terça-feira, 27 de outubro de 2009

A raiz do problema

No Diário de Notícias, e talvez sem se aperceber, João Miguel Tavares (JMT) vai à raiz do problema levantado por Saramago. E a raiz do problema é esta: «só quem acredita que a Bíblia tem alguma relação com a palavra de Deus está habilitado para sobre ela fazer considerações éticas». JMT, note-se, não põe em causa a liberdade de expressão: o que ele reprova é que quem não tem fé se pronuncie sobre a Bíblia. Na sua opinião, «um ateu (...) tem de olhar para a Bíblia como olha para outro livro qualquer: estética e nada mais». Mais concretamente: «faz tanto sentido o ateu Saramago dizer que "a Bíblia é um manual de maus costumes" como faria dizer que "as obras de Shakespeare são um catálogo de barbaridades"».
Acontece que eu desconfio (e com boas razões) que quando alguém diz a JMT que as obras de Shakespeare retratam o pior da natureza humana, ele concorda e encolhe os ombros. Pelo contrário, quando  Saramago disse o mesmo da Bíblia, ele deu um pulo e foi escrever um artigo de jornal. É justamente por a Bíblia ser a «palavra de Deus» para tanta gente que não a podemos tratar como as obras completas de Shakespeare. Ninguém se apoiou nas obras de Shakespeare para defender a Inquisição, a escravatura, ou a ditadura de Salazar. Ninguém fica indignado por se dizer que há episódios hediondos na dramaturgia shakespeareana. Pelo contrário, muita gente utilizou (e utiliza) a Bíblia para transformar a «palavra» (más palavras) em «acção» (más acções).
Como ateus, é evidente que sabemos que a Bíblia é literatura (geralmente da má, mas essa é apenas a minha opinião «estética»). Mas enquanto tanta gente a considerar como um livro «especial», não podemos tratá-la como se fosse mera literatura inconsequente.
[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

7 comentários :

Anónimo disse...

Muito bem.

Nuno Gaspar disse...

"Pelo contrário, muita gente utilizou (e utiliza) a Bíblia para transformar a «palavra» (más palavras) em «acção» (más acções)."

Não seja parvo, Ricardo.
Haverá gente que utiliza a Bíbia para fazer mal outros que utilizam para fazer bem. Tal como há gente que não a utiliza e também pratica o mal ou o bem. Esse simplismo preconceituoso é que está na origem de muito sofrimento passado e presente. Agora que parecia que a humanidade se desenvencilhava dele, você e os seus colegas por um lado e os fanáticos religiosos, praticamente simétricos, por outro, vêm mostrar, afinal, que evoluimos um bocado mas não assim tanto.

Ricardo Alves disse...

Nuno,
eu disse «muita gente». Não percebeu?

Nuno Gaspar disse...

Não. Qual a diferença?

Ricardo Alves disse...

«Muita» e «toda».

Nuno Gaspar disse...

Muitos portugueses vivem na prisão. Logo, os portugueses são criminosos. Não são todos mas são muitos.
Vai longe com essa lógica, Ricardo.

Ricardo Alves disse...

A «lógica» é sua.