sábado, 24 de outubro de 2009

Ateísmo e anti-teísmo

No seu artigo de hoje no Diário de Notícias, o padre católico Anselmo Borges distingue o Caim de Saramago das declarações do escritor sobre a Bíblia. Gostou do livro, classifica as declarações como «ignorância arrogante». E afirma que «perante o Deus de Saramago, só haveria uma atitude digna para o crente: ser ateu».

Já li e ouvi muitos católicos dizerem isto. Acontece que estão a incorrer numa confusão. Não é por fazer um juízo de valor (ético) sobre o Deus da Bíblia que eu sou ateu. É por fazer um juízo de facto (científico) sobre as alegações da existência de «Deus», sobre a origem do universo, sobre a «vida depois da morte» e sobre a «ressurreição», que sou ateu. E comigo muitos outros, que fundamentam (quando necessário) o seu ateísmo em Bertrand Russell, Carl Sagan ou Richard Dawkins, e na ciência em geral.  Somos ateus porque temos a certeza quase total de que aquele «Deus» não pode existir no universo que conhecemos. A questão de saber se o «Deus» da Bíblia e das suas múltiplas interpretações é justo, cruel ou tirânico, é uma questão separada, e que não nos torna mais ou menos ateus.

Efectivamente, eu rejeito que o «Deus» da Bíblia possa ser considerado justo, amoroso ou misericordioso. Mas isso não tem nada a ver com a questão da existência. É por saber (com um grau de certeza maior do que saber se vai chover amanhã) que não existe, que sou ateu. Se eu estivesse convencido da existência de «Deus», a questão seria outra. Em primeiro lugar, não seria ateu. Mas, por rejeitar as suas crueldades e ensinamentos imorais, não lhe prestaria culto e revoltar-me-ia contra os seus actos. Seria, então, anti-teísta. O que é outra coisa.

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

24 comentários :

carla disse...

http://omj.no.sapo.pt/obras/Fernando_Pessoa_O_Guardador_de_Rebanhos_de_Alberto_Caeiro.pdf

Deixo aqui alguns versos deliciosos de Alberto Caeiro, do seu "O Guardador de Rebanhos":

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura

Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.

Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
«Se é que ele as criou, do que duvido» -
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

carla disse...

(continua)

...


Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

...

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: 
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.

rui disse...

bom post, é isso mesmo.

Nuno Gaspar disse...

"Se eu estivesse convencido da existência de «Deus», a questão seria outra."

Ó Ricardo

Você já reparou que se houvesse razões que o pudessem convencer da existência de Deus, da maneira totalmente objectiva que pretende, era você que não poderia existir como homem livre?

rui disse...

era lixado, não era totalmente livre, mas pelo menos não me chateavam com pseudo dilemas destes. Assim, posso não ser totalmente livre por outras razões (teria de se acordar no que cada um entende por "totalmente" livre), mas pelo menos sou totalmente livre recusar este tipo de jogos de palavras. caso contrário, de que serve a alguém considerar-se livre de acreditar ou não, se de facto o não é, porque o considerar-se livre de acreditar é apenas um "pro forma", já que na realidade apenas julga que fortalece a sua crença?
Achar-se "totalmente livre" não é, desta forma, uma falsa questão e usar esse argumento, uma forma de hipocrisia?

carla disse...

O tema da liberdade e religião é polémico. Algo que me parece um atentado contra a liberdade individual, e grave, é o que se faz a Igreja com o tema do baptismo de menores.

Introduzir um menor numa religião, seja A ou B, deveria ser proibido. Até porque desvincular-se dessa religião mais tarde( e refiro-me à Católica)não é fácil, é um mar de burocracias.

É uma forma de engrossar a estatistica da Igreja, que atenta contra a liberdade do individuo em escolher a sua religião.

Ricardo Alves disse...

«se houvesse razões que o pudessem convencer da existência de Deus, da maneira totalmente objectiva que pretende, era você que não poderia existir como homem livre?»

Sim. É também por isso que acho que alguma anti-religiosidade (tolerante) pode ter alguma utilidade social.

