sexta-feira, 4 de março de 2011

Subsidiar a alimentação e os transportes?

A actual subida do preço do petróleo e dos alimentos é uma excelente ocasião para desmontar uma ideia que é consensual* em todo o espectro político nacional, a ideia que se devem baixar artificialmente os preços dos bens que os pobres mais consomem. Falo do IVA reduzido para "bens essenciais", subsídios aos transportes públicos, descontos no IRS etc.

1. Este tipo de subsídios são invariavelmente mal direccionados. Os ricos gastam mais em alimentos do que os pobres, e os habitantes das zonas urbanas ricas usam mais os transportes públicos que os do interior pobre. Em termos absolutos, os subsídios apoiam mais quem não deveria ser apoiado (em termos relativos não, mas isso não contraria o essencial).
2. Eles levam a uma distorção artifical de preços, induzindo comportamentos indesejáveis. Alguém que poderia produzir alguns produtos na sua horta abaixo do preço normal, não o fará com esta distorção. O subsídio é assim um pagamento para que alguém não o use alternativas mais baratas. Alguém que esteja a escolher um local para arrendar casa poderá optar por um local mais longe do que seria desejável (tendo em conta o custo do transporte para a sociedade), porque lhe estamos a pagar para tal.
3. Este tipo de instrumentos acarretam sempre altos custos burocráticos e fraudes. Quanto mais complexo um sistema legal, mais difícil é de o controlar a sua aplicação e mais fácil é fugir a ele. Prova disso são os milhões gastos em consultores fiscais que nenhum valor contribuem para a sociedade para lá da ajuda à fuga aos impostos.
4. Muitas políticas ambientais são totalmente bloqueadas com o argumento de atingirem os pobres. Taxas de poluição, por exemplo na electricidade, são fortemente criticadas. Haverá muitos casos onde haveria alternativas mais amigas do ambiente que se tornariam viáveis, se o uso da electricidade pagasse o custo total que tem para a sociedade. Estamos assim a incentivar comportamentos prejudiciais ao ambiente.

O que defendo em termos de política desigualdade de rendimentos é simples e é baseado na ideia de que se deve actuar directamente nos rendimentos e não causar distorções posteriores nos preços. E há uma maneira simples de o fazer, transferir todos os custos que advêm das políticas mencionadas acimas (que são uns bons milhares de milhões) directamente para os pobres, por exemplo com IRS negativo para os escalões mais baixos. Quem recebesse o salário mínimo teria um bónus de 200€ por exemplo. Poderíamos assim eliminar os problemas acima, sem afectar o combate à desigualdade.

Tendo esta alternativa em mente, é curioso notar que quando a esquerda defende este tipo de subsídios, nem se apercebe que está a fazer algo que critica na direita. Falo das senhas de alimentação para os pobres, que a direita defensora da caridadezinha tanto gosta de promover. Ao defendermos uma actuação nos preços e não nos rendimentos, estamos a ter o mesmo comportamento assistencialista, ao arrogarmo-nos o direito de indicar o tipo de bens que as pessoas de baixos rendimentos devem consumir com o apoio estatal.

*Há apenas alguns economistas, particularmente o Miguel Madeira, que têm escrito esporadicamente sobre este assunto.

14 comentários :

Luís Lavoura disse...

Excelente post!!!

João Vasco disse...

100% de acordo!

JDC disse...

Post interessante. Este raciocínio leva-nos à hipótese de imposto único, em sede de IRS, não?

João Vasco disse...

JDC:

Isso não faz sentido algum.


Nada deste raciocínio obsta a que se cobrem externalidades, quando existem, que se cobrem taxas diferentes de acordo com o rendimento, ou impostos sobre a propriedade além do rendimento, etc...

Ricardo Alves disse...

Excelentes ideias!

JDC disse...

Repare, isto sou eu a extrapolar!

Tudo o que seja imposto que não "veja" o nível de rendimento de quem é alvo desse imposto irá sofrer do mesmo mal que refere no seu post! Era por aí que eu estava a ir...
Evidentemente que há particularidades que justificam uma agravante fiscal como a existência de produtos de luxo, por exemplo!

