segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Se os recursos fossem ilimitados não precisaríamos da esquerda para nada

“Assumindo recursos infinitos, a economia continuará a crescer, em média, com mais ou menos crises pelo meio”, prevê candidamente o Ricardo Schiappa. “Quase todos nós tendemos a encarar a presente crise como uma breve pausa no processo de crescimento”, escreve naturalmente o João Pinto e Castro. Neste caso não me parece que seja isto que ele pensa, mas de qualquer maneira o que me incomoda é o “quase todos nós” que o João familiarmente escreve. “Quase todos nós” achamos que o crescimento não parará. Que é como quem diz que “quase todos nós” achamos que os recursos naturais são inesgotáveis. Estamos aqui a falar do setor primário: sem ele não há comida. Mas mesmo o setor terciário, o das “ideias”, das “oportunidades”, que contribuem para o crescimento económico e em teoria podem ser inesgotáveis, não o é na vida real.
Estes “quase todos nós” a que o João Pinto e Castro se refere somos nós, do hemisfério norte, que crescemos e vivemos habituados a uma economia do desperdício. Tal facto é particularmente notório nos EUA, mas também se verifica na Europa. Continuamos a conduzir estupidamente os nossos carros, mesmo em percursos de centenas de metros, mesmo em localidades bem servidas de transportes públicos, como se o petróleo fosse inesgotável e o espaço para circular e estacionar nas cidades fosse infinito (sem falar nos enormes prejuízos ecológicos, de que o aquecimento global é só um exemplo). Continuamos criminosamente a comer jaquinzinhos e petingas, sem nos preocuparmos se no futuro os nossos filhos poderão comer carapaus e sardinhas frescos, capturados no mar. E assim sucessivamente – os exemplos não são poucos.
Que as pessoas de direita pensem, erradamente, que os recursos são inesgotáveis, ainda compreendo. O que não consigo entender é que tal passe sequer pela cabeça de pessoas que se digam de esquerda. Marx, provavelmente o primeiro ecologista, apercebeu-se da finitude dos recursos, ou não teria escrito “O Capital”.

A esquerda é, acima de tudo, a redistribuição da riqueza de uma forma justa, consagrando a igualdade nas oportunidades e nos recursos básicos. Não aceito que haja quem coma banquetes todos os dias e haja quem passe fome. Não aceito que haja quem possua casas para arrendar e haja quem nem sequer possui uma casa própria onde morar.
A questão é: num mundo imaginário onde houvesse uma infinidade de recursos naturais, não me importaria nada que houvesse quem os explorasse arbitrariamente. Não me importaria nada que se comesse bacalhau indiscriminadamente se ele nunca se esgotasse. Esquecendo agora as questões ecológicas (nada menosprezáveis no mundo real), não me importaria nada que nesse tal mundo um meu vizinho tivesse um poço de petróleo se eu também pudesse ter o meu. Nesse mundo os preços do petróleo, do bacalhau e de tudo o resto baixariam drasticamente: os preços só são altos devido à escassez. As diferenças de rendimento seriam, aí sim, somente uma questão de iniciativa e de talento. Não digo que ainda assim não houvesse injustiças nem necessidade de alguma proteção social (seguramente menos do que no mundo real, onde os bens escasseiam), mas quem disse que a direita não tem preocupações sociais, desde que não ponham em causa a distribuição de riqueza?
Num mundo imáginário com infinidade de recursos, que é onde julgam viver muitos americanos (os EUA são um país muito grande e rico) e muitas pessoas de direita (que nunca passaram necessidades), não haveria necessidade de haver “esquerda”. É por isso que eu me espanto que haja pessoas de esquerda, que deveriam ter noção da escassez dos recursos, que não se preocupem com o equilíbrio do planeta ou com o desenvolvimento sustentável. E que continuem a exigir reformas antes dos 60 anos e maternidades e escolas em locais onde não vivem pessoas que as justifiquem.

11 comentários :

Anónimo disse...

"A esquerda é, acima de tudo, a redistribuição da riqueza de uma forma justa, consagrando a igualdade nas oportunidades e nos recursos básicos. Não aceito que haja quem coma banquetes todos os dias e haja quem passe fome. Não aceito que haja quem possua casas para arrendar e haja quem nem sequer possui uma casa própria onde morar."