Ricardo Alves disse...

Carla,
os pais têm o direito de transmitir a sua religião aos filhos. Dito isto, acho que o baptismo de menores não deveria ser olhado com tanta complacência como geralmente o é. E tenho respeito pelas igrejas que privilegiam o baptismo de adultos.

Ricardo Alves disse...

Ah, e obrigado pelo «Guardador de rebanhos». ;)

NG disse...

"É também por isso que acho que alguma anti-religiosidade (tolerante) pode ter alguma utilidade social."

Ó Ricardo,

Como é que se pode ser anti-convicção pessoal de alguém e ser tolerante?

carla disse...

Ricardo,

Claro que os pais têm o direito de transmitir a sua religião aos filhos.

Mas uma coisa diferente é incorporá-los "burocraticamente" numa estrutura religiosa. A isso os pais não deveriam ter o direito. Porque estão a acorrentar uma pessoa a uma religião, mesmo antes que essa pessoa saiba falar.

Claro que quando o fazem, é com boa intenção. Mas não contemplam a possibilidade de essa pessoa, mais tarde, não concordar com essa religião ou preferir seguir uma outra (ou nenhuma).

O ideal seria cada um poder optar por ser ou não ser baptizado.
Cada familia dá a educação religiosa que quer ou que pode, mas no final a escolha deveria ser do individuo.

Existem pessoas incomodadas com isto: vi uma reportagem na Catalunha sobre uns jovens homossexuais que, revoltados com a posição da Igreja (em relação ao casamento, adopção) estavam a tratar dos trâmites para se desvincularem da Igreja Católica, e queixavam-se que não era nada fácil... apesar de terem sido baptizados em crianças, sem poder de opção.

A mim parece-me uma questão importante. Mas nunca ouvi falar dela, nos meios de comunicação em Portugal.

Quanto ao Guardador de Rebanhos de Fernando Pessoa, é uma obra deliciosa que vale a pena ler na integra. Queria colocar esse comentario no teu post "um clássico da anti-religiosidade portuguesa", como um exemplo mais, mas equivoquei-me e acabou por vir para aqui.

Ricardo Alves disse...

Carla,
é evidente que isso não se deveria fazer.

Quanto à apostasia formal: no ateismo.net chegou a estar um formulário de desbaptização. E sei de várias pessoas que já a pediram.

E sim, conheço o «Guardador de Rebanhos» todo. Publicado na 1ª República, até era suave na anti-religiosidade que exprimia. Começo a pensar que hoje até Alberto Caeiro seria um escândalo.

Ricardo Alves disse...

Nuno,
pode ser-se tolerante se não se discriminar essa pessoa, e nem sequer se mudar a relação com ela devido à sua convicção. Eu não concordo com a convicção do Nuno, e não o trato de uma forma essencialmente diferente de outras pessoas com quem me cruzo em caixas de comentários e que nem sequer conheço pessoalmente.

Nuno Gaspar disse...

Ricardo,
Uma coisa é não concordar outra bem diferente é ser anti- e manifestar isso (por enquanto) sob a forma de escárnio e zombaria contínuos.

rui disse...

os prolemas com que vocês se debatem... isso não é dar demasiada importância ao caso?
o que é que me interessa a mim o facto de ter sido baptizado, catequizado, ter sido um católico praticante até aos dezasseis ou dezassete anos depois de ter atravessado fases de grande crença até por volta dos doze ou treze anos (na realidade até me passar pelas mãos o livro do BR)? agora tenho de me descatolicizar? bah!
qual é o interesse disto? um gajo farta-se vai à sua vida e acabou. nem interessa andar a discutir.
talvez me escape alguma coisa mas eu julgo que vivo num país onde não sofro qualquer constrangimento pelo facto de ser ateu. Nunca sofri, até agora, na minha vida. há dois anos uma amiga minha faleceu e a familia organizou um serviço religioso católico. a maioria dos presentes eram ateus,ou agnósticos ou outra qualquer variante e o padre sabia disso e disse-o sem qualquer acrimónia. tratou-se apenas de juntar um grupo de pessoas que sentiram a perda dolorosa daquela pessoa maravilhosa. o que interessa o formalismo do caso? Rien! o âmago da questão nada tinha a ver com a questão religiosa. não vos parece bizarro que uma pessoa para se "libertar" precise de cerimónias formais de apostasia, ou lá o que seja? precisa de..." limpar" o seu espírito, ou lá o que seja? desculpem insistir, não voltarei a este tema, mas a necessiade de manter esta "tensão" com a igreja que eu vejo em certas pessoas faz-me uma grande confusão e não me parece saudável para o ateísmo.

