas para cada aspecto da sua vida quotidiana. Uma região sobretudo rural, onde até poderemos topar, segundo este meu amigo, sinais no meio dos campos relembrando aos passantes que por ali é proibido praguejar. Proibido; isso mesmo».

Timor: a culpa não será do MFA?

Ao contrário do que acontece inevitavelmente quando há uma revolta da guarda pretoriana num país africano onde as elites falem português, na actual crise timorense ainda nenhum dos tribunos da direita se lembrou de procurar a raiz dos problemas nas acções longínquas do MFA. Devo dizer que este estado de coisas me deixa atónito. Normalmente, já se teriam escrito quilos de papel de jornal e megabytes electrónicos a culpar o MFA por mais esta crise, já se teria aproveitado para decretar pela milionésima vez que a descolonização foi um «erro criminoso», e renhonhó, e renhonhó...
Foi portanto com grande alvoroço que li os primeiros parágrafos do artigo de opinião de Maria José Nogueira Pinto no Diário de Notícias de hoje: a conversa ressabiada do costume sobre a descolonização, a bondade «paternalista» do colonialismo português, «Lisboa tinha todas as culpas no cartório» timorense, etc. Mas, quando esperava que ela concluísse que os culpados pela revolta de Reinado foram Salgueiro Maia e Melo Antunes, eis que se percebe que não o pode fazer: o CDS esteve envolvido no processo independentista de 1999, logo não se pode colocar «de fora» (em rigor, também não o pode fazer relativamente ao que se passou em 1975, mas por aquelas bandas o rigor cede à emoção...). Mesmo assim, lá vem no fim a lembrança de que devemos sentir «complexos de culpa» pelo «papel vergonhoso dos (ir)responsáveis de há 30 anos». E vem a conclusão, incrível, de que devemos deixar cair Alkatiri porque os australianos não gostam dele. Segundo a senhora, «somos "ocidentais"», logo devemos seguir sempre atrás da potência anglo-saxónica mais próxima.
(O identitarismo «civilizacionista» dá nisto...)

quinta-feira, 15 de junho de 2006

Transparência e transmissões

Na cimeira da UE desta semana, estará em discussão o futuro da «Constituição europeia», e também a sugestão seguinte da actual presidência da UE (a Áustria):
  • «Na lógica da aproximação da UE aos cidadãos, Viena sugere que as sessões legislativas do Conselho de Ministros europeu sejam filmadas e as imagens transmitidas aos jornalistas e inseridas na página Web da UE. O Reino Unido opõe-se terminantemente, apesar de ser o maior crítico da alegada "opacidade" da UE. Portugal segue o mesmo caminho: "se for tudo aberto ao público, as verdadeiras discussões passam a ser desenvolvidas na véspera [das reuniões} ou em privado", defende o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Diogo Freitas do Amaral.» (Jornal Público, 15/6/2006, página 2.)
É lamentável a posição assumida por Freitas do Amaral. Não é por muito do que se passa na Assembleia da República ser decidido nos corredores que os debates do plenário perdem interesse, ou que deixa de se justificar a transmissão destes num canal de televisão. Seria desejável que as reuniões do verdadeiro parlamento da União Europeia (o Conselho de Ministros) fossem igualmente transmitidas por televisão, mesmo que esse facto condicionasse os representantes nacionais que lá se encontram. Afinal, é nos Conselhos de Ministros europeus que se tomam as decisões mais importantes sobre o destino dos portugueses.

Da esquerda e da direita blasfémica

O Blasfémias anda a pensar sobre a direita numa série de recentes posts do Rui A. e do CAA. (1, 2, 3, 4). O primeiro desta série é inspirador não pelo valor do post em si, mas pelo seu cáracter sintomático primeiro do diagnóstico errado que a direita faz tantas vezes sobre a sua condição histórica, e segundo pela defesa cocha das maravilhas do liberalismo absoluto. Se pode resumir o que ali se diz nos seguintes pontos:
  • Historicamente a direita foi reduzida, e em geral aceitou ser reduzida, pelo discurso de esquerda a uma força de tirania e opressão dos mais fracos.

  • A corrente de direita que primeiro buscou sair desta redução foi a da democracia cristã europeia, incorporando no seu discurso parte do discurso socialista de esquerda.

  • As formas de política social de Estado circuladas pela esquerda (e por parte da direita conservadora) são, sempre e intrinsecamente, ineficientes e contra-producentes, gerando mais pobreza que aquela que pretendiam reduzir ou acabar.

  • O liberalismo econômico é a forma mais justa e eficiente de distribuição de riqueza e justiça social.

  • O liberalismo econômico é, portanto, o melhor caminho para a direita sair da redução realizada sobre ela pela esquerda.
###Os dois primeiros pontos pertencem ao que poderíamos chamar o pensamento histórico, enquanto os pontos seguintes pretendem ser uma defesa das qualidades do liberalismo econômico tal qual. Se pensamos mais detentivamente sobre a questão histórica percebemos que se escapam ao autor muitas coisas importantes. Primeiro, o discurso da esquerda tem dois momentos fundamentais da sua construção, o iluminista e posteriormente o socialista. Com o iluminismo o discurso de esquerda surge precisamente para organizar ideologicamente a luta contra a opressão e a tirania de facto, e não se realizou aqui redução nenhuma. Foi a direita, sempre e quando não se afastou dos valores autoritários, que se reduziu a si mesma, e não apenas em termos de discurso, à tirania. Aliás grande parte da legitimação ideológica da direita como discurso possível, e não apenas como força autoritária, é possibilitado pela definição, mais ou menos rigorosa, de um discurso de esquerda ao qual criticar. No momento socialista a esquerda reformula ou aperfeiçoa o seu discurso como resposta ao pensamento econômico que conceituava o sistema capitalista em nascimento. Se era natural que a esquerda, coerente com o seu pensamento original de justiça social e combate à opressão, pensasse as desigualdades ainda presentes no sistema capitalista, terá cometido o erro na sua forma mais radical de identificar todas as desigualdades, em geral endêmicas às sociedades humanas, como fruto exclusivo do sistema capitalista. A social-democracia e o socialismo europeu moderado surgem precisamente em grande parte como correcção a estes erros cometidos pelo discurso socialista da esquerda radical. Hoje em dia quase todos os discursos da esquerda ocidental incorporam, de forma mais ou menos completa e coerente, estes elementos de correcção inseridos pela social democracia.

