O
Blasfémias anda a pensar sobre a direita numa série de recentes posts do Rui A. e do CAA. (
1,
2,
3,
4). O primeiro desta série é inspirador não pelo valor do post em si, mas pelo seu cáracter sintomático primeiro do diagnóstico errado que a direita faz tantas vezes sobre a sua condição histórica, e segundo pela defesa cocha das maravilhas do liberalismo absoluto. Se pode resumir o que ali se diz nos seguintes pontos:
- Historicamente a direita foi reduzida, e em geral aceitou ser reduzida, pelo discurso de esquerda a uma força de tirania e opressão dos mais fracos.
- A corrente de direita que primeiro buscou sair desta redução foi a da democracia cristã europeia, incorporando no seu discurso parte do discurso socialista de esquerda.
- As formas de política social de Estado circuladas pela esquerda (e por parte da direita conservadora) são, sempre e intrinsecamente, ineficientes e contra-producentes, gerando mais pobreza que aquela que pretendiam reduzir ou acabar.
- O liberalismo econômico é a forma mais justa e eficiente de distribuição de riqueza e justiça social.
- O liberalismo econômico é, portanto, o melhor caminho para a direita sair da redução realizada sobre ela pela esquerda.
###Os dois primeiros pontos pertencem ao que poderíamos chamar o pensamento histórico, enquanto os pontos seguintes pretendem ser uma defesa das qualidades do liberalismo econômico tal qual. Se pensamos mais detentivamente sobre a questão histórica percebemos que se escapam ao autor muitas coisas importantes. Primeiro, o discurso da esquerda tem dois momentos fundamentais da sua construção, o iluminista e posteriormente o socialista. Com o iluminismo o discurso de esquerda surge precisamente para organizar ideologicamente a luta contra a opressão e a tirania de facto, e não se realizou aqui redução nenhuma. Foi a direita, sempre e quando não se afastou dos valores autoritários, que se reduziu a si mesma, e não apenas em termos de discurso, à tirania. Aliás grande parte da legitimação ideológica da direita como discurso possível, e não apenas como força autoritária, é possibilitado pela definição, mais ou menos rigorosa, de um discurso de esquerda ao qual criticar. No momento socialista a esquerda reformula ou aperfeiçoa o seu discurso como resposta ao pensamento econômico que conceituava o sistema capitalista em nascimento. Se era natural que a esquerda, coerente com o seu pensamento original de justiça social e combate à opressão, pensasse as desigualdades ainda presentes no sistema capitalista, terá cometido o erro na sua forma mais radical de identificar todas as desigualdades, em geral endêmicas às sociedades humanas, como fruto exclusivo do sistema capitalista. A social-democracia e o socialismo europeu moderado surgem precisamente em grande parte como correcção a estes erros cometidos pelo discurso socialista da esquerda radical. Hoje em dia quase todos os discursos da esquerda ocidental incorporam, de forma mais ou menos completa e coerente, estes elementos de correcção inseridos pela social democracia.
A direita liberal que, com maior ou menor sucesso, se desvinculou dos valores conservadores autoritários, e que já estava presente no pensamento econômico dos primeiros pensadores não socialistas do capitalismo, afirma a sua total confiança nas benesses do capitalismo. Pelo menos na sua forma mais radical defende que o mercado distribui naturalmente a riqueza e executa a justiça social de forma espontânea, graças às suas regras internas de competição. O pensamento de direita do
laissez faire tendo parte de razão, na sua forma absoluta ganha contornos de pensamento mítico, e termina por manter traços do autoritarismo ideológico passado, ao negar o direito de crítica e correcção do mercado por parte das maiorias sociais ao avaliar o seu desempenho. Por outro lado dizer que os Estados sociais actuais são totalmente falhados, e geraram mais pobreza que a que pretendiam corregir, é absurdo e falso. A maior parte dos Estados sociais europeus geraram mais bem estar geral do que nunca se sonhou em nenhum momento da história mundial, e esta é uma percepção generalizada das sociedades destes Estados. Que situações demográficas e de economia mundial criem actualmente conjunturas econômicas que obriguem estes Estados a repensar em parte as suas regras e revisar a sua dimensão em algumas áreas, não anula que, para a maior parte dos cidadãos destes Estados, a ideologia que os levou onde estão continue a ser a que, juntamente com o bom senso, serve de base para o modelo social desejado.
O Estado não é em si mesmo bom, e pela sua natureza não participa em geral de um sistema que o obrigue estructuralmente de forma eficiente a maximizar o seu rendimento. A esquerda na sua maior parte já reconhece esta situação, mas reconhece também que é o Estado o único agente que de forma sistemática e democrática pode definir uma política de justiça social que para a esquerda é essencial. A direita não conseguirá reconquistar status moral duradouro por via do marketing liberal, neste aspecto é seguro que terá muito menos sucesso que a tão criticada, por ela própria, corrente da democracia cristã. Para provar de forma credível estar realmente preocupada com a justiça social, a direita tem que necessáriamente incorporar no seu discurso instrumentos para a levar a cabo, e não outorgar a um mercado impessoal a sua responsabilidade. Quando o faça provavelmente se descubrirá social-democrata, mas isso seguramente é motivo suficiente para que os indefectíveis do liberalismo econômico estejam agora a dizer-me "então o melhor é não fazer".