carla disse...

Rui,

Pode ser ateu, mas ao ter sido baptizado em criança, você está incluido nos números que engrossam a estatistica da Igreja.

E a grosso modo, sao esses números que conferem poder à Igreja.

Qual é o problema? Para muitas pessoas na mesma situaçao que o Rui, nenhum. Mas para algumas outras pessoas, pode nao ser assim tao simples. Puxo um exemplo fácil: o de homossexuais que têm no seio da própria Igreja a maior resistência a questoes como casamento, adopçao, etc.

Quanto ao teor da discussao, eu creio que abordar este tipo de temas é sempre saudável, tanto para o ateísmo como para a própria religiao.

Nao se trata de tentar manter tensao com a Igreja. Simplesmente de apontar que, no que diz respeito ao bautismo de menores, atenta-se contra a liberdade individual da criança (ou do futuro adulto)em escolher a própria religiao.

Quanto a sofrer constrangimento por ser ateu, ou ser ou nao ser baptizado... no meu caso concreto tb nunca sofri. Mas conheço uma criança que por nao ser baptizada, lhe foi negado a entrada num grupo de Escuteiros. É um episódio aparentemente de importancia menor, mas uma criança de 9 anos nao aceita bem esta segregaçao ( nem a merece).

Apesar de ateia, respeito as religioes. Mas gostaria que algumas religioes respeitassem mais as pessoas.

rui disse...

alguém que ache que os seus direitos "temporais" são limitados pela Igreja Católica precisa de fazer um "exame de consciência" sério acerca da natureza da sua "dissidência".
parece-me um bocadinho estranho que se pretenda com alguma seriedade que o baptismo seja um "atentado aos direitos" de um bébé. poderia dizer-se o mesmo de o vacinarem, porem-no a dormir com uma chucha, exporem-no à televisão, etc... é uma coisa que os pais que o fazem, fazem por bem, que lhes dá satisfação e que não deixa nenhuma marca indelével em nenhum lugar da criança. é uma coisa que as pessoas fazem com amor, e o que verdadeiramente interessa não é a treta do ateismo e do catolicismo, que são, felizmente, no nosso país e na nossa época, guerras do alecrim e manjerona, o que interessa é que as pessoas vivam com amor e com prazer. o papel do ateismo é, a meu ver, esse, o de sermos indulgentes e tolerantes para com a perspectiva religiosa, tolerantes para com o facto de a crença fazer algumas pessoas mais felizes e sentirem-se mais completas, levarmos a vida na boa onda, não é andarmos aqui agastados a catar debaixo das pedras "abusos" e problemas da igreja, só porque a igreja existe e existirá e nada podemos fazer, felizmente, para a liquidar de repente. por isso, esta diatribe do saramago, pelo menos tal como me chegou, numa frase no cabeçalho do público, (porque francamente não sou um leitor devoto do saramago e ainda não me dei ao trabalho de ler o livro porque ando a ler outras coisas que me interessam mais, é a questão das leis da oferta e da procura e do excesso de oferta de produtos culturais que relativiza todas estas questões), por muito "livre" que seja e por muito "direito" que ele tenha a fazê-la me parece mais uma provocaçãozinha senil e reducionista do que uma crítica séria e vontade de diálogo que se esperaria de um ateu convicto e dialogante, na linha aliás, de outras declarações intempestivas a propósito da democracia , por exemplo, que o senhor vem proferindo. e digo isto sem que eu perceba patavina da bíblia, sem que eu tenha lido ou pretenda ler sistematicamente a bíblia, sem que tenha alguma ponta de interesse pela bíblia que para mim é de leitura perfeitamente incompreensível e desinteressante.
Quanto ao jovem escuteiro, julgo que o que há a fazer é explicar á criança as realidades da vida e que não podemos ter tudo aquilo que ambicionamos. Não vejo porque é que uma organização privada de génese e inspiração conservadora há-de ser obrigada a admitir pessoas que não cumprem os requisitos que os seus estatutos definem. O problema está em que os pais acham laracha a "parte" do cariz conservador dos escuteiros mas não querem engolir toda a pastilha, mas os escuteiros não têm culpa disso, têm direito a ser livres de estabelecer as suas regrazinhas assim como eu posso criar um grupo de jantaradas onde digo que só admito ateus. A alternativa é procurar um outro grupo, que proporcione experiências semelhantes, mas que não tenha essas exigências particulares. Quanto aos homossexuais católicos, beats me... eles é que são católicos e homossexuais, o problema deles COMO CATÓLICOS não me diz respeito, é entre eles e a Igreja. Fará sentido que um ateu vá agora ditar à Igreja a sua posição face à homossexualidade, mesmo admitindo a imensa hipocrisia da hierarquia católica a este e outros respeitos? Se os homossexuais católicos se sentirem discriminados em serviços públicos por serem homossexuais ou homossexuais católicos, aí sim, temos caso, venham falar comigo... quanto ao resto, esse problema, tal como o celibato dos padres e a possibilidade de as mulheres serem padres, deixa-me absolutamente frio e tranquilo.

