segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Política a sério?

Recebi aqui um texto infantil e demagógico de José António Saraiva, intitulado “Política a sério: Uma cultura de morte”, onde ele sustenta que em vez de se debater o aborto, o casamento homossexual (estéril por natureza, segundo o autor) ou a eutanásia, se devia era debater uma série de medidas socialistas de apoio às mulheres com crianças na sociedade.

Sem me querer alongar muito sobre a hipocrisia de um comentador de direita vir trazer agora para o debate a questão da dignidade das mulheres que trabalham e têm ou querem ter filhos (quando o capitalismo selvagem que a direita advoga já destruíu a família, a sociedade e o ambiente, e ameaça agora destruir o planeta), acho curiosa a falácia de que só se pode discutir uma coisa de cada vez.

Eu concordo que devíamos discutir, e o mais depressa possível, o impacto do capitalismo selvagem e da desregulamentação do trabalho na família e no sucesso escolar, por exemplo. Mas acho que não é por os patrões despedirem sistemática e impunemente as empregadas grávidas que se deve deixar de discutir os direitos humanos dos homossexuais, ou dos moribundos com doenças terminais, ou de mulheres desesperadas.

Mas o texto de José Saraiva é francamente chocante a vários níveis. Diz ele que no debate sobre o aborto não esta “apenas em causa a rejeição dos julgamentos e das condenações de mulheres” que abortam. Segundo Saraiva o que está em causa é que “o Estado não deve passar à sociedade a ideia de que se pode abortar à vontade”. À vontade? Ele acha que as mulheres fazem abortos por prazer? Às vezes é dificil imaginar a crueldade da direita e a insensibilidade desta gente em relação ao sofrimento alheio.

Para não falar da hipocrisia! Eu conheço vários pró-vidas que levaram as namoradas a fazer abortas em Espanha (e um em Inglaterra). Para eles os abortos criminosos são os das mulheres pobres, as que não podem ir a Espanha ou a Inglaterra e têm de fazer os abortos em abortadeiras clandestinas, na margem sul...

Este artigo é paradigmatico no sentido em que traduz o ponto de vista de uma certa direita, arrogante e infantil, que vê o mundo a preto e branco e não consegue reconher a humanidade dos mais pobres, dos que sofrem anonimamente os despedimentos, os cortes da água e da luz por falta de dinheiro, os que são humilhados e não têm a quem se queixar, os que fazem coisas estúpidas porque não tiveram acesso a uma educação decente, os que trabalham a vida inteira e não se conseguem arrancar da miséria e da mediocridade.

Neste sentido apetecia-me escrever aqui vinte paginas sobre as coisas que em meu entender distinguem José Saraiva de um cidadão do mundo, culto e civilizado. Mas a verdade é que não tenho tempo. Quero só comentar uma ultima falácia deste texto desgraçado: no último parágrafo Saraiva diz que “a esquerda” (como se este PS fosse de esquerda!) devia ajudar os casais que querem ter filhos EM VEZ DE ajudar as mulheres que querem abortar.

Se não fosse demagógica a um nível absolutamente infantil, esta afirmação seria de uma desonestidade criminosa.

15 comentários :

Pedro Viana disse...

"quando o capitalismo selvagem que a direita advoga já destruíu a família, a sociedade e o ambiente, e ameaça agora destruir o planeta"

Este ponto é algo que me intriga... sendo óbvio que grande parte das profundas mudanças societais que aconteceram durante os últimos séculos, incluindo a fragilização das condições que propiciam a estabilidade das ligações pessoais (ex. familiares), derivaram em grande parte directamente da promoção do egoísmo individual pelo Capitalismo, através da estimulação do Consumo individual, e indirectamente da destruição daí resultante da noção de comunidade, porque é que as Igrejas Cristãs, o seu clero, não são abertamente anti-Capitalistas?... Nomeadamente, no caso da Igreja Católica, quer o Papa anterior quer o actual já se pronunciaram contra o Consumismo, mas na prática a estrutura que comandam nunca tentou fazer oposição prática ao Capitalismo, o que contrasta com a oposição prática e agressiva à IVG ou aos direitos dos homossexuais, para dar exemplos. Onde estão os discursos inflamados de padres contra o consumismo e o egoísmo neo-liberal?... Não percebem que o Capitalismo precisa que o que as pessoas definem como necesário, e portanto os "valores morais" que definem essas necessidades, esteja continuamente a mudar de modo a gerar novo consumo? Não percebem que o conceito de comunidade (entendida como grupo de pessoas com valores e interesses comuns) é o inimigo número do Capitalismo, e portanto do neo-liberalismo, pois este necessita duma sociedade atomizada em consumidores individuais, vulneráveis aos apelos da publicidade, e do consumo?

