O Ricardo Araújo Pereira escreveu na Visão um texto notável a propósito da mensagem natalícia do José Policarpo. Pega no assunto pelo lado de Policarpo, ostensivamente e de forma algo provocatória, ter saudado outros monoteístas mas não os ateus. Há também a questão, quanto a mim grave, de o Policarpo estar na realidade a abusar de um formato de «tempo de antena» para entrar em polémica com os ateus e apelar à conversão de judeus e muçulmanos.
Mas vamos ao RAP. Delicioso:
- «O ateísmo tem sido, para mim e para tantos outros incréus, a luz que me tem conduzido na vida. Às vezes fraquejo, em momentos de obscuridade e de dúvida, mas, mesmo sendo incapaz de provar a inexistência de Deus, tenho conseguido manter a fé - uma fé íntima fundada numa peregrinação que tem a grandeza e a humildade da longa caminhada da vida - em que Ele não exista. Todos os dias busco a não-existência do Senhor com renovada crença, ciente de que a Sua inexistência é misteriosa demais para que eu a tenha inventado.»
- «Acreditar que Deus existe é uma convicção profunda, mas acreditar que não existe, curiosamente, não o é. Alguém, munido de um aparelho próprio, mediu a profundidade das convicções e deliberou que as do crente são mais fundas que as do ateu. Quando alguém diz acreditar em Deus, está a exprimir legitimamente a sua fé; quando um ateu ousa afirmar que não acredita, está a agredir as convicções dos crentes. Ser crente é merecedor de respeito, ser ateu é um crime contra a humanidade.»
E esta é uma dificuldade que nós, os que somos ateus, continuamos a ter, em alguns meios sociais: ter fé é bonito, talvez mesmo poético, enquanto afirmar-se ateu é agredir, dizer um palavrão. O que se deve ao facto de a religião significar «esperança» noutra vida, ou numa qualquer forma de contacto com entes queridos desaparecidos. Enquanto o ateísmo não tem ilusões comparáveis para oferecer. Somos uns desmancha-prazeres.