carla disse...

Rui,

O baptismo não é um atentado contra TODOS os direitos de uma criança. É um atentado contra O direito da criança escolher livremente a sua religião.

( não quer dizer que a criança baptizada, mais tarde quando adulta, não possa escolher outra ideologia religiosa: o que aconteceu é que existiu uma tentativa de condicionar essa escolha, incorporando-a precocemente na instituição)

Claro que os pais o fazem com a melhor das intenções, isso está claro. Mas será que alguma vez colocaram a questão nestes termos? Porque não, também com amor e boa intenção, esperar uns anos e deixar que o adolescente faça a sua opção? Qual é a pressa?

Uma criança é da responsabilidade dos pais, mas não é propriedade dos pais.

Concordo que o que realmente interessa é que as pessoas vivam com amor e com prazer.

Mas não concordo com a tua visão em que
o papel do ateismo é o "de sermos indulgentes e tolerantes para com a perspectiva religiosa".

Eu acho que o ateísmo (ao contrário de algumas religiões) não tem nenhum papel, nem nenhuma função:é simplesmente uma forma de ver alguns aspectos do mundo que nos rodeia de modo diferente aos que acreditam num deus.

Considero que os ateus, de um modo geral, são bem mais compreensivos
para com o facto de a crença fazer muitas pessoas mais felizes, do que muitos crentes o são em respeito às posições dos ateus e agnósticos.

Posso dar um exemplo, em relação ao respeito por cerimónias religiosas... no meu caso pessoal, assisto a várias cerimónias religiosas relacionadas com acontecimentos felizes de amigos. Também a algumas relacionadas com acontecimentos infelizes... e em todas, depois de largas missas, conservo as minhas opiniões, realmente o que interessa é que as pessoas sejam felizes e escolham uma forma de celebrar acontecimentos ou de prestar homenagem que as satisfaça ou as reconforte.

Já o facto de se optar por não se realizar uma cerimónia religiosa num acontecimento funebre, é visto por alguns cristãos como algo escandaloso e até indigno, sentindo-se alguns destes no direito de manifestarem a sua opinião de forma desadequada.

Quanto ao escuteiro frustrado... acabou por sair karateka. :) Lei das compensações! Mas continuo a pensar que o grupo deveria ser mais aberto,sem pré-requisitos, em nome do bom cristianismo. Porque lidam com crianças, e deveriam ser os prmeiros a ensinar a não excluir. Mas é o que há!

