quarta-feira, 28 de junho de 2006

Vital Moreira: «A separação inacabada»

«A discussão sobre a presença dos bispos católicos no protocolo oficial do Estado mostrou tanto o atraso e as dificuldades na realização do princípio da separação entre o Estados e as igrejas como a continuidade, no campo da direita política, de uma posição de resistência à realização plena da laicidade do Estado e ao fim dos privilégios oficiais da Igreja Católica. A Constituição de 1976 restaurou o princípio da separação, mas na realidade dos factos a imiscuição da religião no Estado persiste em vários aspectos.
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Por definição, o protocolo do Estado tem que ver com o Estado. Havendo separação entre Estado e igrejas, a presença de representantes destas na esfera daquele implica uma óbvia violação do referido princípio. A que se deve acrescentar, aliás, uma subversão da igualdade de direitos das diferentes igrejas, porquanto só a Igreja Católica é beneficiária desse privilégio.
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Por mais que preste homenagem verbal à separação entre o poder secular e a esfera religiosa, a Igreja de Roma não consegue cortar definitivamente com a tradição cosntantiniana de se valer do braço do Estado em proveito próprio. Porém, separação significa separação. Nem o Estado se pode imiscuir nas igrejas ou tomar parte na sua vida e na sua liturgia, nem as igrejas se devem intrometer no Estado ou participar nas manifestações do poder político. Nenhuma habilidade doutrinária ou legal pode contornar a radical incompatibilidade da mistura do Estado e das igrejas com o princípio da separação. Nem se invoque a "tradição" ou o "carácter maioritariamente católico da população portuguesa", simplesmente porque nem uma nem outra coisa são relevantes para a questão. Por um lado, a tradição não pode valer contra norma expressa da Constituição; e, de resto, se a tradição valesse alguma coisa nesta matéria, então ainda hoje Portugal teria uma religião oficial. Por outro lado, o argumento da maioria religiosa, se fosse aqui relevante, deveria funcionar ao contrário: se alguém precisava de ajuda seriam as confissões minoritárias e não a religião hegemónica, a qual, por o ser, não deveria necessitar do Estado para nada. A separação entre o Estado e as igrejas vale por si mesma, como condição da universalidade e da neutralidade religiosa do Estado e especialmente como pressuposto essencial da igualdade dos cidadãos perante o Estado, independentemente da sua posição religiosa
(Público, 27/6/2006)

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