Sem tirar nem por, mas temos uma esquerda, principalmente quem se diz de centro-esquerda e que actualmente faz parte da facção do PS que governa, que não é de esquerda nem terceira-via nem o que quer que seja... é uma deriva constante e um agregado de interesses de um aparelho pouco dotado para uma governação de esquerda corajosa e não nepótica e não despótica. Não podemos ficar presos por esta dita esquerda e seus seguidores. Portugal merecia um partido verdadeiramente social-democrata, talvez um outro partido. Este PS perde por talvez ser um partido de governância, chama muito lixo para as suas bases e jotas que depois acabam por ser cegos por esse próprio poder que lhes surge no horizonte.

Cumprimentos

Cláudio Carvalho
(claudio-carvalho.com)

no name disse...

"Se os recursos fossem ilimitados não precisaríamos da esquerda para nada"

não concordo nada! para todos os efeitos práticos, até meados/finais do século XX, o planeta comportou-se como uma fonte efectiva de recursos ilimitados. a economia global não parou de crescer (exponencialmente, depois da revolução industrial). e, contudo, as desigualdades sempre foram claras e notórias! a injustiça social global esteve presente em toda a história.

a sustentabilidade deve ser um pilar a defender e fazer compreender. mas mesmo que não fosse necessária, precisaríamos sempre da esquerda.

Miguel Carvalho disse...

1. Com todo o devido respeito, o primeiro ecologista foi Malthus. Que se focou exatamente no limite de recursos.

2. Parece-me que misturas temas totalmente diferentes, limite dos recursos vs distribuição dos recursos, para depois juntares a esquerda ds direita. Tal como o Ricardo já disse, a distribuição de recursos é um tema onde a esquerda e a direita discordam, independentemente dos recursos serem muitos, poucos, a crescer ou a diminuir.

3. Outra confusão na minha óptica: recursos naturais vs produto. Há muito que estão totalmente desligados. Se pensares no teu consumo, apenas uma pequena fração foi diretamente para recursos naturais - e mesmo dentro desses muitos são renováveis (produtos agrícolas).

4. O setor terciário, não é o das "ideias". É o salário da caixa do supermecado, do cozinheiro no restaurante. Não estou a ver porque haveria de existir um limite. Muito do nosso consumo é imaterial, e cada vez mais: jantar fora, cinema, ginásios, spas, etc.

Anónimo disse...

Filipe,

Dificilmente poderia ter escrito algo com mais coisas erradas.

À parte aquilo que o Ricardo Schiappa já indicou no comentário acima, não é certo que a economia necessite de crescer sempre e, mais, que esse crescimento tenha que ser feito à conta de recursos naturais. Há economia que depende apenas de existirem seres humanos e estes consomem recursos ilimitados para o mundo ocidental(tanto são que os destroiem para manter preços).

Na realidade, o facto de os recursos serem ilimitados, a capacidade de os extrair do meio-ambiente para o espaço económico continua a ser limitado. O facto de alguém, num horizonte temporal próximo poder chegar com uma transdução eficiente de energia solar em eléctrica não quer dizer que a humanidade atingiu o seu nirvana colectivo. Vai continuar a existir trocas de trabalho, mesmo que esse trabalho funcione apenas a glicose. E esse é outro dos erros de Marx que, no fundo, acertou muito pouca coisa.

Esquerda hoje em dia é um conceito absurdo aproveitado por gente que tenta tirar renda de decisões colectivas. Tal como direita, aliás.

Luís Lavoura disse...

"Não aceito que haja quem possua casas para arrendar e haja quem nem sequer possui uma casa própria onde morar."

Por quê?

Tem algum mal morar-se numa casa que não se possui? Deve ser-se obrigado a possuir a casa em que se mora? Tem alguma vantagem social isso?

Tem algum mal que, devido a contingências várias (por exemplo, uma herança, um casamento, etc), se venha a ficar de posse de uma casa da qual não se necessita e que, portanto, se arrenda?

Eu diria que, em termos de ordenamento citadino, tem toda a vantagem que os prédios pertençam a um proprietário único, que poe eles é inteiramente responsável e que arrenda as diversas frações, em vez de estarem divididos em condomínios dificilmente governáveis.

Filipe Moura disse...

Cláudio, obrigado pelo teu testemunho.