Quanto ao exemplo dos casais homossexuais,não se trata de um ateu vir ditar nada à igreja: trata-se de exemplificar o quão inconveniente pode ser para alguns adultos terem sido baptizados na infância. E fazer notar que se lhes tivesse sido dada a opção, estas pessoas teriam escolhido não ser baptizadas.

Posso dar outro exemplo: o de uma mulher que sinta que a Igreja não tem uma atitude correcta com respeito às mulheres em geral, em temas tão variados como aborto, contracepção, papel social, papel dentro da própria igreja, etc.

Não se tratam de argumentos tirados debaixo das pedras para tentar acabar com a igreja.

Eu diria antes que existem é muitas pedras colocadas em cima desta questão.

Ricardo Alves disse...

Rui,
a ICAR conta o número de baptizados como um argumento a favor do seu «peso social». Nunca os ouviu dizer que 99% dos portugueses são baptizados como argumento para falarem em nome de todos? Quem se desbaptiza tira-lhes o tapete nesse argumento.

E quanto ao facto de não ordenarem mulheres: sente-se mesmo bem com um país em que uma das instituições mais poderosas é abertamente misógina (e autoritária, já agora)? Não sente que isso tem consequências sociais, quanto ao próprio papel das mulheres, que não são das melhores?

Cumps.

rui disse...

Ricardo, parece-me que o teu post, já o escrevi acima, põem os pontos nos ii na questão. tudo o que se acrescente arrisca-se a ser supérfluo e até contraproducente. Por exemplo, "tirar tapetes" à Igreja, é, a meu ver, absolutamente irrelevante. O que eu quero é que a Igreja não me chateie. Para isso basta-me que não me obriguem a fazer nada e quanto a mim isso está amplamente defendido na nossa constituição e no nosso estado de direito. Não querendo escandalizar, acho que até está presente na própria atitude da Igreja e na sua hierarquia, que nos limites de um relativo conservadorismo e inevitável anacronismo tem procurado defender as suas posições dentro de limites que me parecem razoáveis.
De resto até levo familiares a Fátima cumprir promessas só pelo passeio.
Que a Igreja saque umas massas aos contribuintes... não é pior ou melhor do que muitas organizações laicas, anda meio mundo "ao papel". Deixemos a Igreja na sua vidinha, regurgitando para os jornais que a população é 150% católica, a quem é que isso diz respeito? A que se deveu o decréscimo de 60% nos casamentos católicos nos últimos anos? A nada de organizado, é uma reacção "natural" das pessoas à evolução das coisas, não foram precisos pregadores de outras cores para isso acontecer.
Quanto à misoginia da Igreja, desde que, tal como com o autoritarismo, diga apenas respeito ao "interior" da Igreja, estou-me pura e simplesmente nas tintas . O que é que o pessoal quer? Como tu muito bem explicaste, não somos ateus por "detalhes" da Igreja, ou da hierarquia, ou que se queira.
Tanto me dá que haja mulheres padres ou não,ou que haja elefantes a fazer habilidades na Missa. Tanto se me dá que o Padre X seja "mau" para o Padre "Y" no concerne aos assuntos privados da Igreja. Se cometer um crime, seja facada seja pedofilia, os padres estão sujeitos às leis dos homens. O que se me dá é que há assuntos que pura e simplesmente me não dizem respeito. Salvo, evidentemente no caso de a Igreja promover acções efectivamente lesivas das pessoas. Mas espero que ninguém me venha dizer que a limitação à liberdade das candidatas a padres é, "objectivamente", idêntico àquela prática de excisão do clitóris praticada noutras sociedades. Que há tarados capazes de fazerem esta comparação, não tenho dúvidas, acredito é que não neste blog. Se as tais mulheres acham a Igreja misógina, olhem, começem a puxar pelo bestuntinho e tirem as suas conclusões, que me interessa a mim defender uma reinvindicação cuja satisfação redundará em mais fervor religioso da parte das novas padres?
Isto prende-se com um outro aspecto: qual é o problema de as pessoas formarem organizações privadas com regras retrógradas que apenas pretendem (e podem)aplicar a si próprias e aos que com elas convivem? Um gajo agora não pode, pura e simplesmente ser reaccionário? Se eu sou suficientemente idiota para criar um clube de bridge onde não entrem mulheres (ou gordos, ou carecas, ou muçulmanos ou ateus) o que se pode pensar de um indivíduo com a caracteristica discriminada que de entre todos os clubes de bridge que há ou podem ser criados na cidade, quer precisamente ser aceite naquele cujos sócios não apenas aceitam passivamente mas efectivamente subscrevem a dita norma discriminatória? Eete gajo é ou estúpido ou um chato, o que vem dar ao mesmo. Se as tais candidatas a padres pensassem no caso com humor seria apropriada a célebre citação do Marx (Groucho).

