quinta-feira, 1 de junho de 2006

Guerra às drogas

(...) Classicamente, quem defende a legalização não são comunistas dispostos a minar a família cristã, base da civilização ocidental, mas bem-comportados economistas neoliberais, como Milton Friedman, da insuspeita Escola de Chicago, e a revista britânica "The Economist". O raciocínio, em linhas muito gerais, é o de que a proibição leva a um sobrepreço que faz com que valha a pena para o traficante correr riscos. Por tratar-se de mercado altamente lucrativo e não-regulado, quadrilhas rivais disputam espaços à bala, e os que triunfam têm poder econômico para corromper policiais e outros agentes do Estado. Se os entorpecentes fossem legalizados e devidamente taxados, os traficantes se veriam privados dessa fonte tão fabulosa de dinheiro, o que tenderia a reduzir sua capacidade de gerar violência. Os recursos arrecadados pelo Fisco poderiam ser usados para compensar o alto custo social das drogas.
###(...) Embora concorde em princípio com a tese da legalização, vejo pelo menos dois pontos fracos no raciocínio que demandam uma reflexão mais detida. O primeiro diz respeito à questão da violência. Se as drogas ilícitas se tornassem legais da noite para o dia, dificilmente os grandes e pequenos bandidos que hoje se dedicam ao tráfico vestiriam uma gravata e se tornariam respeitáveis executivos do mundo corporativo. É mais verossímil imaginar que migrariam para outras atividades criminosas, eventualmente até mais violentas do que a comercialização de drogas, como o seqüestro. É muito mais "tranqüilo" _e demanda menos coerção_ vender um produto a quem deseja comprá-lo do que arrebatar e manter em cativeiro alguém que naturalmente resistirá a isso.

É possível que, no médio e longo prazos, a força das quadrilhas, privadas da renda fácil das drogas, decaia. É o que se deu nos EUA dos anos 30 após a revogação da Lei Seca. Não costumo, entretanto, subestimar a capacidade do homem de imaginar e implementar novos meios de despojar seus semelhantes.

O outro ponto que me preocupa é o impacto da legalização sobre a saúde pública. O que diferencia entorpecentes como a cocaína e a heroína de drogas como o álcool e o tabaco é o fato de que as primeiras são proibidas, e as segundas, permitidas. Enquanto a prevalência da dependência de cocaína é de menos de 1%, o alcoolismo afeta entre 10% e 15% da população. Apenas imaginar que o padrão de consumo das drogas hoje ilícitas possa aproximar-se do das legalizadas já deixa até o mais tolerante dos sanitaristas de cabelo em pé.

(...) Depois de eu ter exposto tantas dúvidas, o leitor pode legitimamente estar se perguntado se eu realmente sou a favor da legalização. Sim, defendo-a, mas faço-o menos por acreditar que tal passo possa realmente pôr um fim à violência gerada pelo tráfico ou que não tenha impacto deletério sobre a saúde pública e mais por razões filosóficas. Não acho que caiba ao Estado impedir que cidadãos juridicamente capazes façam mal a si mesmos. Se alguém, devidamente informado dos riscos das drogas, decide ainda assim usá-las, só podemos lamentar sua escolha, mas não vetá-la.

Os ônus que seu hábito pode gerar à sociedade, notadamente a utilização dos serviços sanitários, podem ser pelo menos parcialmente cobertos pelos impostos que incidiriam sobre esses produtos. Não é uma solução perfeita, mas nosso mundo tampouco o é.

Se acatamos a idéia de que cabe ao poder público impedir alguém de fazer mal a si mesmo, para ser coerentes, precisamos aceitar também que o Estado supervisione nossa dieta ou nos obrigue a fazer exercícios físicos. E o nome disso é totalitarismo.


(Guerra às drogas; Hélio Schwartsman; Folha de São Paulo 01/06/2006)

1 comentário :

Leo Azevedo disse...

"Os ônus que seu hábito pode gerar à sociedade, notadamente a utilização dos serviços sanitários, podem ser pelo menos parcialmente cobertos pelos impostos que incidiriam sobre esses produtos." Sim, poderiam ser cobertos pelos impostos. O grande problema é que vivemos em um país corrupto, onde já se cobram muitos impostos e sabe-se lá onde vai parar! Na verdade, todos sabemos. E tolos, continuamos votando nos mesmos, com o pensamento que "nada vai mudar, que se votarmos neste ou naquele vai dar na mesma..." É mais fácil viver alienado dentro de nossas casas, sentados em frente a tv assistindo a Globo. Para que agir, não é mesmo? "Se Deus quiser um dia este país muda!" Deus, Deus, Deus... O que Deus tem a ver com todo este circo? Vamos continuar esperando Godot até quando?