segunda-feira, 26 de junho de 2006

A fragilidade da democracia

A desproporção e a confusão reinante na política norte-americana contra o terrorismo desde o 11-S será no futuro descrito pelos historiadores como um reflexo do grau de poder vertiginoso que os Estados Unidos materializou no ínicio do século XXI, e outro exemplo de como o excesso de poder faz esquecer o bom senso. Um ataque perpretado por 19 terroristas financiados pela Al-Quaeda, e que provocou a morte de, aproximadamente, 3000 pessoas, levou a super-potência mundial a realizar duas invasões militares, uma das quais claramente à margem do direito internacional e absolutamente irresponsável na sua previsão; a afrouxar a protecção dos direitos civis dos seus próprios cidadãos; a utilizar cadeias secretas espalhadas por países mais ou menos duvidosos para os seus interrogatórios sem lei; a ignorar todas as convenções internacionais e o seu próprio código legal com Guantanamo; a realizar escutas telefônicas de forma massiva sem autorização judicial; e agora sabemos que também a investigar as contas e operações financeiras de meio planeta.
###O caso da compra de informação financeira é apenas o exemplo mais recente de toda uma escalada de acções exacerbadas da América perante a falsificação parcial da sua omnipotência, não sendo nem de perto nem de longe a mais grave entre elas. O que é curioso no entanto é a resposta de Bush aos diários que publicaram a notícia, acusando-os uma vez mais de ajudar o inimigo, etc, e afirmando que: Estamos em guerra com um punhado de pessoas que querem fazer dano aos Estados Unidos de América e o que estávamos a fazer era o correcto. É o próprio Bush que admite que a sua guerra é contra "um punhado de pessoas", ao mesmo tempo que identifica o tempo das acções com o passado, o que indica em parte o já pressentido recuo do seu governo (vejam-se as declarações recentes sobre Guantanamo, e mesmo as recentes contextualizações da invasão de Iraque) perante uma política desastrosa para o combate ao terrorismo (e para a popularidade interna de Bush...), e desastrosa na medida em que precisamente escapa, em vários aspectos de forma contra-producente, a todos os limites da proporcionalidade. É acima de tudo desagradável verificarmos o tempo que se tardou em começar a reverter este processo, a forma como em um país com a tradição de liberdade dos Estados Unidos, não só a oposição mas os próprios media demoraram em reagir criticamente perante a degradação do bom senso e do espírito democrático inaugurado por esta administração no rescaldo dos ataques às Twin Towers.

A conclusão de tudo isso é a fragilidade do Estado de Direito. A forma como as democracias, por mais maduras que sejam, estão sujeitas a, perante crises ou até mesmo apenas episódios, cair na sua própria negação. São vários, e de diferentes partes do espectro ideológico, os que sacralizando o voto das massas como único pilar de avaliação moral dos tempos entendem que este, sendo o valor supremo, obriga a todos a curvarem-se perante as decisões populares de alguns países em optarem pela barbárie. Transformam o bom senso em ingenuidade, e os instintos mais básicos e irresponsáveis em realismo. Neste lugar mau onde os fundamentalistas do Hamas se encontram de alguma forma com Bush, que os cristãos norte-americanos se abraçam sem o saberem com os muçulmanos árabes radicais, muitos insistem em falar ainda de legitimidade, e muitas vezes da mesma legitimidade. A democracia é muito mais que o voto, e por isso mesmo muito mais frágil e exigente. Pela negativa quando definimos a democracia apenas como isso, o voto, transformamos a civilização e a dignidade humana em contingências.

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