segunda-feira, 16 de outubro de 2006

Capitalismo

Este fim de semana fui acampar com os meus filhos e comprámos umas cadeiras óptimas. As coisas sao sempre baratas naquela loja, e eu estava à espera de pagar para aí 25 dólares por cadeira. Custaram sete dólares cada: “Made in China”.

Eu lembrei-me logo dos neo-liberais e das coisas que eles dizem sobre a desregulamentação dos mercados e a abolição dos salários mínimos. Quando os neo-liberais me perguntam se não é óptimo viver num mundo em que as coisas são tão baratas, a pergunta que me ocorre é onde é que eles passavam o Natal quando eram pequeninos.

Para uma cadeira daquelas custar 7 dólares, de certeza que há uma data de desgraçados algures a fazerem cadeiras 18 horas por dia e a ganharem salários de fome. E ninguém se importa?

Ser-se assim miserável e insensível à injustica não me parece normal. O que é que aconteceu ao mundo nos anos oitenta? De onde é que saíram estes sociopatas todos? Quando eu era pequeno, roubar aos pobres ou abusar dos fracos eram coisas consideradas unanimemente como miseráveis, cobardes, ignominiosas, próprias de energúmenos como o Salazar e o Enver Hoxha.

De onde é que saíram estes neo-liberais? Não me parece normal que as pessoas não se importem com a miséria dos outros, que não tenham valores, que não compreendam o significado de conceitos como justiça, solidariedade e respeito pelo próximo. Que não preferissem pagar o preço justo por um par de calças de marca e saber que nas Marianas as trabalhadoras não eram obrigadas a fazer abortos para manter a produtividade...

18 comentários :

Carlos Guimarães Pinto disse...

Caro Filipe,

A pergunta que deve colocar é se os trabalhadores nesses países subdesenvolvidos têm opção. Se são forçados pela empresa a trabalhar nas suas fábricas, então tem toda a razão: os donos das empresas deveriam ser julgados. Se é o seu próprio governo que os obriga, então serão os líderes políticos que deveriam ser julgados.
Pelo contrário, se as pessoas trabalham de livre vontade, deve pensar se elas só estão ali porque qualquer alternativa seria pior. Nesse caso tem que agradecer às multinacionais por oferecerem àquelas pessoas a melhor alternativa possível, e agradecer ao capitalismo por ser o sistema que garante que um empresário buscando apenas o seu interesse individual consegue providenciar a melhor alternativa possível.
O capitalismo é contra-intuitivo, eu sei. Afirmar que duas pessoas que apenas buscam o seu próprio interesse se podem beneficiar mutuamente parece difícil de acreditar. Esqueça por momentos os seus preconceitos políticos e pense nisto.

Ricardo Alves disse...

Caro cgp,
e porque será que os referidos empresários procuram sempre os países em que as pessoas não têm escolha senão trabalhar nessas condições?
E porque será que, em algumas situações, até procuram criar ou pelo menos favorecer as situações em que as pessoas não tenham escolha?

Anónimo disse...

Karl Mrx nunca estev tão certo

" O CAPITALISMO AUTO-DESTRUIRSE-Á "

David Cameira

Carlos Guimarães Pinto disse...

"porque será que os referidos empresários procuram sempre os países em que as pessoas não têm escolha senão trabalhar nessas condições?"
Mais uma vez, depende do que entende por escolha. Se as pessoas são coercivamente forçadas a trabalhar na empresa, então são escravas e quem defende o capitalismo, ou o liberalismo, não o defendem. Se por "não têm escolha" quer dizer que aquela é a melhor escolha que eles têm porque as alternativas são muito piores, então deveria agradecer às multinacionais por garantirem a melhor opção que eles podem tomar.

"E porque será que, em algumas situações, até procuram criar ou pelo menos favorecer as situações em que as pessoas não tenham escolha?"

Aqui terá que desenvolver. Como é que uma multinacional cria ou favorece situações em que não haja escolha? Se são responsáveis por situações de escravatura, isso vai contra os princípios liberais e devem ser punidas por isso.

Ricardo Alves disse...

«Se por "não têm escolha" quer dizer que aquela é a melhor escolha que eles têm porque as alternativas são muito piores»

Era isso.

«então deveria agradecer às multinacionais por garantirem a melhor opção que eles podem tomar»

Não sei porque me quer impôr essa obrigação ética. As multinacionais estão a decidir exclusivamente em função dos seus interesses, não por altruísmo. Por isso, os agradecimentos seriam ridículos.
Mas fugiu à questão...

«Como é que uma multinacional cria ou favorece situações em que não haja escolha?»