A direita liberal que, com maior ou menor sucesso, se desvinculou dos valores conservadores autoritários, e que já estava presente no pensamento econômico dos primeiros pensadores não socialistas do capitalismo, afirma a sua total confiança nas benesses do capitalismo. Pelo menos na sua forma mais radical defende que o mercado distribui naturalmente a riqueza e executa a justiça social de forma espontânea, graças às suas regras internas de competição. O pensamento de direita do laissez faire tendo parte de razão, na sua forma absoluta ganha contornos de pensamento mítico, e termina por manter traços do autoritarismo ideológico passado, ao negar o direito de crítica e correcção do mercado por parte das maiorias sociais ao avaliar o seu desempenho. Por outro lado dizer que os Estados sociais actuais são totalmente falhados, e geraram mais pobreza que a que pretendiam corregir, é absurdo e falso. A maior parte dos Estados sociais europeus geraram mais bem estar geral do que nunca se sonhou em nenhum momento da história mundial, e esta é uma percepção generalizada das sociedades destes Estados. Que situações demográficas e de economia mundial criem actualmente conjunturas econômicas que obriguem estes Estados a repensar em parte as suas regras e revisar a sua dimensão em algumas áreas, não anula que, para a maior parte dos cidadãos destes Estados, a ideologia que os levou onde estão continue a ser a que, juntamente com o bom senso, serve de base para o modelo social desejado.

O Estado não é em si mesmo bom, e pela sua natureza não participa em geral de um sistema que o obrigue estructuralmente de forma eficiente a maximizar o seu rendimento. A esquerda na sua maior parte já reconhece esta situação, mas reconhece também que é o Estado o único agente que de forma sistemática e democrática pode definir uma política de justiça social que para a esquerda é essencial. A direita não conseguirá reconquistar status moral duradouro por via do marketing liberal, neste aspecto é seguro que terá muito menos sucesso que a tão criticada, por ela própria, corrente da democracia cristã. Para provar de forma credível estar realmente preocupada com a justiça social, a direita tem que necessáriamente incorporar no seu discurso instrumentos para a levar a cabo, e não outorgar a um mercado impessoal a sua responsabilidade. Quando o faça provavelmente se descubrirá social-democrata, mas isso seguramente é motivo suficiente para que os indefectíveis do liberalismo econômico estejam agora a dizer-me "então o melhor é não fazer".

quarta-feira, 14 de junho de 2006

Os fins não justificam os meios

No dia 2 de Junho, a polícia inglesa entrou a meio da noite numa casa de Londres e disparou uma bala contra o peito de um desgraçado de cuja ligação ao terrorismo suspeitava. Suspeitava erradamente, como se verificou rapidamente.
No entanto, para uma polícia como a inglesa, com pergaminhos de brutalidade e fabricação de provas contra terroristas de religião diferente, o baleamento e a agressão dos dois rapazes de Forest Gate é um progresso. Ainda o ano passado haviam abatido a tiro um electricista brasileiro deitado no chão e que tivera o azar de vestir uma camisola grossa.
O combate ao terrorismo não justifica que se sacrifique o respeito pelos direitos humanos. As próximas gerações espantar-se-ão com a indiferença com que foi encarado pelas democracias o campo de Guantánamo e o retrocesso que representou, e chocar-se-ão com o sr. Tony Blair que não quer que a polícia esteja «sob inibição alguma» quando «vai atrás de pessoas envolvidas em terrorismo». «Polícia desinibida» é polícia com autorização para disparar, senhor Blair...

Revista de blogues (14/6/2006)

  1. «Os EUA e a democracia» no Ponte Europa: «Três prisioneiros de Guantánamo suicidaram-se (ou suicidaram-nos). A sinistra prisão, mantida à margem do direito internacional, sem respeito pelos mais elementares direitos humanos, converteu esse inferno num símbolo de horror e vergonha da civilização. Os suicídios não atingem apenas os EUA mas todas as democracias cuja superioridade moral devia ser exemplo para os povos submetidos ao fascismo islâmico.»
  2. «Uma decisão discricionária» no Canhoto: «Não se definindo em parte alguma o que é isso de “ligação efectiva à comunidade nacional”, ficam as autoridades administrativas e judiciais com um poder discricionário de recusa dos pedidos de naturalização. Ora, como se sabe, a discricionariedade no exercício do poder é o contrário de estado de direito e inimiga mortal da liberdade.»
  3. «O extremo a fingir que está no meio» no Arrastão: «Há quem sinta necessidade de dizer a Mário Machado que ele não está sozinho. Que há deputados como ele. Que isto, no fundo, é tudo igual. Gandhi e Hitler, todos a mesma corja.»

terça-feira, 13 de junho de 2006

Danny Rubinstein - Haaretz

(...) It is a known fact that there is no military solution to the overall Palestinian-Israeli conflict. But now it is becoming increasingly clear that there is no military solution for putting an end to the Qassam rocket attacks. (...) Since Mahmoud Abbas was elected Palestinian Authority chairman, a year and a half ago, barely a day has gone by during which he has not called for negotiations. (...) On the agenda now stands the so-called prisoners' document, which has met only with rejection and derogatory responses from the Prime Minister Ehud Olmert and his spokesmen. (...) The Palestinians' demands are tough, obviously. It would have been a lot simpler if they accepted ours: for example, that greater Jerusalem in its entirety - with Ma'aleh Adumim in the east, Givat Ze'ev in the north and Betar in the south - officially become the capital, solely, of Israel. Among the Palestinians, across the board, the general view is that the Israelis know quite well that the Palestinians would never accept such a demand.
###It is therefore in Israel's clear interest not to start any talks with any Palestinians - not with moderates and particularly not with the radicals. On the contrary, it is best that the Palestinians remain extremists because then no one will ask the government of Israel to negotiate with them. How do we ensure that the Palestinians remain radical? We simply strike at them, over and over, via assassinations and incessant bombings, until they drive any thought of supporting a peace policy out of their minds. It is possible that this is mistaken, distorted thinking. However, whoever follows the mood in the territories, the press, the statements of various spokesmen and the interviews on local radio and Arab television stations - will quickly conclude that this is the overwhelming thinking among Palestinians from Rafah in southern Gaza to Jenin in the northern West Bank. And until Israel does not announce a change of policy, a desire for a complete cease-fire and a genuine willingness for dialogue - this is how the situation will continue.

(We came, we shelled, we killed; Danny Rubinstein; Haaretz)

Apesar de o texto tocar vários pontos importantes, e coincidentes com os meus posts anteriores em vários aspectos, para sermos honestos falta aqui alguma coisa. Falta admitir que quando com Barak houve a oportunidade de um acordo honesto Arafat não o aceitou. Que existem forças muito arreigadas na Palestina, e que aliás ocupam agora mesmo o poder executivo na Autoridade Palestina, que utilizam o mesmo discurso de destruição de Israel há várias décadas, sem nenhum tipo de concessão ideológica à paz ao longo de todo este tempo. Que existe por parte de Israel, infelismente, várias razões objectivas e históricas para acreditar que um acordo qualquer que se alcançasse com os moderados palestinos não significaria a paz definitiva. Tudo muito complicado e de dificíl solução como aliás sempre se soube. Mas uma coisa é certa, as soluções, difíceis ou não, só surgem buscando.

