A recém-publicada «História da Primeira República Portuguesa» (coordenação de Fernando Rosas e Maria Fernanda Rollo) é uma obra completa e rigorosa sobre um período da nossa História sobre o qual se continuam a confrontar perspectivas ideologicamente opostas, um confronto que será, possivelmente, bastante visível no próximo ano. Na «Introdução», Fernando Rosas explica parte da motivação das mais de 600 páginas do volume.
«O centenário do regicídio, em 2008, deu lugar ao reaparecimento e à reafirmação de uma corrente a meio caminho entre a história e a política, de forte cunho ideológico monárquico-conservador, por vezes enfaticamente promovida em alguns media, que, na realidade, constitui uma reedição quase ipsis verbis do discurso propagandístico do Estado Novo sobre a Primeira República.
A Primeira República é aí apresentada, melhor dizendo, é aí demonizada, como nos tempos áureos do Secretariado de Propaganda Nacional e dos plumitivos integralistas convertidos ao salazarismo, como uma realidade simultaneamente a-histórica e anti-histórica.
A-histórica, porque era inexplicável à luz das realidades sociais e políticas do país, não tinha raízes nelas e muito menos as reflectia. Não possuía base social relevante - o alegado carácter «pequeno-burguês» da revolução republicana era uma mistificação marxizante fora de moda... -, pois o republicanismo era pouco mais do que uma conspiração maçónica-radical de alguns intelectuais urbanos subversivos, sedentos de poder e carentes de escrúpulos e de responsabilidade, a quem umas sabradas a tempo, como prometera João Franco, teriam facilmente metido na ordem. E, não sendo reconhecido um programa económico e social digno desse nome ao republicanismo, as suas aspirações - pretensamente democratizantes - já estariam realizadas pelas instituições da monarquia liberal, que era, no fundo, uma «república com rei». A República e o seu rol de prepotências e desordens não seria, afinal, senão o fruto de uma absurda conspiração de um punhado de desordeiros, tolerada pela fraqueza ou pela pusilanimidade do poder, sem apoio no país, ao arrepio da marcha pacífica e consensual da Monarquia e da governação dos seus avisados e liberais dirigentes. Uma espécie de maldição a-histórica que se abatera inopinadamente sobre o destino nacional.
E daí o seu carácter anti-histórico. A Primeira República, caricaturada com os traços grossos de uma balbúrdia terrorista e persecutória que não só desculpabilizaria como exigiria a Ditadura Militar e o Estado Novo, participava, no fundo, dessa espécie de desvio ao «verdadeiro curso» da história nacional. (...)»
Recomenda-se a leitura, em particular, ao Dorean Paxorales, ao 31 da Armada e ao Estado Sentido. Pode servir para rever certos dogmas e distorções tão estridentemente reafirmados. Mal não lhes fará.
2 comentários :
Obrigado. O excerto deixa-me, de facto, bastante curioso quanto à forma como se irá desenvencilhar no contraditório (embora a colagem do pequeno ressurgimento monárquico de agora ao estado novo não passe do mesmo tipo de propaganda).
Mas como deves compreender, isso terá de ficar para outra oportunidade.
"A República e o seu rol de prepotências e desordens não seria, afinal, senão o fruto de uma absurda conspiração de um punhado de desordeiros" - quem disser o contrario, seja catedrático ou analfabeto, mente!
Enviar um comentário