Apoiando golpes de Estado; apoiando a destruição de sindicatos; remunerando abaixo de qualquer rendimento que permita minorar a curto prazo qualquer situação de pobreza; abandonando qualquer país em que a organização sindical ou a elevação de países já não favoreçam essas condições...

«são responsáveis por situações de escravatura, isso vai contra os princípios liberais»

Não parece ser essa a opinião do «liberal» Pedro Arroja.

Carlos Guimarães Pinto disse...

"As multinacionais estão a decidir exclusivamente em função dos seus interesses, não por altruísmo."
Aqui está a génese do capitalismo. Quer os agentes ajam em interesse próprio quer por altruísmo, criam sempre benefícios para a sociedade.

"Apoiando golpes de Estado; apoiando a destruição de sindicatos;"
Um dos princípios liberais é o do primorado da lei pelo que qualquer acção ilegal, tomada por quem quer que seja deve ser punida.

"remunerando abaixo de qualquer rendimento que permita minorar a curto prazo qualquer situação de pobreza"
Mais uma vez repito: as pessoas só trabalharão numa fábrica duma multinacional se a alternativa representar mais pobreza. As empresas podem remunerar abaixo do limiar da pobreza mas será sempre acima da melhor alternativa possível. A não entrada das multinacionais seria em todos os casos uma decisão pior para a sociedade em que entra.

"abandonando qualquer país em que a organização sindical ou a elevação de países já não favoreçam essas condições..."

Se abandonam os países em que já não existe pobreza para se deslocarem para países em que ainda existam, estão, agindo de forma egoísta a contribuír para que os rendimentos se equilibrem, ajudando os países pobres a desenvolverem-se.

Em relação ao Pedro Arroja o que ele disse foi que em termos económicos, a escravidão foi boa para os negros. Isso é indiscutível. Os negros passaram a produzir e a consumir mais, mais foi-lhes retirada a liberdade. O liberalismo defende os direitos individuais acima de tudo, assim sendo, a escravidão está no extremo oposto daquilo que é defendido.

Ricardo Alves disse...

«Aqui está a génese do capitalismo. Quer os agentes ajam em interesse próprio quer por altruísmo, criam sempre benefícios para a sociedade.»

Há um lado utópico nisso. Parte-se do princípio de que «os agentes»(!), quando livres de quaisquer entraves à sua acção, não abusarão do poder que detêm. É uma visão do «bom selvagem»...

«Um dos princípios liberais é o do primorado da lei pelo que qualquer acção ilegal, tomada por quem quer que seja deve ser punida.»

(E quem fez a lei?)
Não sabe que «liberais» como Hayek defenderam Pinochet contra Allende? Que Hayek dizia preferir «uma ditadura liberal a uma democracia sem liberalismo»?
Caro senhor, quando a ordem económica começa a prevalecer sobre a ordem política, a «lei» passa a ser a lei de quem detém o poder económico. E o poder económico não é tão facilmente controlável como o poder político...

«A não entrada das multinacionais seria em todos os casos uma decisão pior para a sociedade em que entra»

Há casos em que as multinacionais só «entram» com a garantia de que poderão fazer coisas que não fariam noutros países, como poluir à vontade...

«Em relação ao Pedro Arroja o que ele disse foi que em termos económicos, a escravidão foi boa para os negros. Isso é indiscutível.»

Não é indiscutível. Ter uma esperança de vida mais curta do que em África, comer menos, ser espancado, fazia parte desses «termos económicos». E foi pior. Se assim não fosse, porque será que as pessoas fugiam dos Estados esclavagistas? Por masoquismo?

«Os negros passaram a produzir e a consumir mais»

Os judeus dos campos de concentração nazis também produziam mais. Nos seus «termos económicos», o genocídio de judeus foi positivo. Nos seus, repito.

«O liberalismo defende os direitos individuais acima de tudo, assim sendo, a escravidão está no extremo oposto daquilo que é defendido.»

Não. O vosso «liberalismo» defende a propriedade privada acima de tudo, mesmo acima das liberdades individuais.

Carlos Guimarães Pinto disse...

1- A propriedade privada é um direito individual.
2- Não refutou a ideia de que uma multinacional ao entrar num país está a melhorar as condições de vida da população. Penso que nisso estamos de acordo, o que é um princípio.
3- Se o estado tiver pouco poder, é quase indiferente se é uma democracia ou uma ditadura. Prefiro ter uma pessoa a decidir sobre 1% da minha vida do que 2 milhões a decidir sobre 60%. Era nesse sentido que hayek o dizia.
4- Os judeus no campo de concentração produziam mais. Se o obrigarem a trabalhar 16 horas por dia, também irá produzir mais, mas não será livre. O liberalismo não defende nada disso.