segunda-feira, 12 de junho de 2006

A verdade mais simples e a verdade mais dura

Encontrei este site ICT.org.il, que será um pouco suspeito já que é dirigido por israelitas, incluindo da Mossad, mas de qualquer forma o mais completo sobre os dados de vítimas do conflito israel-palestina que encontrei. Existe uma análise estatística bastante completa, mesmo que eventualmente em alguns aspectos um pouco tendenciosa, sobre a última intifada. As conclusões são em geral um pouco banais, o que também é natural na medida em que os dados não contradizem a percepção que já se possui do conflito. Mas há uma coisa que me chamou a atenção, porque sendo algo que um sempre soube, ao ver-lo tão explicitamente confirmado na "engenharia do conflito" apresentada (provavelmente a única coisa absolutamente objectiva que se pode concluir de todos aqueles gráficos), me impressionou por não fazer parte das conclusões do autor. A situação em que menos mortos existe de um lado coincide com que haja menos mortos inflingidos na outra parte. Que esta verdade tão simples não seja percebida e/ou admitida pelo autor tem muito que ver com a incapacidade de ambos os lados de conseguir terminar com a sua tragédia comum. Isso ou que para nenhuma das partes responsáveis no conflito o número de mortos é uma questão essencial a resolver. Essa seria então a verdade mais dura. Para infelicidade de todos os mortos, passados e futuros.

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domingo, 11 de junho de 2006

Desmontar a mitologia «liberalista»

...É o que é feito no Véu da Ignorância, nesta nota e nesta também: a carga fiscal portuguesa é, na realidade, das mais baixas da Europa, e a tributação, quando comparada com outros países, é mais forte sobre o consumo e os serviços do que sobre os rendimentos e os lucros. Portugal, paraíso neoliberal?

10,5 por hora

O barulho de um avião a passar é tão grande que mais vale interromper a aula. Caso contrário, torna-se um esforço inglório (e um pouco ridículo) tentar ser ouvido.
Só nas primeiras duas horas de aula, pareceu-me que passaram uns vinte.
Na segunda parte da aula (mais duas horas) decidi fazer um tracinho no canto superior esquerdo do quadro por cada avião. Sempre era uma maneira de ocupar aqueles trinta segundos de olhos-nos-olhos com os alunos enquanto os decibéis estão, quase de certeza, acima do legal.
No final da aula, contei os tracinhos no canto do quadro: vinte e um. Média: 10,5 aviões por hora.
Eu até acho que o aeroporto da Ota representa uma despesa medonha, mas...

sexta-feira, 9 de junho de 2006

A terra que mais cansa

Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, em um movimento de clara lucidez anunciou um referendo para finais de Julho em que se confirmaria ou não a vontade popular de fixar as fronteiras de um Estado Palestino Independente de acordo com as fronteiras prévias a 1967. A ideia partiria do "Documento de Acordo Nacional", ou "Documento dos Prisioneiros", assinado recentemente por prisioneiros palestinos em Israel. O interessante aqui é que a aceitação popular da proposta significaria na práctica um reconhecimento palestino popular oficial e com bases democráticas do Estado de Israel, ou seja, tudo que o Hamas, e todos os sectores palestinos mais radicais que advogam pela destruição de Israel, não querem.
###A coragem de Abbas é ao mesmo tempo clarividência. Apesar de os fundamentalistas de Hamas terem sido os vencedores das últimas eleições democráticas palestinas, esta organização, como todas as organizações fundamentalistas, é essencialmente anti-democrática. Prova disso foi a oposição de Hamas (aliás secundados também por Ayman al-Zawahiri, número dois de Al Qaeda) à realização de um tal referendo. Pois realmente uma tal consulta popular poderia servir de mecanismo para o início do processo de desmistificação da organização do Hamas internamente na Palestina, repensando parte do seu estatuto actual de representantes democráticos do povo palestino. Para isto houvesse sido fundamental que Olmert, primeiro-ministro de Israel, tivesse ajudado e percebido o alcance exacto do movimento de Abbas. Não percebeu e manteve a sua "política de paz unilateral", e mais do que isso demonstrou autêntico desprezo pela proposta de Abbas, considerando-a apenas como mais uma "jogada palestina interna sem sentido". Provavelmente isto é consequência de não haver já em Israel, à luz da história política recente, qualquer patrimônio de credibilidade como interlocutor por parte dos representantes da Fatah. Ainda assim foi um erro. O problema da desconfiança e da falta de esperança é que são muitas vezes apenas sintomas de preguiça e cansaço, e a verdade é que Olmert e Israel não ganham nada tornando as coisas ainda mais difíceis a Abbas e a todos palestinos moderados.

Se a táctica de Abbas já era de dificíl consecução mesmo com todas as ajudas que nunca chegou realmente a ter, a matança de civis por parte da artilharia naval isarelita em uma praia do norte de Gaza, que haverá resultado em mais de uma dezena de mortos e várias dezenas de feridos, poderá provavelmente haver condenado todo o projecto ao definitivo fracasso. Será inevitável que muitos comparem, uma vez mais, as posturas do Estado de Israel e dos terroristas palestinos fundamentalistas. No entanto estas não são comparáveis. Israel reconheceu imediatamente a tragédia e suspendeu os ataques a terroristas em Gaza. Não é possível comparar honestamente este tipo de posturas que com maior ou menor sucesso buscam não cair na barbárie absoluta com a barbárie militante dos líderes do Hamas, que não só protegem os seus assassinos de inocentes como os promocionam publicamente como heróis nacionais literalmente sagrados. De qualquer forma é inevitável pensarmos quantas vidas se haveriam poupado, e quanto futuro se poderia haver ganhado para todos, se o governo de Israel tivesse demonstrado a sensatez de suspender os ataques à Gaza antes da tragédia ocorrer, e em reposta à proposta inicial de referendo de Abbas...

Na verdade no entanto é que, em muitos aspectos importantes, Olmert se parece cada vez mais com o seu desprezado interlocutor Abbas. De facto, neste momento as sondagens em Israel já dão maioria absoluta aos opositores do seu plano de retirada unilateral dos territórios do West Bank, ao mesmo tempo que lhe deixam com apenas metade de apoio popular em relação ao seu governo como primeiro-ministro em geral. Uma das maiores tristezas desta zona do mundo é que não está claro que ainda reste capacidade de sacrificío e tolerância por parte dos dois povos para alcançar os acordos necessários para construir um verdadeiro processo de paz. De qualquer forma tanto Abbas como Olmert, e cada um a sua maneira, não parecem decididos a desistir. Seria então importante que ambos percebessem, e aqui falamos acima de tudo de Olmert, quanto necessitam apoiar-se um no outro para que não terminem finalmente, como todos os demais, forçados a desistir. É que aquelas terras, já está provado, que são capazes de esgotar ou matar, em geral em sentido não figurado, as forças de qualquer ser humano.

Links:

Prémio Tuvalu e outras considerações

Durão Barroso, presidente da comissão europeia, ganhou um prémio. O prémio Tuvalu.