A Igreja (seja qual fôr) sempre esteve irmanada com os poderosos, e não espanta por isso à primeira vista a aliança Igreja-Capitalismo, mas pensando melhor no assunto.... se a Igreja realmente se preocupa com quais são os valores (morais) predominantes na sociedade, devia eleger como inimigo principal o Capitalismo, muito mais "perigoso" a médio e longo prazo do que a IVG ou o casamento de homossexuais.

Por outro lado, se percebo porque é que a Esquerda é fortemente anti-clerical (porque as Igrejas são fortemente hierárquicas, em particular a ICAR, e sistematicamente apoiam os poderosos e a manutenção de hierarquias sociais e económicas na sociedade), já acho um erro que a Esquerda não aposte mais em usar os princípios da maior parte das religiões, que habitualmente enfatizam a igualdade, contra o Capitalismo e o neo-liberalismo. Esporadicamente isso funcionou, nomeadamente através da teoria da libertação na América do Sul, mas tem sido raro. Neste tempos de supremacia do pensamento neo-liberal acho que a Esquerda não se deve dar ao luxo de deixar de tentar criar uma frente religiosa anti-Capitalista. Na minha opinião, o sentimento religioso não é intrinsecamente algo de Direita. Depende do modo como é vivido: se fôr em subalternização a uma Igreja ou a uma Entidade Superior, tem todas as características de respeito pela hierarquia típicas da Direita; mas se fôr vivido de um modo pessoal, como meio de relação com o mundo natural que o rodeia, assumindo a importância de si próprio mesmo perante um Ente Superior que se acredita existir, ou mesmo no seio de uma comunidade de iguais, aberta, tolerante perante outras opinões e solidária, acho que tem todas as caracteríticas de valorização de todo o ser humano como igualmente merecedor que distingue a Esquerda. Digamos que Jesus Cristo não era propriamente um neo-liberal, e era provavelmente mais radicalmente igualitário que muitos comunistas hoje...

João Vasco disse...

Jesus disse com todas as letras que os ricos iam para o inferno, mas apesar disso parece ser fácil para a igreja ignorar essa passagem, pelo que tal tentativa (que não me agradaria muito) seria provavelmente infrutífera.

A igreja conseguiu MESMO criar uma realidade onde o personagem Jesus não tinha nada contra a riqueza, e até lançou as bases para o liberalismo. O que só mostra que as grandes máximas que se aplicam na religião são aquelas que Orwell caracterizou como "duplipensar".

João Vasco disse...

"parece ser fácil para a igreja ignorar essa passagem"

corrigindo:

ESSAS passagens. São imensas.

Ricardo Alves disse...

O personagem principal do Novo Testamento não era igualitário, a menos que o conceito de igualdade fosse restrito aos que aceitassem o seu «caminho» espiritual. E aquilo a que hoje chamamos «cristianismo» deve mais a Paulo de Tarso do que a Jesus Cristo. Paulo de Tarso introduziu conceitos de rígidos de hierarquia, de desigualdade homem-mulher, de coerção, etc, que aliás não contradiziam a «mensagem» de «Jesus Cristo».

João Vasco disse...

Sim, Jesus não era igualitário.

Mas no que respeita à distribuição da riqueza, a sua mensagem era totalmente incompatível com a economia de mercado. Ele repetiu até à exaustão que qualquer rico iria para o inferno. Também encorajava todos os que queriam ter a "vida eterna" a venderem todas as suas posses, fazendo aqui e ali uma alusão ao destino que deveriam ter tais receitas: os pobres.

João Vasco disse...

Claro que quando me refiro a Jesus falo sempre no protagonista dos evangelhos.

Quanto ao «Jesus histórico», mesmo que suponha ter existido, estou longe de ter a certeza. Mas de qualquer forma, a ter existido, não faço a mais pequena ideia daquilo que defendia, por isso nunca será dele que me refiro nestes contextos.

João Moutinho disse...

Vamos lá por partes, o PS tem de ser um partido de esquerda porque há direita estão o PSD e o CDS.
Também não me parece justo considerar o capitalismo quase como o grande causador dos males do Mundo, em particular do domínio ambinetal.
Mais, nós fazemos parte desse tal capitalismo que o Filipe denunciou. Quer queiramos quer não.
As coisas não estão bem em diferentes áreas mas não somos herméticos (ou vice-versa) para com o capitalismo.
Vamos andar de automóvel só ao fim-de-semana?
Quanto à implosão demográfica, parece-me que andamos a brncar com o fogo.

João Vasco disse...

«Quanto à implosão demográfica, parece-me que andamos a brncar com o fogo.»

Que eu saiba a população na terra está a aumentar estupidamente.
Que eu saiba somo 6 mil milhões, mas a população não estabilizará antes dos 9 mil milhões.