carla disse...

Rui,

Gosto de ler os teus comentários, transparecem humanismo e uma onda "vive e deixa viver" muito simpática.

Permite-me, no entanto,discordar contigo num pequeno aspecto quando dizes que

" O que eu quero é que a Igreja não me chateie. Para isso basta-me que não me obriguem a fazer nada e quanto a mim isso está amplamente defendido na nossa constituição e no nosso estado de direito."

Eu também quero que a Igreja não me chateie, o problema é que acaba por me chatear.

E em que aspectos? Em vários aspectos, como por exemplo a eutanásia e aborto. Em assuntos relacionados com a saúde pública ( como a prevenção de doenças sexualmente transmissiveis), legalização da prostituição e outros temas.

A igreja tem força, a tal ponto que influencia a criação ou modificação de legislação, e isso acaba por nos influenciar a todos, na nossoas vidas felizmente tranquilas.

Um exemplo: o tema aborto. Tal como a Igreja o coloca, parece que se trata de infanticidio. No entanto, o aborto é uma realidade, e infelizmente uma necessidade para as mulheres que o praticam.

Proibido ou não, continuará sempre a ser realizado. Portanto, o que se discute realmente é se queremos que as mulheres sejam devidamente assistidas neste acto médico ou não.

A forma distorcida como a Igreja manipula a discussão acerca do tema tem provocado atrasos na legislação do assunto. Com consequências reais na vida de várias pessoas.

Dou um exemplo real,de um caso que conheci, passado há uns anos: uma estudante universitaria engravidou acidentalmente, e na altura não podia ter o filho. Optou por abortar clandestinamente. Acontece que era de grupo sanguíneo ORh-, e no aborto contactou com o sangue fetal Rh+, desenvolvendo anticorpos contra este grupo sanguíneo. Como foi feito na clandestinidade, foi negligenciada a administração do tratamento necessário para estes casos,para evitar o desenvolvimento de anticorpos contra Rh+. O triste resultado foi que anos mais tarde, quando teve o seu 1º filho programado (Rh+), este desenvolveu um patologia gravíssima que quase o levou à morte.

Se o aborto inicial tivesse sido realizado em meio hospitalar, de forma programada, esta situação teria sido evitada, porque teriam existido análises sanguíneas prévias e administração de uma simples injecção que evitaria todo este problema.

A culpa foi do profissional que lhe realizou o aborto, mas em ultimo lugar a responsabilidade também pode ser atribuída à lei que proporcionou dificuldades no acesso ao serviço sanitário. E à Igreja, que prega neste sentido e favorece este tipo de situações.

Sentes verdadeiramente que a Igreja não te chateia?

rui disse...