«Cada ano um júri composto por activistas de três associações ecologistas internacionais - «Agir pour l'environnement», «Action Climat», «Transport & Environnment» - escolhe o premiado do chamado «prémio Tuvalu do desregramento climático», designação essa que tem origem no nome da ilha do oceano Pacífico ameaçada pela subida do nível das águas como consequência do aquecimento do planeta. Trata-se obviamente de um anti-prémio pois que visa justamente denunciar a acção de um actor, político ou económico, que se tenha mostrado incapaz de agir a favor da luta contra o desregramento climático.

Para este ano a escolha do júri recaiu sobre Durão Barroso, presidente da Comissão europeia pelo facto do dito cujo, sobejamente conhecido pelos portugueses, se deslocar diariamente dentro da cidade de Bruxelas com a sua viatura pessoal que é, nada mais nada menos, uma viatura 4x4 de todo-o-terreno (!!!), que gasta mais de 13.2 litros aos 100Km em circulação urbana e que produz, pelo menos, 265g de CO2/km percorrido (sem contar a climatização), ou seja, mais de 60 toneladas de CO2 ao longo da sua vida útil.»
(Copiado descaradamente daqui, onde se encontra a história toda traduzida)

Fait divers à parte, continuo sem entender a alienação de muita direita que acha excessivo o quase nada que se está a fazer para fazer face ao problema do efeito de estufa.

Como é possível? Como é possível tamanha displiciência? Como é possível tamanha irracionalidade? Como é possível tamanha despreocupação com o planeta, com o futuro, com o mundo que deixamos aos nossos descendentes.

Como é possível não entender que a generalidade da comunidade científica, dos especialistas nestes assuntos, considera que as emissões excessivas são a causa mais provável do aquecimento global?
Como é possível ignorar que os danos materiais e económicos (para já não falar nos danos humanos) da inacção são muito superiores aos custos da prevenção?
Como é possível não entender que Quioto peca por ser tão suave, e nunca por ser tão duro?
Como é possível não perceber que todos os danos económicos que nos recusarmos a sofrer na actualidade serão pagos com juros de mortes, catástrofes e bens materiais, e que só a total cegueira e irracionalidade faria contraír tal empréstimo?

É assustador...

A extrema-direita

Ah! É verdade! E vi as reportagens sobre a extrema-direita.

Acho que as pessoas deviam ter o direito de organizarem e legalizarem os movimentos que quisessem, deste que não fizessem a apologia da violência.

Neste caso, acho que toda a visibilidade dada a este movimento é boa, porque toda a gente devia saber que o desemprego, a exclusão, a ignorância e a falta de auto-estima geram pessoas assim, cheias de medo (da diferença, do mundo, da diversidade), absolutamente ignorantes da história da Europa, recente e antiga, e frequentemente desesperados e violentos.

Estou farto de ver documentários e ler artigos sobre a extrema-direita, europeia e americana, e não vejo mal nenhum em que se mostre aos portugueses os problemas dos jovens que se consideram excluídos, que não têm razões para acreditar no futuro e que por isso reagem assim, tornando-se violentos, acabando por vezes como assassinos perigosos que depois é preciso prender, depois de terem assaltado e morto inocentes.

A extrema-direita é (e sempre foi) um refúgio dos excluídos, dos infelizes, dos desempregados que se vêem a si próprios num beco e não sabem como hão-de sair. Acho que são um caso de polícia, no sentido em que precisamos de saber quem são, por onde andam, etc., mas acho que a solução para este problema não é a repressão pura e simples. Na minha vida conheci três ou quatro skin heads e eram todos uns desgraçados, sem futuro, sem emprego, sem estudos, sem namorada... não acho que os devamos odiar.

Isto não quer dizer que eu não ache que devia haver penas muito, muito pesadas para crimes de ódio. Muito mais pesadas do que as que temos! Se percebi bem, este dirigente que o documentário mostrou - esqueci-me do nome dele - já matou um inocente.

Eu em Portugal

Cá estou eu, a trabalhar em Lagos até ao fim do mês. De vez em quando vou vendo os telejornais: bola, bola, bola, os trabalhadores a serem tramados, os ricos (cada vez mais ricos) a dizerem-lhes que não há dinheiro para aumentos. Nada de novo.

No apartamento onde estou tenho quatro canais: RTP1, 2, SIC e TVI e ainda não vi um jornalista dizer uma coisa inteligente, fazer uma pergunta difícil, preparar-se antes de falar sobre as coisas.

Fala-se de Timor e da Austrália e não se diz a palavra mágica: petróleo.

O luto do Hamas

(...) in a statement faxed to Reuters after Zarqawi was killed in a U.S. air strike north of Baghdad on Wednesday, Hamas said it mourned the Jordanian-born insurgent as a "martyr of the (Muslim Arab) nation".

"With hearts full of faith, Hamas commends brother-fighter Abu Musab ... who was martyred at the hands of the savage crusade campaign which targets the Arab homeland, starting in Iraq," the statement said.


(Ruling Palestinian Hamas group mourns Zarqawi; Reuters; Jun 8, 2006)

quinta-feira, 8 de junho de 2006

Revista de blogues (8/6/2006)

  1. «Estado de negação», no Blasfémias: «Eles que se açoitem, que se fustiguem das formas que lhes provoquem o maior grau de deleite pessoal possível - desde que não se metam nas minhas opções de vida. Desde que não tentem conformar a sociedade em que estou à medida da visão da sua chibata. Desde que não enfraqueçam o conhecimento e Ciência, i.e. o verdadeiro caminho que nos elevou até à Modernidade.»
  2. «O fecho de maternidades e o humor», no Ponte Europa: «O encerramento de algumas maternidades é uma decisão que suscita a unanimidade dos técnicos e a fúria das populações, acicatadas pelos autarcas, bairrismo e alguns partidos políticos
  3. «Estará o Peru fodido?», n´o Avesso do Avesso: «Embora simpatize e compreenda a política de independência nacional (sobretudo, independência em relação aos EUA) que políticos como Hugo Chavez têm vindo a preconizar, não me agrada o tipo de regime que dali tem resultado.»

