- «(...) No passado dia 6 de março a mulher qualquer dirigiu-se a um centro de emprego qualquer. Neste caso o do Conde de Redondo, em Lisboa. À sua espera estavam três ou quatro activistas com quem tinha urdido uma acção altamente subversiva: inscreverem-se no dito centro com o objectivo de passarem a fazer parte das estatísticas. Distribuir uns panfletos. Dar a conhecer um movimento de cidadãos recém-nascido visando a organização das pessoas sem emprego. Mas à sua espera estavam também alguns agentes da Polícia de Segurança Pública. Que prontamente perguntaram o que estavam ali a fazer aquelas pessoas quaisquer e quem se responsabilizava por aquela manifestação não autorizada. Pasmada, a mulher qualquer foi identificada enquanto tentava explicar que aquilo não era uma manifestação (como se tal não fosse evidente), mas um acto de inscrição simbólico. "Temos ordem para não os deixar entrar", disse um dos agentes. "Como assim, não nos deixar entrar? - questiona a mulher - Um cidadão não pode entrar num centro de emprego?"
- Visivelmente incomodado, o agente afasta-se e faz uma chamada. Regressa. Que afinal os cidadãos podem entrar, mas separados. E sem panfletos. A mulher obedece, embora contrariada. Os outros também. Distribuem os seus panfletos e vão-se embora. No dia 26 de abril, a mulher qualquer é constituida arguida na Divisão de Investigação Criminal da PSP de Lisboa. É-lhe imputado o crime de desobediência, por ter alegadamente violado o Decreto-Lei n.º 406/74 ao "convocar uma manifestação sem a devida autorização". É-lhe aplicada uma medida de coacção: Termo de Identidade e Residência. Não se pode ausentar de casa durante mais de 5 dias sem dar conhecimento às autoridades. O investigador encarregado do caso - que mobiliza recursos públicos, pagos com os impostos de todos os cidadãos quaisquer, incluíndo os dos desempregados não contemplados nas estatísticas - faz questão de informar a mulher qualquer que tem o direito de não prestar declarações já que o caso, à semelhança de outros anteriores, "é para arquivar".
- (...) Acontece que, como toda a gente já percebeu, a mulher qualquer sou eu mas podia ser qualquer outra. Acontece que esta mulher qualquer há algum tempo que se cansou de estar calada. Acontece que esta mulher cresceu a ouvir histórias do tempo da outra senhora mas nunca julgou vir a conhecê-la pessoalmente. Já tinha percebido que a liberdade de expressão era uma falácia, pois quem diz o que pensa não raras vezes paga cara a audácia. A esta mulher já custou 15 anos de precariedade. Acontece que esta mulher tem muito pouco a perder.
- Claro que haverá sempre quem diga que esta mulher é precária porque não tem iniciativa. Porque é desajustada. Porque não é empreendedora, proactiva. Porque não veste a camisola. Porque tirou um curso sem saída no mercado de trabalho. Porque não se adapta às novas realidades. E porque fala demais mas trabalho que é bom, tá quieto... (...)» (Myriam Zaluar)
As pitonisas já não são o que eram
Há 2 horas
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