terça-feira, 20 de outubro de 2009

Saramago tem razão

Andam-se a acender novas fogueiras (desta vez, espera-se que «simbólicas») para queimar o ateu Saramago. O seu delito? Ter dito, alto e bom som, que a Bíblia é «um manual de maus costumes», que «está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas» e que «sem a Bíblia seríamos outras pessoas. Provavelmente melhores».

Surpreendentemente, até alguma esquerda o critica, talvez por ter acreditado na versão do cristianismo que alguns «católicos progressistas» lhe impingiram. Deveriam saber que «catolicismo progressista» é um oxímoro, como o são «comunismo de mercado» ou «fascismo democrático». Não se pode ser livre e cultuar a obediência. Não se pode ser pela igualdade de direitos e promover a desigualdade.

Acontece que Saramago tem razão. A Bíblia tem dois livritos, o Levítico e o Deuteronómio, de onde se extrai um código penal que mesmo há dois mil anos era bárbaro e desumano. Nele se defende a pena de morte para tudo o que os progressistas, penso eu, defendem poder ser feito livremente, do adultério à blasfémia, passando pela homossexualidade. Será que castigar desta forma a liberdade individual é um «bom costume»? É isso que queremos que as crianças aprendam? Onde fica o «progressismo»?

Saramago entendeu escrever sobre o mito de Caim. Não vou criticá-lo, mas tenho pena que não se tenha dedicado àquele que, na minha modesta opinião de ateu, é o mais atroz e mais relevante dos mitos bíblicos: o de Abraão. Aí, vemos um pai que conduz o próprio filho ao altar para ser sacrificado, por mera ordem de «Deus». Só não há infanticídio porque «Deus» decide suspender o teste. Porque de um teste se tratava e Abraão passou no teste, é recompensado com uma «descendência numerosa». O sentido do episódio é cristalino: «Deus» exige obediência, e recompensa quem obedece ao ponto de aceitar matar os próprios filhos. A essência da religião abraâmica está aqui, na obediência incondicional e acrítica. Não admira que o episódio de Abraão seja tão querido do Islão.

Os candidatos a novos inquisidores têm duas estratégias. A primeira: dizer-nos, como sempre, que o essencial é «o amor». O que é treta. Nada no Novo Testamento revela uma insistência especial no «amor». Em Lucas (17,2), Cristo chega a defender que quem atrapalhe o caminho dos seus discípulos seja atirado ao mar com uma pedra atada ao pescoço (será isto «amor»?). E o episódio central do Novo Testamento, o sacrifício de Jesus Cristo, não é sobre o amor: é sobre a obediência. Pois em Marcos (14,36), prevendo a sua prisão e condenação à morte, Cristo diz: «Pai, todas as coisas te são possíveis; afasta de mim este cálice; não seja, porém, o que eu quero, mas o que tu queres». Ou seja, depois de nos dar como modelo um pai que mata o seu filho, no episódio de Abraão, quando chegamos ao fim do conjunto de mitos reunidos na Bíblia, temos um filho que aceita que o pai não o salve da morte. Há quem ache isto bonito. Eu acho horrendo. Como acho moralmente criticável que alguém morra pelos erros e crimes dos outros. Cada um de nós deve assumir a responsabilidade pelos seus erros e crimes, e não transferir a responsabilidade para outrém. Enfim, somos melhores pessoas quando aceitamos a responsabilidade dos nossos actos, não quando fugimos à dita responsabilidade. Digo eu, que sou ateu.

A outra estratégia dos herdeiros dos inquisidores é discutir «interpretações». Dizer-nos que as defesas da morte são «simbólicas», e que as partes do «amor» (ou do «perdão») são literais. Ou que o sentido real é o contrário do que lá está escrito. Quem tiver pachorra que entre nesse debate, no qual não abunda a honestidade intelectual. Eu não a tenho. A pachorra.

11 comentários :

João Vasco disse...

Ricardo,

as observações que fazes sobre o episódio de Abraão, tanto quanto soube, também fazem parte do livro do Saramago.

Como o Cain não morre, ele anda para aí a vaguear e acompanha e participa numa série de episódios Bíblicos.

Sobre esse assunto (Abraão e a submissão aos poderosos no lugar da moralidade) ver:

http://www.youtube.com/watch?v=YqC73omSk4o&feature=player_embedded

Fernando Torres disse...

Por coincidência falei desse episódio no meu post intitulado GÉNESIS 22, 1-19

dorean paxorales disse...

pois, pois.
e então? queima-se a bíblia ou não?

Ricardo Alves disse...

Queima tu, se quiseres.
Eu uso gás da companhia. ;)

Lúcio Ferro disse...

E as figueiras, não esquecer as pobres das figueiras que Jesus fulmina com um raio por não darem fruto fora de época...

dorean paxorales disse...

esta história faz lembrar-me um comentário algures aos projectos de cloud storage por parte de um maluco, convencido que tudo não passava de um plano dos powers-to-be para fazer desaparecer livros com um click.

Ricardo Alves disse...

Lúcio Ferro,
não esquecer o que JC reserva para quem não o segue:

«Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem.» (João, 15,6)

É «amor»?

Lúcio Ferro disse...

Sim Ricardo, mas eu isso até consigo compreender, afinal o tipo era humano, com a mania das grandezas, mas humano, e é humano ficarmos quilhados com quem não concorda com as nossas mais profundas convicções, i.e., de que o nosso JC seria filho de Deus.

Agora, o caso da Figueira é muito diferente disso: vejamos: a Figueira não tinha culpa de nada, ela simplesmente e como é óbvio, não dava fruto fora de época. J.C., está escrito no livro, passou-se com esse facto absolutamente natural e fulminou a árvore com um raio! Que dizer disto? Hum? Que mal lhe tinha feito a figueira? Nenhum, a única conclusão a retirar é a de que JC não batia bem da pinha, essa é que é essa, e desafio qualquer crente a interpretar o episódio de outra forma, se for capaz, mas, lá está, eles são muito selectivos na leitura do respectivo pasquim.

Ricardo Alves disse...

Dorean,
tinhas razão. Há mesmo quem queira queimar a Bíblia:

http://www.publico.clix.pt/Cultura/igreja-baptista-planeia-queimar-livros-e-musica-no-dia-das-bruxas_1405451

Nuno Gaspar disse...

"Pachorra". Você disse a palavra, Ricardo. Já não há pachorra para discutir com quem não mostra ter outra procupação na vida do que as opções de vida pessoais dos outros.
Este filme é velho. Só mudou de sala.

João Vasco disse...

«Já não há pachorra para discutir com quem não mostra ter outra procupação na vida do que as opções de vida pessoais dos outros.»

Pelos visto há...