quarta-feira, 7 de junho de 2006

O excêntrico Sr. Ahmadinejad

«(...) SPIEGEL: First you make your remarks about the Holocaust. Then comes the news that you may travel to Germany -- this causes an uproar. So you were surprised after all?
Ahmadinejad: No, not at all, because the network of Zionism is very active around the world, in Europe too. So I wasn't surprised. We were addressing the German people. We have nothing to do with Zionists.
SPIEGEL: Denying the Holocaust is punishable in Germany. Are you indifferent when confronted with so much outrage?
Ahmadinejad: I know that DER SPIEGEL is a respected magazine. But I don't know whether it is possible for you to publish the truth about the Holocaust. Are you permitted to write everything about it?
(...)
SPIEGEL: Are you still saying that the Holocaust is just "a myth?"
Ahmadinejad: I will only accept something as truth if I am actually convinced of it.
###
(...)
Ahmadinejad: The mere fact that my comments have caused such strong protests, although I'm not a European, and also the fact that I have been compared with certain persons in German history indicates how charged with conflict the atmosphere for research is in your country. Here in Iran you needn't worry.
SPIEGEL: Well, we are conducting this historical debate with you for a very timely purpose. Are you questioning Israel's right to exist?
Ahmadinejad: Look here, my views are quite clear. We are saying that if the Holocaust occurred, then Europe must draw the consequences and that it is not Palestine that should pay the price for it. If it did not occur, then the Jews have to go back to where they came from. I believe that the German people today are also prisoners of the Holocaust. Sixty million people died in the Second World War. World War II was a gigantic crime. We condemn it all. We are against bloodshed, regardless of whether a crime was committed against a Muslim or against a Christian or a Jew. But the question is: Why among these 60 million victims are only the Jews the center of attention?
(...)
SPIEGEL: The Europeans support the Palestinians in many ways. After all, we also have an historic responsibility to help bring peace to this region finally. But don't you share that responsibility?
Ahmadinejad: Yes, but aggression, occupation and a repetition of the Holocaust won't bring peace. What we want is a sustainable peace. This means that we have to tackle the root of the problem. I am pleased to note that you are honest people and admit that you are obliged to support the Zionists.
SPIEGEL: That's not what we said, Mr. President.
Ahmadinejad: You said Israelis.
(...)
SPIEGEL: The key question is: Do you want nuclear weapons for your country?
Ahmadinejad: Allow me to encourage a discussion on the following question: How long do you think the world can be governed by the rhetoric of a handful of Western powers? Whenever they hold something against someone, they start spreading propaganda and lies, defamation and blackmail. How much longer can that go on?
(...)
SPIEGEL: Iran doesn't need the bomb that it wants to build?
Ahmadinejad: It's interesting to note that European nations wanted to allow the shah's dictatorship the use of nuclear technology. That was a dangerous regime. Yet those nations were willing to supply it with nuclear technology. Ever since the Islamic Republic has existed, however, these powers have been opposed to it. I stress once again, we don't need any nuclear weapons.
We stand by our statements because we're honest and act legally. We're no fraudsters. We only want to claim our legitimate right. Incidentally, I never threatened anyone - that, too, is part of the propaganda machine that you've got running against me.
(...)
SPIEGEL: This letter to the American president includes a passage about Sept. 11, 2001. The quote: "How could such an operation be planned and implemented without the coordination with secret and security services or without the far-reaching infiltration of these services?" Your statements always include so many innuendos. What is that supposed to mean? Did the CIA help Mohammed Atta and the other 18 terrorists conduct their attacks?
Ahmadinejad: No, that's not what I meant. We think that they should just say who is to blame. They should not use Sept. 11 as an excuse to launch a military attack against the Middle East. They should take those who are responsible for the attacks to court. We're not opposed to that; we condemned the attacks. We condemn any attack against innocent people.
SPIEGEL: In this letter you also write that Western liberalism has failed. What makes you say that?
Ahmadinejad: You see, for example you have a thousand definitions of the Palestian problem and you offer all sorts of different definitions of democracy in its various forms. It does not make sense that a phenomenon depends on the opinions of many individuals who are free to interpret the phenomenon as they wish. You can't solve the problems of the world that way. We need a new approach. Of course we want the free will of the people to reign, but we need sustainable principles that enjoy universal acceptance - such as justice. Iran and the West agree on this.
(...)»
(A entrevista de Ahmadinejad à Der Spiegel merece ser lida por quem tiver paciência para aturar as evasivas e as fugas sistemáticas do presidente iraniano às perguntas mais directas.)

terça-feira, 6 de junho de 2006

O Manifesto de Euston

Um grupo de intelectuais da esquerda britânica (incluindo Norman Geras, Nick Cohen, Shalom Lappin e Alan Johnson, entre outros) juntou-se para escrever um manifesto que tem suscitado algum interesse na blogo-esfera e na imprensa britânica.
O «Manifesto de Euston» tem a intenção ostensiva de se demarcar de algumas personalidades e organizações da esquerda britânica que, nas palavras dos autores, têm sido «demasiadamente flexíveis» nos seus valores de esquerda. No manifesto, criticam-se claramente as «desculpas» e a «compreensão» por «regimes e movimentos reacionários»; o «relativismo cultural segundo o qual os direitos humanos fundamentais não são apropriados para algumas nações e povos»; o «anti-americanismo» enquanto «preconceito generalizado»; as «desculpas» para o terrorismo, e as alianças, no movimento anti-guerra, com «teocratas». Por outro lado, os autores propõem afirmativamente uma «política geralmente igualitária» em questões sociais; a «reforma radical das maiores instituições de governança económica global» e o «comércio justo, mais ajuda [aos países em desenvolvimento] e o cancelamento da dívida [desses países]»; a primazia do dever de «intervenção humanitária» sobre a «soberania» de Estados que não respeitem os direitos humanos essenciais; a «abertura a ideias e indivíduos à direita» e a «liberdade de criticar a religião». Assume-se ainda, expressamente, que alguns dos autores foram a favor da «intervenção militar no Iraque» e outros contra.
Não é necessário ser um grande especialista na política do Reino Unido para compreender que alguns dos alvos do Manifesto de Euston serão políticos da esquerda radical como George Galloway (que foi eleito deputado em Londres com o apoio de uma coligação de trotsquistas e islamistas) ou como o presidente da Câmara de Londres, Ken Livingstone (que recebeu, elogiou e defendeu o clérigo muçulmano wahabita Al-Qaradawi, um apoiante do bombismo suicida na Palestina, homófobo e favorável à violência doméstica e às mutilações genitais, e que Livingstone considera «um moderado»), para além do movimento anti-guerra britânico propriamente dito.