Que eu saiba, na Europa a população não está a diminuir - está estável. Nesse sentido, a Europa é um EXEMPLO A SEGUIR para o mundo!

Um exemplo que se o resto do mundo não segue, não existe qualquer possibilidade de desenvolvimento sustentável.

Nós não andamos a brincar com a implusão. Continuamos a brincar com a explosão e nem sequer percebemos.

Pedro Viana disse...

"quando me refiro a Jesus falo sempre no protagonista dos evangelhos."
"Quanto ao «Jesus histórico», mesmo que suponha ter existido, estou longe de ter a certeza. Mas de qualquer forma, a ter existido, não faço a mais pequena ideia daquilo que defendia, por isso nunca será dele que me refiro nestes contextos."

Desde já me denuncio como quase ignorante em matérias do foro religioso, nomeadamente sobre o que está ou não no Evangelho. De qualquer modo, tanto quanto sei, este é basicamente a única fonte "histórica" (para além de alguns textos judaicos da época) que temos sobre a pessoa ou personagem Jesus. Donde nunca saberemos se o Jesus real pensava ou não de modo distinto do que consta do Evangelho que chegou aos nossos dias. Portanto, parece-me um pouco irrelevante pôr em causa que o Jesus real tivesse pensado de modo diferente do Jesus personagem retratado no Evangelho. O que me interessa, para o propósito que enunciei, é essencialmente este último.

"O personagem principal do Novo Testamento não era igualitário, a menos que o conceito de igualdade fosse restrito aos que aceitassem o seu «caminho» espiritual."

Hummm... como disse sou bastante ignorante relativamente a doutrinas e textos religiosos, mas de qualquer maneira, achar que nós somos os que estamos correctos e os outros estão errados não é algo que vai contra a igualdade (de tratamento), desde que não se torne em intolerância prática sob a forma de descriminação ou mesmo perseguição. Se Jesus-personagem incentiva a descriminação e a perseguição dos não-crentes então tinha elementos não-igualitários. Se era apenas um sentimento de "superioridade", então não vejo que seja algo anti-igualitário (afinal nós achamos que estamos certos ao considerar que todas as pessoas merecem igual tratamento e oportunidades, por exemplo). De qualquer maneira, ao longo da história, entre as comunas que mais duraram, praticando muitas vezes uma igualdade radical, encontram-se muitas comunas assentes na partilha duma mesma visão religiosa. Comunas essas muitas vezes abertas, tolerantes, acolhedoras de estranhos e em que quem quisesse podia sair e entrar quando quisesse.

"E aquilo a que hoje chamamos «cristianismo» deve mais a Paulo de Tarso do que a Jesus Cristo. Paulo de Tarso introduziu conceitos de rígidos de hierarquia, de desigualdade homem-mulher, de coerção, etc, que aliás não contradiziam a «mensagem» de «Jesus Cristo»."

Pois, não tenho elementos que me permitam aferir da veracidade da última afirmação. Suponho que será pelo menos polémica. Porque é que a Esquerda não atiça essa polémica? Porque não evidencia o modo como a Igreja esconde partes fundamentais da "mensagem" de Jesus-personagem, preferindo empolar outras vagamente mencionadas no Evangelho, como o aborto e a homossexualidade?... Acho que a Esquerda agindo assim perde aliados importantes na oposição ao neo-liberalismo, uma ideologia muito mais ameaçadora do futuro do planeta do que aquela que está por detrás da esmagadora maioria das religiões.

Pedro Viana disse...

Oops, desculpem a repetição. Se puderem, apaguem o primeiro texto. Obrigado.

João Vasco disse...

«Donde nunca saberemos se o Jesus real pensava ou não de modo distinto do que consta do Evangelho que chegou aos nossos dias. Portanto, parece-me um pouco irrelevante pôr em causa que o Jesus real tivesse pensado de modo diferente do Jesus personagem retratado no Evangelho. O que me interessa, para o propósito que enunciei, é essencialmente este último.»

De acordo, só estava a esclarecer.

«Hummm... como disse sou bastante ignorante relativamente a doutrinas e textos religiosos, mas de qualquer maneira, achar que nós somos os que estamos correctos e os outros estão errados não é algo que vai contra a igualdade (de tratamento), desde que não se torne em intolerância prática sob a forma de descriminação ou mesmo perseguição. Se Jesus-personagem incentiva a descriminação e a perseguição dos não-crentes então tinha elementos não-igualitários»

Não era só isso: também era não-igualitário face ao sexo, também conviveu pacificamente com a escravatura, etc...


«Porque não evidencia o modo como a Igreja esconde partes fundamentais da "mensagem" de Jesus-personagem, preferindo empolar outras vagamente mencionadas no Evangelho, como o aborto e a homossexualidade?»