Ricardo Alves disse...

1-E será uma liberdade individual?
2-Pode melhorar ou não, depende dos casos.
3-O vosso problema fundamental talvez seja esse: não compreenderem que o poder do Estado democrático é preferível ao poder das empresas. Então quando começam a defender a eliminação de todas e quaisquer garantias laborais, do salário mínimo ao horário de trabalho, estão a colocar um poder enorme nas mãos das empresas. Algumas empresas (veja o caso das Marianas) acabam a controlar 99% da vida dos seus salariados.
4-Diga isso ao Arroja.

Carlos Guimarães Pinto disse...

1- A propriedade limita a liberdade dos outros. O próprio direito à vida limita a liberdade dos outros (por exemplo, a liberdade de o matar). São os chamados direitos negativos, aqueles que se devem impôr aos outros e sem os quais a vida em sociedade não seria possível. Mas se quiser abdicar do seu direito de propriedade eu disponho-me a ser beneficiário disso.
2- Diga-me um caso que não envolva trabalhos forçados, que não melhore a vida das populações.
3- O poder das empresas limita-se àquilo que produzem e depende em muito dos seus trabalhadores. No fundo, o poder das empresas é o poder da classe operária (por esta não esperava, confesse lá...)
4- O Pedro Arroja nunca disse que o liberalismo defendia a escravatura, nem nunca ele a defendeu. O que ele disse foi uma evidência como a de dizer que o regime de hitler era mais organizado que o nosso. Sendo verdade, não significa que quem o admitir passe imediatamente a ser fascista ou nazi. recomendo-lhe as cronicas de política economica do Pedro Arroja para conhecer a sua opinião sobre a escravatura, entre outras coisas. Se compreender o Pedro Arroja e o liberalismo em geral, verá que ambos estão bem mais próximos da esquerda do que imagina.

João Vasco disse...

O que o Pedro Arroja disse, entre outras coisas, foi a que a maior parte dos negros (sic) foram para os EUA à procura de melhores condições de vida.

Também disse que a escravatura foi "boa" para os negros. Pelo contexto pode afirmar que se estava a referir apenas à componente económica da sua vida, mas isso é uma afirmação que poderia ser questionável tendo em conta que na mesma entrevista afirmou qualquer coisa acerca deles só quererem sexo e nada de trabalho, que me espantou bastante.

Ou seja: ele pode considerar que a escravatura é contrária ao liberalismo, e ainda assim achar que os negros tieram "sorte" em terem tido uma viagem gratuita para procorarem um sítio onde viver melhor, temperados por algumas chicotadas.


Eu gostaria que ele esclarecesse explicitamente que não é isso que pensa, pois feita uma leitura razpoável da entrevista torna-se preocupantemente plausível esta hipótese..

Ricardo Alves disse...

1- A questão é como se obteve a propriedade. O João Vasco já aqui escreveu sobre isso (por exemplo, «Falácias da Ética Neo-Liberal VI - a herança»). Mas como o vosso «liberalismo» é a-histórico, duvido que queira discutir essa objecção.

2- O caso de uma empresa que polua irremediavelmente todos os cursos de água da região.

3- O poder empresarial a que me referia é o poder de despedir famílias inteiras sem indemnização e sem pré-aviso, por exemplo. Nunca vi nenhuma associação operária a defender que as empresas deveriam poder fazer isso, mas se souber de alguma, diga-me.

4- Como já afirmou o João Vasco, o Arroja demonstrou vários preconceitos que parecem reproduzir a mitologia racista clássica: os negros seriam preguiçosos, hiper-sexuados, etc. Além disso, afirmou realmente que foram voluntariamente para os EUA, o que é um bocado como dizer que os judeus e os ciganos foram livremente para os campos de concentração nazis.
Não fiquei com grande vontade de conhecer o resto do pensamento do senhor Arroja.

João Vasco disse...

cgp:

Imagine uma empresa que vai usar mão de obra tailandesa para fabricar, digamos, bolas de futebol.
Imagine que esta empresa paga um salário inferior aos slários dos países desenvolvidos, mas, ainda assim, justo e razoável.
As bolas são baratas e são vendidas - toda a gente está feliz.

Mas agora surge a concorrência, que vai para o Bangladesh. Esta empresa paga um salário absolutamente miserável. As bolas ficam baratíssimas.

Para que a primeira empresa sobreviva, ela terá necessariamente de baixar so salários aos tailandeses. Ficarão todos com salários miseráveis.

E todos nós poderemos comprar bolas baratíssimas.

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Faz então sentido condenar a fábrica que se instalou no Bangladesh, mas mais ainda a ausência de alguém que a impedisse de explorar a miséria alheia.