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E porque me interesso eu por isto, pergunta o leitor? Resposta: porque encontro no Manifesto de Euston um diagnóstico certeiro (entre vários que já foram feitos anteriormente) da desorientação de alguma esquerda radical contemporânea.
Os factores principais que geraram a situação actual foram: a nível internacional, a derrocada das ditaduras comunistas da Europa de leste em 1989 e a evolução capitalista da China por um lado, e por outro lado o 11 de Setembro e a emergência dos movimentos islamistas como principal força contestatária global; a nível interno, as dificuldades da «política de classe» e da forma organizacional sindical, e a sua substituição pela «política identitária» e pelas organizações não laborais. Numa situação em que o «sub-proletariado» dos países centrais da UE é geralmente de origem muçulmana (e representado por organizações de cariz religioso ou étnico) e num momento em que os EUA passaram das intervenções (muitas vezes, camufladas) que faziam na América Latina nos anos 80, para a invasão e ocupação de países muçulmanos, a convergência, mesmo que temporária, com organizações muçulmanas extremistas tornou-se possível. O impulso «anti-americano» e a ideologia «multiculturalista» facilitam a aliança.
Norman Geras (um dos autores principais do manifesto) já assumiu que parte da sua motivação resultou da incapacidade de muita gente de esquerda em reconhecer que o regime de Saddam era totalitário e tirânico, e em aceitar que agora se deveria trabalhar para instaurar um regime democrático no Iraque. No fundo, é mais do que isso. É também o desconforto com a ausência de combate político (e, nalguns casos, até de distanciamento organizativo...) face ao islamofascismo, os bloqueios comunitaristas na formulação política, e a falta de alternativas a nível internacional.
Embora concorde na generalidade com o «Manifesto de Euston», quanto ao essencial tenho a sorte de não ter marchado contra a guerra, aqui em Lisboa, rodeado por barbudos anti-semitas e mulheres de véu, e por isso não tenho tanta urgência em denunciar outros sectores da esquerda. Mas acho que, chegados a este ponto, só por ingenuidade ainda se pode acreditar que será fácil o caminho para ter algo parecido com uma democracia no Iraque. E uma auto-crítica dos que acreditaram que esse caminho seria fácil e rápido seria bem vinda. Quanto ao que é acessório, acho desnecessário o comprometimento dos autores com a «solução de dois Estados» na zona Israel-Palestina, e não compreendo o que faz o Linux no meio daquilo. E finalmente, acho um sinal de pouca inteligência táctica não se distanciarem tão veementemente da direita como o fizeram face a alguma esquerda.

Padre nuestro que estás en los cielos...

Padre nuestro que estás en los cielos... Hay que pedirle a Dios por el pueblo del Perú, por la democracia del Perú, por el futuro del pueblo peruano, por la integración de nuestros pueblos. Hay que pedirle a Dios sabiduría al pueblo peruano, porque bastante fue manipulado

Juntando las manos y con los ojos cerrados, el presidente venezolano, Hugo Chávez, rezaba en directo durante su programa televisivo semanal Aló Presidente, en la que suponía su enésima referencia pública en los últimos meses al proceso electoral peruano.

Comparativamente, rezar é realmente uma solução muito mais diplomática que a inicialmente avançada por Chávez (ler post anterior).

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Michael Bloomberg

(...) Each one of you has had two important principles deeply embedded in you through your association with this amazing institution: An unwavering allegiance to the power of science and a profound commitment to use that power to help people. And this is a good thing, because now more than ever, these two fundamental concepts are being ignored, or are under attack.

Today, we are seeing hundreds of years of scientific discovery being challenged by people who simply disregard facts that don't happen to agree with their agendas. Some call it "pseudo-science," others call it "faith-based science," but when you notice where this negligence tends to take place, you might as well call it "political science."

###You can see "political science" at work when it comes to global warming. Despite near unanimity in the science community there's now a movement - driven by ideology and short-term economics - to ignore the evidence and discredit the reality of climate change.

You can see "political science" at work with respect to stem cell research. Despite its potential, the federal government has restricted funding for creating new cell lines - putting the burden of any future research squarely on the shoulders of the private sector. Government's most basic responsibility, however, is the health and welfare of its people, so it has a duty to encourage appropriate scientific investigations that could possibly save the lives of millions.

"Political science" knows no limits. Was there anything more inappropriate than watching political science try to override medical science in the Terry Schiavo case?

And it boggles the mind that nearly two centuries after Darwin, and 80 years after John Scopes was put on trial, this country is still debating the validity of evolution. In Kansas, Mississippi, and elsewhere, school districts are now proposing to teach "intelligent design" - which is really just creationism by another name - in science classes alongside evolution. Think about it! This not only devalues science, it cheapens theology. As well as condemning these students to an inferior education, it ultimately hurts their professional opportunities.

Hopkins' motto is Veritas vos liberabit - "the truth shall set you free" - not that "you shall be free to set the truth!" I've always wondered which science those legislators who create their own truths pick when their families need life-saving medical treatment.

There's no question: science - the very core of what you have been living and breathing these past several years - is being sorely tested. But the interesting thing is this is not the first time that graduates of the School of Medicine have faced such a challenge. When the institution was founded more than a century ago, medicine was dominated by quacks and poorly-trained physicians. In that world, Johns Hopkins and its graduates became a beacon of truth, and trust and helped to revolutionize the field.

Today, in just a few hours you will each evoke that same respect - and with it, you will each bear the same responsibility: To defend the integrity and power of science.

(...) When Johns Hopkins developed the original principles by which the hospital should operate, he specifically decreed that it should "treat the indigent sick of the city… without regard to sex, age, or color."

It may sound obvious that the goal of every doctor and scientist is to use knowledge to improve the lives of others, but this cannot be taken for granted anymore. Look at some of the recent federal and state governmental, medical, and scientific policies and then tell me that, in every case, the end goal is always about helping the patient. I don't think so!

I work at the city level, dealing with real world problems and delivering actual services. We have to put the care and treatment of our neighbors front and center. We can't let ideology get in the way of truth.

We have pursued a ground-breaking agenda built on facts, and on a commitment to those who need it most. A patient-driven program that cares about outcomes, not incomes. Let me give you some examples:

We have taken aim at tobacco - the country's biggest killer - by raising cigarette taxes, running hard-hitting ad campaigns, helping smokers quit, and wiping out smoking in bars, restaurants, and other workplaces.

We have taken aim at AIDS by focusing on reducing risky behavior, improving the quality of care, and expanding testing - because knowledge is power.

We have taken aim at diabetes - the only major health problem in our country that's getting worse - by beginning to address childhood obesity and working to create the nation's first-ever population-based diabetes registry.

And we have taken aim at unintended pregnancies by increasing access to high-quality reproductive health care services for all our citizens. Last June, we became the first city in America to run a public campaign to raise awareness and increase access to Emergency Contraception.

None of these initiatives is steeped in ideology, but they are all brimming with common sense. To me, that's really the essence of good public health policy, and it's the same approach that I hope you will carry with you wherever you go, whether it's into research, practice, teaching, or the private sector.

If you think about it, the cardinal rule of medicine - "Do no harm" - really aims too low. To improve health means being rigorous, being inquisitive, keeping up to date with scientific progress, and always pursuing the truth. It also means thinking beyond just medicine, and addressing the broader social, political, and economic issues that affect health: Housing, education, discrimination, and most of all, poverty.

Addressing these issues will increase access to care and improve patient outcomes, but there's no doubt, it will take courage and strong leadership to make society confront them. Fortunately, as graduates of this institution, I believe you can be those leaders. (...)


(Address to Graduates of Johns Hopkins University School of Medicine - Baltimore, MD; Michael Bloomberg; May 25, 2006)

Michael Bloomberg é republicano e actual mayor de Nova Yorque.