Carla, obrigado pelas tuas palavras. esta minha faceta é, no entanto muito variável, depende do assunto e de com quem estou a discutir. Neste caso, tenho simpatia por este blog ainda que tenha posições divergentes nalgumas matérias.
Quanto ao ateísmo penso estar em geral em sintonia. A única diferença é que eu acho inútil e contraproducente uma tentativa de permanente confronto com a Igreja ou com os religiosos de qualquer ordem. Mesmo o chamado "diálogo", entre ciência e religião é, quanto a mim, uma falácia a que algumas pessoas se entregam quer proselitismo algo ingénuo quer por um irresistível fascínio pelas posições opostas.
Aparentemente, no entanto, o rumo da discussão colocou-me num lugar desconfortável e quase absurdo de defesa da Igreja face às "arremetidas dos ateus".
Claro que falo do ponto de vista de um privilegiado que vive num País que em poucas décadas passou de uma submissão obscurantista à Igreja a uma progressiva laicização em que a Igreja tem vindo a ocupar o lugar legitimo que ocupa de mais um grupo (embora importante) de interesses que interessa ouvir no panorama politico português, mas não mais do que isso. Há quarenta anos atrás, a situação era bem diferente. Sobretudo no caso das mulheres... mas não era isso um reflexo da situação geral do País?
As questões que levantas para justificar o "incómodo" que causa a Igreja, são questões polémicas. No entanto, não me parece que o ónus do folhetim que foi a aprovação do respectivo referendo em Portugal caia directamente na Igreja. O ónus cai nos políticos republicanos que tudo fizeram para sabotar o processo. Hoje, depois de aprovado o referendo, continua a sentir-se uma pressão contra a IGV. No entanto, essa pressão não é directamente exercida pela Igreja, que, apesar dos seus protestos, como era legitimo que o fizesse, acatou, pelo menos publicamente, o resultado do referendo. Que haja médicos que se recusem a fazer a IGV por força das suas convicções religiosas ou por outra razão qualquer (eu tenho uma irmã nessas circunstâncias apesar de nada ter de prática religiosa), isso não significa que a culpa seja da Igreja. Acaso não sabes das posições que tem assumido o Bastonário da Ordem dos Médicos? É por isso que a medicina vai passar a ser considerada como uma "ciência" obscurantista"? A Igreja, como qualquer outro grupo da sociedade, procura defender e impor os seus pontos de vista, o que é totalmente legitimo em democracia. Que o tem feito de modo civilizadissimo, apesar dos desafios inevitáveis que sofrido ( e nalguns casos, perdido) ao longo do processo de laicização, não restam, julgo eu, dúvidas. Se as tivermos, basta olharmos ali para o lado, para Espanha, onde existe ainda um enorme lastro franquista no seio do conservadorismo dominante. Podemos dizer que a Igreja Católica portuguesa se "acomodou" ao fascismo, mas também tivemos padres (e bispos...) da oposição. O resultado é que hoje a Igreja é, como já disse acima, tendencialmente conservadora e um fenómeno anacrónico, mas é algo que num país democrático tem de ser tido em conta com naturalidade.
Resumindo: uma coisa é discutirmos e criticarmos as posições políticas da Igreja e respectivas consequências. Outra coisa é escandalizarmo-nos porque a Igreja é o que é.
O problema é político e não religioso.

carla disse...

Rui,

A tua opinião sobre a ICAR era evidente desde o 1º momento em que clarificastes que eras ateu, por isso nesta nossa troca de ideias nunca assumi que a estivesses a defender. Lamento se te causei algum desconforto ao longo desta nossa conversa, não era essa a minha intenção.

Retomando a nossa conversa... compreendo a tua posição, e até partilho vários dos teus argumentos. Mas continuo a discordar contigo em 2 pontos, que me parecem importantes:

1- Não me parece contraproducente questionar e incomodar a ICAR. Pelo contrário,o confronto até me parece de grande utilidade.

2- Não estou assim tão segura que exista uma linha de separação tão nítida entre certas decisões politicas e influência da religião.


É certo que influência da ICAR no nosso país é relativamente moderada, quando a comparamos com o que acontece em certos países da América do Sul.

Mesmo assim, até mesmo dentro do nosso pacato país não se pode comparar a maior influência que a ICAR tem junto das pessoas que vivem em pequenas aldeias, com o papel mais discreto que tem junto das gentes dos centros urbanos.

Concordo contigo quando dizes que a religião tem um papel importante na vida de muitas pessoas, tornando-as mais felizes e mais completas.