Se existisse alguma limitação, tipo salário mínimo, talvez a fábrica do Bangladesh tivesse menos trabalhadores... Mas aqueles que tivesse não seriam virtualmente escravos. Nem esses, nem os trabalhadores tailandeses, neste caso, cuja condição foi seriamente agravada.

Para os trabalhadores em geral, teria sido melhor. Esta limitação no salário criaria uma espécie de "cartel" de mão de obra - como em todos os carteis, vende-se menos do que em concorrência livre, mas o cartel fica favorecido ainda assim.


O problema é que existe uma super-abundância de mão-de-obra, e num livre mercado os trabalhadores seriam praticamente escravos. Felizmente alguns estados (como os ocidentais) têm mecanismos que cartelizam a mão-de-obra - criando algum desemprego, é certo - mas permitindo à generalidade das pessoas uma vida digna.

Carlos Guimarães Pinto disse...

A super-abundância de mão-de-obra é sinónimo de falta de capital. Não é com políticas que combatam o capital que se vai curar a super-abundância de mão-de-obra.

2 perguntas em relação ao caso:
1- Se os trabalhadores do Bangladesh são virtualmente escravos, o que eram antes da multinacional se instalar?
2- Pensa que seria justo que uma pessoa que estivesse a trabalhar num campo de arroz no bangladesh e quisesse ir trabalhar para uma fábrica a receber abaixo de salário mínimo imposto, mas mesmo assim ficar numa situação melhor que a actual, fosse impedida de o fazer? Ou considera essas pessoas como danos colaterais duma política social? Há alguma falta de humanismo aí...

João Vasco disse...

«A super-abundância de mão-de-obra é sinónimo de falta de capital.»

Não, não é.

«Não é com políticas que combatam o capital que se vai curar a super-abundância de mão-de-obra.»

Pois não. Para já é esperar que a explosão populacional páre, e esperar que vá começando a estabilizar/descer.

Enquanto isso, terá de se ir fazendo políticas de cartelização de mão-de-obra para não caír na escravatura.

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Nota: a relação entre capital e mão-de-obra está relacionada (indirectamente) com a relação entre recursos naturais e seres humanos. Os recursos são limitados, tal como a capacidade para os extraír, pelo que havendo população excessiva não haveria desregulamentação que proporcionasse capital suficiente para que, sem cartelização, a mão de obra deixasse de ser super-abundante.

João Vasco disse...

quanto às perguntas, eu digo o seguinte: em Portugal, supondo que o salário mínimo tem algum efeito negativo sobre o emprego, não deixa por isso de ser desejável.

Não havendo salário mínimo, é possível que alguns trabalhadores hoje desempregados pudessem estar a trabalhar, mas a generalidade dos trabalhadores iria ter salários MUITO mais baixos. No geral, o dinheiro obtidos por TODOS os trabalhadores seria MENOR do que aquele que é obtido na situação actual (isto é característica de uma situação de cartelização de um determinado bem).

Portanto, se parte da mais-valia que os trabalhadores empregados obtém pela cartelização da mão-de-obra for utilizada para compensar aqueles que não encontram trabalho, a generalidade dos trabalhadores fica a ganhar (é o jogo do prisioneiro: o cartel favorece os fornecedores de um determinado bem - mesmo a mão de obra).


Isto é válido em Portugal, e em muitos países da OCDE onde a qualidade de vida é invejável.


Se no que respeita ao mundo inteiro existisse um sistema análogo, os trabalhadores de todo o mundo viveriam melhor do que vivem.

Mas, felizmente, a tecnologia vai evoluindo e a natalidade vai baixando. E isso ainda vai tendo um impacto positivo sobre a pobreza, não obstante tanta coisa...

JLP disse...

Salário mínimo, emprego, salários "apetecíveis".

Escolham 2.

João Vasco disse...

Para os salários generalizadamente apetecíveis terá de haver salário mínimo?

Bem, parece que isso decorre da ideia de cartel. No entanto, num enorme cartel entre fonrecedores existem fortes incentivos para violá-lo: é que o violador de tal cartel vai lucrar mais do que os restantes fornecedores, e mais do que ganharia se os restantes fornecedores não mantivessem o cartel.

O mesmo se pode dizer em relação à mão-de-obra: é tipo jogo do prisioneiro. Entre os países desenvolvidos, os salários são relativamente altos e mais altos do que seriam se não houvessem tantos com leis que impõem salário mínimo.

Mas aquele que não impuser tais leis estará em vantagem face aos outros. Será que a solução é seguir-lhe o exemplo, e ficarem todos pior?

É complicado.

A grande solução para isto é mesmo evitar a tal super-abundância de mão-de-obra.