Luís, já tivemos esta discussão várias vezes... Para o tema em discussão ela é algo marginal.

"Quantum objects", queira desculpar mas eu não dou grande crédito a quem diz que esquerda é um conceito absurdo. Aliás, não dou crédito nenhum.

Ricardo, eu defini o que era para mim a esquerda. Que tal fazeres o mesmo? Senão não se percebe do que estás a falar.

Miguel:

1 - cada um com as suas referências. Eu prefiro um economista; tu preferes um monge (se eu bem me lembro) :) ;

2 - A minha questão é: será que a esquerda e a direita discordariam no caso de os recursos serem limitados? Eu acho que discordariam muito menos. Nesse mundo imaginário a "esquerda" seria a Paula Teixeira da Cruz ou a Zezinha Nogueira Pinto. De esquerda não teria nada. Não seria necessário.

3 e 4 - Eu falava na limitação de recursos naturais. Quais são os recursos naturais necessários aos teus exemplos? E não são finitos?

no name disse...

filipe, chutar para canto não vale. pouco me interessa a tua conclusão se partes de uma hipótese completamente errada. tu dizes que na hipótese de recursos infinitos a coeficiente de gini (mundial) baixaria automáticamente (ou então achas que a distribuição da renda é irrelevante para o debate esquerda/direita, o que faria de ti o primeiro, e aberrante, exemplo). bom, isto é pura e simplesmente falso, seja a nível teórico seja a nível experimental.

Filipe Moura disse...

Ricardo, quem está a chutar para canto és tu. Não me importa o que consideras falso nem sequer o que é esse coeficiente de que falas. Evidentemente, num mundo onde os recursos fossem infinitos, a distribuição de renda seria irrelevante (ou muito menos relevante que no mundo real, onde os recursos são finitos). Este é o meu ponto, e acho que é bem claro.

Ricardo Alves disse...

Filipe,
a questão de os recursos serem limitados ou ilimitados não é central. E parece-me ser esse o teu erro neste post. Os recursos podem ser ilimitados e a nossa capacidade de os extrair ser limitada. Ou podem ser limitados e podermos mudar facilmente de uma fonte primária para outra. E ainda pode acontecer, como diz o Miguel, que o nosso consumo seja imaterial (e é cada vez mais). Portanto, deixa a descansar em paz
o apocaliptismo que vem de Malthus e que em cada época histórica toma formas diferentes.

Esquerda vs. direita.

1) Não se é de esquerda. Está-se à esquerda. Estar à esquerda ou à direita é estar em oposição a outros grupos de pessoas ou conjuntos de ideias. Tem sempre a ver com uma situação momentânea, embora a situação já se arraste há mais de duzentos. Mas nem a esquerda é necessariamente estatista, nem a direita é necessariamente liberal.

2) Já houve esquerda democrática ou autoritária, colectivista ou individualista, estatista ou anarquista. E também há estas «cores» todas na direita. Se há alguma constante histórica na divisória entre esquerda e direita, é no binómio progresso/tradição. Quanto aos valores, encontras na esquerda até ao final do século 20 uma preocupação com a igualdade a que a direita é indiferente. E, daí sim, vêm as posturas diferentes quanto ao redistributivismo.

Ricardo Alves disse...

Só mais uma nota.

«Não aceito que haja quem possua casas para arrendar e haja quem nem sequer possui uma casa própria onde morar.»

Não ter casa pode ou não ser um problema. Há quem prefira arrendar, e está nesse direito. O problema é haver quem queira casa e não possa ter, mas para isso há habitação municipal...

Filipe Moura disse...

Ricardo A, a questão dos recursos serem limitados para mim é centralíssima. Como te disse, em última instância é a única razão para se ser de esquerda. Não concordo com essa tua visão pós modernista do "estar à esquerda".

Como materialista dialético, não percebo o "consumo imaterial" do Miguel. O que é "consumo imaterial"? Ir ao cinema? Não são precisos meios materiais para fazer um filme? Para o exibir na sala?

Finalmente, respondendo à tua nota. Não vejo a diferença entre a "liberdade" de não ter casa própria e a "liberdade" de poder escolher ser escravo. Não vejo a diferença entre esse teu argumento e os do Pedro Arroja ou do João Miranda. Chegará o dia em que as pessoas pensarão como eu (como chegou para a escravatura, creio).