quarta-feira, 15 de junho de 2005

Na morte de Cunhal

Do projecto político que abraçou no final da adolescência, Álvaro Cunhal viu realizada a parte boa (a «revolução democrática e nacional») e terá abdicado de avançar com a parte má (a «revolução socialista») na tarde de 25 de Novembro de 1975. Os juízos de valor são, evidentemente, meus, mas é um facto que se deve a Álvaro Cunhal a estruturação e a liderança efectiva, durante mais de meio século, do maior movimento político de oposição ao fascismo, também responsável por grande parte dos progressos sociais conseguidos após o 25 de Abril. Por isso, merece-me respeito, mas respeito contido quando tenho em conta as motivações teleológicas que realmente o animavam.
A importância histórica de Cunhal mede-se por ter transformado a pequena seita oposicionista que era o PCP em 1930, na maior instituição portuguesa não estatal da segunda metade do século 20 (desconto a ICAR, obviamente). Entre 1940 e 1980, o PCP foi a maior escola política portuguesa e a espinha dorsal de uma «sub-cultura» (sindicatos, jornais, editoras, associações...) que era semi-hegemónica fora das esferas estatal e eclesial. A partir de 1980 (ano em que obteve 20% dos votos), o PCP entrou num declínio lento que se aceleraria a partir de 1990. Resumidamente, influenciou toda a segunda metade do século 20 português.
O balanço da sua vida política confunde-se com o do PCP, mas quem o responsabiliza pelo Gulag exagera. Mesmo restringir o balanço do comunismo ao Gulag (ou sequer ao estalinismo) é um reducionismo extremo. Foi a pressão comunista que permitiu meio século de políticas sociais na Europa e que criou as condições internacionais para a descolonização de grande parte do mundo submetido. Foi por isso que, apesar do totalitarismo inerente ao projecto em si, o comunismo conseguiu a popularidade que teve.
O maniqueísmo impede uns de verem que lhe devemos muito do que a nossa República tem de social, e outros de verem que o seu objectivo final não era uma sociedade plural e aberta. Álvaro Cunhal, tudo o indica, queria a igualdade social mas não a liberdade individual. Houve quem o apoiasse querendo as duas.
A questão que me mói a cabeça é saber se teria sido possível que fosse de outra maneira. Se o movimento laboral poderia ter sido organizado por uma força ideológica mais democrática. A resposta está no que aconteceu aos socialistas, e até aos anarquistas: os primeiros negligenciaram o proletariado, e os segundos, que o eram, foram dizimados antes do final dos anos 30. Lição a reter: só um movimento disciplinado e quase militarizado conseguiu crescer perante um Estado autoritário. E a tragédia foi essa.

2 comentários :

Filipe Moura disse...

Plenamente de acordo, Ricardo, até na questão que te (nos) mói a cabeça!
Abraço.

Sacha disse...

excelente análise. Excelentemente escrito.