Adam Smith em entrevista

Através do Véu da Ignorância descobri que Adam Smith não apenas está vivo como até deu recentemente uma entrevista à Prospect Magazine. Vale a pena ler.
  • «Dean (...) You wrote two distinguished books: the Theory of Moral Sentiments and the Wealth of Nations. But why only two? Why did you never publish your theory of jurisprudence?
  • Adam Smith (...) In my Moral Sentiments I wrote that the rich are led by an invisible hand to make nearly the same distribution of the necessaries of life, which would have been made, had the earth been divided into equal portions among all its inhabitants, and thus without intending it to advance the interest of the society. Now, some have held this “invisible hand” to be the epicentre of my system, when ‘twas but a passing remark. I expected my readers to understand it as a reference to such Satire as Mr Mandeville’s Fable of the Bees. But some of my readers, it seems, are more solemn than I.
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  • Dean But what about the Theory of Jurisprudence?
  • Adam Smith There I confess to some caution. You recall that in the year 1776, there was a revolt among our American Colonists; which, being mishandled, led to their departure from the Empire. Shortly afterwards followed the events in France, that were proceeding as I rewrote my Moral Sentiments in 1790. (...) Should I be associated with these principles, I might suffer as did my friend Mr Dugald Stewart. (...) They misread my Wealth of Nations, failed to read my Moral Sentiments, and knew nothing of my Jurisprudence. My Jurisprudence sought to establish the first principles of government.
  • My private Opinions were of a more radical cast than those I suffer’d to be publish’d—in matters of religion and of the colonists of America. So I instructed Dr Black and Dr Hutton that my Lectures on Jurisprudence were to be burnt on my demise. (...)
  • Bad government is, as I said in my book, a conspiracy of shopkeepers against their customers. I should be loath to relieve the debts of bad governments, lest they incur more, unless we could bind them with promises of amendment. And as to the debts of private parties, it is not for the Magistrate to meddle. The rules of prudence caution each (as Mr Hume said) to suppose that each other is a knave in his private business.»

Sobre o novo estatuto da carreira docente

Quando os arautos da coisa são a direita liberal cega e a os radicais da pedagogia moderna assustam-se todos, incluindo eu. Não foram os pais portugueses que exigiram mais poder próprio na avaliação dos professores, apenas uns quantos iluminados político-econômico-pedagógicos. Sempre achei, e continuo a achar, que os professores portugueses acedem, de forma errada, à sua carreira sem se prestarem a exames gerais que avaliem as suas capacidades de forma comum como acontece em outros países europeus. Sempre achei que isto era um problema, mas um problema secundário, na realidade consequência de um problema principal que o precede, e que é a mal resolvida problemática entre a legítima universalização do direito à educação e a exigência fundamental de excelência.

Se não somos capazes de compreender que os professores necessitam antes de mais nada de terem mais meios para poder ensinar, e isto significa também mais poder e meios para punir os maus alunos, reprovando, suspendendo e explusando-os, então não percebemos nada e seguiremos atolados no lodo da tal pedagogia inclusiva. O desrespeito de uma sociedade pelos seus professores, o discurso acusador de clientelismo, preguiça e incompetência é aqui o maior indicador do desprezo que esta sociedade já decidiu voltar para a sua educação.
###O esmorecimento dos critérios de avaliação na educação, que se vai estendendo como um cancro do ensino básico ao superior, termina por possibilitar a entrada na carreria docente de profissionais que não o deveriam ser, e que terminam por incrementar a má imagem que se tenha, ou que se queira dar, dos docentes e do sistema de educação em geral. Grande parte do problema actual é que as próprias universidades tal como os liceus já participam em larga medida desta lógica mortífera que afirma, explícitamente ou não, como principal regulador da educação a ofertar o seu cliente (aluno e pais).

Os professores devem realmente ser avaliados, mas antes de o serem, e de acordo com critérios correctos, ou seja, técnicos. Esta avaliação acontecerá de forma natural através de um sistema de educação universitário mais exigente, e também, para que não estejamos à espera que a natureza cumpra no futuro com o que achamos que estamos conseguir fazer-la prometer no presente, através de exames gerais de admissão comuns que garantam, de forma honesta e imparcial, os minímos de qualidade da classe profissional e que sejam, portanto, garantes também de certa impermeabilidade da degradação, pontual ou não, dos vários graus de ensino entre si.

Comecemos então por aprender o valor fundamental de se poder e dever exigir, criando os meios que tornem possível esta exigência, nos vários graus do nosso ensino. E ao mesmo tempo criemos as devidas barreiras ao ciclo vicioso de degradação que nos levou à destruição da imagem do principal elemento educador, o professor, e de aí à confusão definitiva quanto as verdadeiras causas desta degradação.

domingo, 4 de junho de 2006

Daniel Goldhagen: «The Holocaust wasn't Christian»

«(...)
Benedict falsely exonerated Germans from their responsibility for the Holocaust by blaming only a "ring of criminals" who "used and abused" the duped and dragooned German people as an "instrument" of destruction. In truth, Germans by and large supported the Jews' persecution, and many of the hundreds of thousands of perpetrators were ordinary Germans who acted willingly. It is false to attribute culpability for the Holocaust wholly or even primarily to a "criminal ring." No German scholar or mainstream politician would today dare put forth Benedict's mythologized account of the past.
Benedict did say correctly that the "rulers of the Third Reich wanted to crush the entire Jewish people." But he then turned the Holocaust into an assault most fundamentally not on Jews but on Christianity itself, by falsely asserting that the ultimate reason the Nazis wanted to kill Jews was "to tear up the taproot of the Christian faith" — meaning that their motivation to kill Jews was because Judaism was the parent religion of Christianity.

###
(...)
Benedict's historical fabrication to Christianize the Holocaust is also a moral scandal because it obscures the troubling truth about the Catholic Church: Its churches across Europe tacitly and actively participated in the Jews' persecution. Pope Pius XII, the German bishops, French bishops, Polish church leaders and many others, animated by anti-Semitism, supported or called for the persecution of the Jews (though not their slaughter). Some, such as Slovakian church leaders and Croatian priests, actively endorsed or participated in the mass murder.
In this and other ways, Benedict severed and obscured all connection between the Catholic Church, Christianity and the Holocaust, which is a huge step backward from the positions that John Paul II adopted.
(...)
Since Vatican II, the church has forcefully condemned anti-Semitism, even declaring it a sin. Yet Benedict stood in Auschwitz negligently silent.
At length Benedict wondered about where God was. A churchman's question. But he conspicuously failed to ask where the church was. Benedict's appeal to the mysteries of God's ways thus obscured even the most discussed aspects of the church's and Pius XII's conduct during the Holocaust: Why they didn't speak out. Why they didn't do more to help Jews.
(...)»
(Daniel Goldhagen no Los Angeles Times; ler na íntegra.)