O problema é que algumas religiões aproveitam a necessidades das mentes, para controlar os corpos. A ICAR peca nesse aspecto. Esse é um dos aspectos em que o Saramago aponta bem certinho.

Agora se é certo que existem pessoas que não podem viver sem uma religião... muito mais certo é que nenhuma religião pode viver sem pessoas.

Daí que a ICAR se tenha de adaptar aos tempos... sente que perde adesão, e que remédio tem senão adaptar-se.

Quando se escreve num livro de reclamações, o objectivo não é fazer com que o establecimento feche, mas sim que melhore, certo? O mesmo se passa com reinvicações a certas instituições religiosas.

Também concordo contigo quando dizes que a ICAR é o que é. Mas não é o que já foi. E isso deve-se a incómodos, questões levantadas à ICAR.

Porque é que eu, como ateia, sinto que tenho o direito de incomodar a ICAR? Porque a ICAR se mete na minha vida, sem eu o desejar. E porque é que se mete na minha vida? Porque tem poder.

Fala em nome de um número que lhe pertence, em nome de estatisticas.
No entanto, a realidade que conheço é diferente: muita gente que é ateia, que discorda das ideias da ICAR e que... é baptizada. Ou seja, está dentro das estatísticas da ICAR. A ICAR fala em nome deles, sem que eles o desejem.

Proponho um recenseamento católico, a ver como estão as coisas na realidade. ;)

Tenho um caso curioso de um colega (e amigo) que antes da faculdade, esteve num seminário. Desistiu... e tornou-se ateu!

Quanto ao tema influência da ICAR em certas decisões politicas, como te disse, não tenho as coisas tão claras...

Repara no que aconteceu com o tema da educação sexual nas escolas. Supostamente seria uma decisão politica. Mas a ICAR tratou de se imiscuir na questão desde o 1º momento. E o certo é que se atrasou o assunto.

Estes temas dão pano para mangas... e esta conversa é entre 2pessoas que não têm ideias radicalmente diferentes...

Um abraço.


















Não se trata de querer "recrutar" gente para o ateísmo. Trata-se de gritar à Igreja: EH pá! Espera aí... esse poder que dizes que tens,e que aplicas, está baseado em nº reais? Já reparastes que estás a enfraquecer junto das camadas mais jovens? Que futuro pensas que vais ter assim?

rui disse...

Carla quando deixei o meu desabafo não era uma crítica. Quanto a mim tens argumentado de forma impecável. O que acontece é que se calhar eu sou demasiado preguiçoso e a influência que a igreja (não) tem na minha me permitem ser um pouco blasé. Sei perfeitamente que na américa latina e não só, vê por exemplo o caso da polónia, a igreja não assume este papel relativamente benigno que exerce na sociedade portuguesa. Em contrapartida, não esquecer que foi na américa latina que surgiu a ideia da "teologia da libertação", hoje mais ou menos anatemizada pelo Vaticano. A situação actual não é "segura". Sabemos como, ao contrário do que é a nossa percepção de habitantes relativamente privilegiados de um país privilegiado que hoje em dia a religião se expande por ser provavelmente o único refúgio das massas de habitantes dos mega slums descritos por Mike David. É essa expansão a nível global e não o facto de os baptizados contarem como católicos que autorizam alguns autores a falar do "fim do ateísmo".
Assinalas que quanto a costumes a igreja assume frequentemente uma atitude anti-liberal e retrógrada. Isso é absolutamente normal. E é normal que a Igreja defenda os seus pontos de vista. Mas esses protestos legítimos da Igraja são normalmente expressos no plano político e não já do ponto de vista da autoridade religiosa. É por isso que o problema é político.
O "alerta final" que lanças à Igreja, quanto a mim é desnecessário. Se a Igreja se enterra por si própria, se se afasta dos jovens, eu não digo nada, deixo-a continuar a enterrar-se e a auto-iludir-se. A mim preocupar-me-ia sim, que a Igreja de algum modo reinventasse uma linguagem e uma ligação às pessoas de forma a "renascer" no seu poder e influência.