Não são "vagamente mencionadas": a oposição à homossexualidade está claramente explicitamente na Bíblia, quer no novo, quer no antigo testamento. O deus dos cristãos é MESMO homofóbico.

Quanto às posições anti-riqueza de Jesus, apesar de ser ateu estou sempre a falar sobre elas, normalmente acompanhando-as dos versículos e capítulos completos.

Ainda assim os crentes ignoram, pois, mesmo podendo verificar aquilo que afirmo, desconfiam de um ateu a falar sobre Jesus. E se a Igreja diz que Jesus não tem nada contra a riqueza, parecem não se importar que a Bíblia REPETIDAMENTE contradiga isso.
Já ouvi os argumentos mais estúpidos e absurdos*, mas a ideia é sempre igual: não posso interpretar literalmente, pelo que Jesus até pode adorar os ricos.

-------

* Na passagem de Mateus que diz assim "Muito dificilmente entrará um rico no reino dos céus. Repito-vos: é mais fácil passar um camelo por uma agulha que um rico no reino dos céus, que um rico entrar no reino dos céus"
já me vieram dizer que Jesus não teria nada contra a riqueza e que eu estou a interpretar tudo mal por desconhecer a língua original pois: camelo podia querer dizer corda, e agulha uma ameia de muralha. E não seria assim tão difícil uma corda passar numa ameia.
O mais ridículo é que este argumento patético já me foi repetido por pessoas diferentes.

A fé é maravilhosa...

Pedro Viana disse...

"Não era só isso: também era não-igualitário face ao sexo, também conviveu pacificamente com a escravatura, etc..."

Já não me lembrava dessas partes... quanto à homofobia, a questão mais importante é se no Evangelho é incentivada a perseguição e descriminação dos homossexuais, para além da sua condenação moral. Há uma diferença importante. Mas não tenho capacidade escolástica para entrar em tal discussão.

"A fé é maravilhosa..."

Mais "maravilhoso" ainda é como o sentimento religioso foi repetidamente usado para grupos de indivíduos criarem organizações (Igrejas) de domínio social.

De qualquer modo há movimentos nos Estados Unidos que, no caso do Cristianismo, pretendem resgatar aqueles para quem a fé religiosa é importante (ou dizem que é...) nas escolhas que fazem, das garras da Direita (Neo)conservadora. Consultar

http://en.wikipedia.org/wiki/Progressive_Christianity

Tal movimento poderá ter a médio/longo prazo um impacto muito importante na paisagem política americana, dado o peso da religião no país. Na Europa, teria menos impacto, mas poderia ajudar a lançar a confusão nas hostes da Direita. A nível mundial tal movimento, congregando diferentes fés religiosas, poderia ter um impacto substancial. Especialmente, mais uma vez no que se refere ao cristianismo, na América do Centro e Sul, e em África, onde há ainda muita gente subjugada pela ICAR (vide a recente decisão parlamentar na Nicarágua, onde a putativa Esquerda nem sequer se opôs à aprovação de uma das leis mais restritivas da IVG a nível mundial).

João Vasco disse...

Questões a acompanhar de perto, sem dúvida!

Ricardo Alves disse...

Pedro,
existe uma tradição religiosa progressista (e laicista!) nos EUA. Essencialmente, são pessoas de igrejas protestantes «liberais» como os quakers ou os unitários. Estiveram ligados às lutas anti-esclavagistas, sufragistas, e mesmo a lutas contra a imiscuição da religião na vida pública. É curioso verificar que a teologia destas igrejas é muito pouco dogmática. Algumas até aceitam que «Cristo» teria sido um homem sem nada de divino. E não obrigam o conjunto dos crentes a partilharem o mesmo conjunto sistematizado de crenças...

Não existe nada de semelhante em Portugal, ou, tanto quanto sei, em qualquer país europeu. (Embora pense que os bahá´is são também pouco clericais...)

Ricardo Alves disse...

Pedro,
quanto à tua mensagem mais longa...

Não contem comigo para tentar «recuperar» a «mensagem» do personagem principal do Novo Testamento num sentido igualitário, ou socialista, ou de «esquerda». Em primeiro lugar, porque o valor que é mais importante para mim (a liberdade) é anti-cristão. Mesmo a «igualdade» do cristianismo é, na melhor das hipóteses, restrita aos crentes (e do sexo masculino, claro). Em segundo lugar, eu penso que os cristãos ortodoxos, e até a ICAR, têm interpretado o Novo Testamento de forma essencialmente correcta. A própria Inquisição é justificável a partir dos Evangelhos.

Os valores cristãos são contrários aos valores que são importantes para mim.

2)