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Revista de blogues (2/6/2006)

  1. «Iraque - a mãe de todas as tragédias» no Ponte Europa: «O massacre de civis iraquianos por fuzileiros dos EUA era a nódoa que faltava ao pior presidente dos EUA e aos cúmplices que o apoiaram na demente aventura do Iraque.»
  2. «Bibliotecas com mais entradas do que os estádios dos dois maiores clubes de Lisboa» n´O Bibliotecário Anarquista: «Ao ler o relatório estatístico das Bibliotecas de Lisboa (BLX) no ano de 2005 foi com bastante agrado que verifiquei que foram visitadas por 760.933 pessoas. Ou seja uma média quinzenal de 31.708 pessoas. Superior à média de assistência de jogos de futebol do Sporting (23.050) e do Benfica (26.697).»

Políticos portugueses

Uma pessoa que só tenha vivido em Portugal, não tenha viajado, não tenha antena parabólica, etc, poderá até achar normal que seja sempre aos políticos que se convide a discutir não só a política, mas também o cinema, a literatura, a pintura, a filosofia, a economia, a teologia, o futebol, em suma, todas e quaisquer coisas. Mas acontece que isso não é normal. Não pode ser.

Só em Portugal, acho eu (corrijam-me se existe algum outro pequeno e bizarro país no mundo onde isso também seja assim), se encontra disponível um abanico tão amplo de opiniões de diferentes personalidades políticas sobre o mesmo último filme de Almodóvar que ainda nenhum deles viu, sobre as mesmas profundas questões que levanta o último romance de Dan Brown, ou então o último concurso de televisão estreado, as praias de Timor e do Algarve, e diferenças entre respectivos bronzeados. Poderás ver-los nas televisões, ler-los nos jornais, nos seus blogs pessoais, ouvir-los nas rádios, e tudo isso ao mesmo tempo!!!
###Stop - Pause - We are in record.

A omnipresença dos políticos portugueses os transforma em verdadeiros deuses deste pedaçozinho de terra que roubou o mar a Badajoz. Nem mesmo depois de reformarem-se eles desaparecem das nossas vidas. Nada disso. Será precisamente então por essa exagerada acumulação de tarefas, que o seu trabalho especificamente político, ao longo destas três décadas de democracia, não produziu todos os melhores resultados desejados? De qualquer forma os tempos de pleno emprego se acabaram, e todos esses bem pagos tachos mediáticos extras dos políticos portugueses fazem falta a muita gente. Imaginam medida mais corajosa para a redução do desemprego em Portugal do que uma lei proibindo um político de ganhar dinheiro como comentador?

Mas quê fazer se os críticos de cinema são tão feios, e os literários tão pouco fotogênicos, se aos comentadores de futebol o tabaco lhes estragou a voz, e a linguagem gestual dos historiadores peca tão explícitamente pela deselegância? Ó agentes culturais, jornalistas, profissionais de todas as áreas, uni-vos e esforçai-vos mais no vosso labor e aspecto, para que finalmente os políticos portugueses possam dedicar-se de corpo e alma à sua original função (pelo menos naqueles casos em que isso possa eventualmente ser considerado positivo). Ou será que a semana genesíaca nacional dos divinos políticos portugueses nunca terá direito ao já merecido descanço final?

quinta-feira, 1 de junho de 2006

Guerra às drogas

(...) Classicamente, quem defende a legalização não são comunistas dispostos a minar a família cristã, base da civilização ocidental, mas bem-comportados economistas neoliberais, como Milton Friedman, da insuspeita Escola de Chicago, e a revista britânica "The Economist". O raciocínio, em linhas muito gerais, é o de que a proibição leva a um sobrepreço que faz com que valha a pena para o traficante correr riscos. Por tratar-se de mercado altamente lucrativo e não-regulado, quadrilhas rivais disputam espaços à bala, e os que triunfam têm poder econômico para corromper policiais e outros agentes do Estado. Se os entorpecentes fossem legalizados e devidamente taxados, os traficantes se veriam privados dessa fonte tão fabulosa de dinheiro, o que tenderia a reduzir sua capacidade de gerar violência. Os recursos arrecadados pelo Fisco poderiam ser usados para compensar o alto custo social das drogas.
###(...) Embora concorde em princípio com a tese da legalização, vejo pelo menos dois pontos fracos no raciocínio que demandam uma reflexão mais detida. O primeiro diz respeito à questão da violência. Se as drogas ilícitas se tornassem legais da noite para o dia, dificilmente os grandes e pequenos bandidos que hoje se dedicam ao tráfico vestiriam uma gravata e se tornariam respeitáveis executivos do mundo corporativo. É mais verossímil imaginar que migrariam para outras atividades criminosas, eventualmente até mais violentas do que a comercialização de drogas, como o seqüestro. É muito mais "tranqüilo" _e demanda menos coerção_ vender um produto a quem deseja comprá-lo do que arrebatar e manter em cativeiro alguém que naturalmente resistirá a isso.

É possível que, no médio e longo prazos, a força das quadrilhas, privadas da renda fácil das drogas, decaia. É o que se deu nos EUA dos anos 30 após a revogação da Lei Seca. Não costumo, entretanto, subestimar a capacidade do homem de imaginar e implementar novos meios de despojar seus semelhantes.

O outro ponto que me preocupa é o impacto da legalização sobre a saúde pública. O que diferencia entorpecentes como a cocaína e a heroína de drogas como o álcool e o tabaco é o fato de que as primeiras são proibidas, e as segundas, permitidas. Enquanto a prevalência da dependência de cocaína é de menos de 1%, o alcoolismo afeta entre 10% e 15% da população. Apenas imaginar que o padrão de consumo das drogas hoje ilícitas possa aproximar-se do das legalizadas já deixa até o mais tolerante dos sanitaristas de cabelo em pé.

(...) Depois de eu ter exposto tantas dúvidas, o leitor pode legitimamente estar se perguntado se eu realmente sou a favor da legalização. Sim, defendo-a, mas faço-o menos por acreditar que tal passo possa realmente pôr um fim à violência gerada pelo tráfico ou que não tenha impacto deletério sobre a saúde pública e mais por razões filosóficas. Não acho que caiba ao Estado impedir que cidadãos juridicamente capazes façam mal a si mesmos. Se alguém, devidamente informado dos riscos das drogas, decide ainda assim usá-las, só podemos lamentar sua escolha, mas não vetá-la.

Os ônus que seu hábito pode gerar à sociedade, notadamente a utilização dos serviços sanitários, podem ser pelo menos parcialmente cobertos pelos impostos que incidiriam sobre esses produtos. Não é uma solução perfeita, mas nosso mundo tampouco o é.

Se acatamos a idéia de que cabe ao poder público impedir alguém de fazer mal a si mesmo, para ser coerentes, precisamos aceitar também que o Estado supervisione nossa dieta ou nos obrigue a fazer exercícios físicos. E o nome disso é totalitarismo.


(Guerra às drogas; Hélio Schwartsman; Folha de São Paulo 01/06/2006)