Força Força Camarada Vasco disse...

zonas urbanas de megalópoles como a grande Lisboa necessitam ou de linhas subsidiadas ou de operadores
privados que as rentabilizem

o passe Cascais Lisboa
ou Estoril Lisboa
ou Sintra Lisboa
é muito mais económico

do que o Pinhal Novo Lisboa ou
Setúbal-Lisboa ou ....há desfasamentos regionais sub-utilização da rede ferroviária

que além de irregular passa por trajectos que já não correspondem aos centros geográficos

se alguém não consome e poupa é penalizado

se consome em excesso e vai à falência é despenalizado

medidas avulsas num contexto caótico
pouco resolvem

Força Força Camarada Vasco disse...

200 euros extra por ano para quem recebe 5 ou 6000 são 3%

resolvem o quê?

João Vasco disse...

«Tudo o que seja imposto que não "veja" o nível de rendimento de quem é alvo desse imposto irá sofrer do mesmo mal que refere no seu post»

Na verdade parece-me que muitas vezes ocorre o contrário.
Tomemos o caso da gasolina. Um subsídio à gasolina que custe um dinheiro X ao estado tem o problema de ser menos eficaz em ajudar quem mais precisa do que dar esse dinheiro directamente às pessoas, tem o problema de estar a incentivar comportamentos indesejáveis, o problema ambiental, e o problema moral de estar a condicionar as escolhas das pessoas sem uma razão válida para isso.

O único problema que se manteria ao fazer o contrário - cobrar as externalidades devidas sob a forma de imposto - seria o do custo burocrático. De resto, essa medida em vez do custo X gera uma receita X, que até pode ser usada para diminuir outros impostos, ou ajudar directamente quem mais precisa. Em vez de fomentar comportamentos indesejáveis, fomenta os comportamentos mais eficientes, visto que as externalidades passam a ser interiorizadas, ajuda na resolução do problema ambiental, e em termos morais é de justiça que a externalidade seja interiorizada, independentemente do benefício económico que daí resulta.

Miguel Carvalho disse...

JDC,
repare que eu refiro o IRS negativo, logo a ideia da taxa única não pode decorrer do meu raciocínio.

De qualquer modo, há quem chame taxa única a um sistema de taxa fixa com posterior redistribuição. Isso é exactamente o que temos... mas com outro nome. Se é a isso que se refere, eu não considero sequer isso um sistema de taxa única..

Miguel Carvalho disse...

JDC,

«Tudo o que seja imposto que não "veja" o nível de rendimento de quem é alvo desse imposto irá sofrer do mesmo mal que refere no seu post»

Não sei se percebo, porque a ideia do post é a contrária. Critico os impostos (por exemplo o IVA) que têm considerações de redistribuição.

JDC disse...

Miguel Carvalho,

O IVA tem considerações de redistribuição mas é cego em relação a quem os compra. Um Porsche ou um Iate, por exemplo, são produtos de luxo, pelo que taxa-los irá afectar os mais ricos. Taxar diferentemente produtos que todos consomem, por outro lado (p.ex. leite) beneficia todos, inclusive os mais ricos.

Miguel Madeira disse...

"Um Porsche ou um Iate, por exemplo, são produtos de luxo, pelo que taxa-los irá afectar os mais ricos."

Não - irá afectar os mais ricos que consomem produtos de luxo (ou seja, o Pataconcio iria pagar mais impostos que o Patinhas, mesmo que o Patinhas seja mais rico que o Pataconcio; ou seja, se a ideia é redistribuir a riqueza, o melhor é mesmo um imposto sobre o rendimento e/ou a riqueza, em vez de estar a tentar adivinhar quem é mais rico em função do que compra).

Ricardo Alves disse...

Miguel Madeira,
como deves saber, alguns bens de luxo são remunerações «ocultas» - e portanto existem justamente para fugir à taxação dos rendimentos.