quarta-feira, 26 de julho de 2006

Israel não é um Estado laico

O Estado israelita é, desde a sua fundação, confessional. A própria declaração de independência contém numerosas referências religiosas e estabelece Israel como um «Estado judeu». Infelizmente, uma fatia importante e muito influente da população judaica continua a encarar Israel como um Estado criado por razões religiosas e para finalidades religiosas, mesmo apesar da grande diversidade religiosa de Israel (pelo menos um em cada cinco israelitas são muçulmanos ou cristãos) e da secularização dos descendentes de judeus (dos quais metade serão não religiosos). Israel permanece assim a única democracia do mundo em que não existe casamento civil, e o único Estado do planeta que outorga a nacionalidade (um vínculo público e estatal) a quem se converta a uma religião (uma opção privada e espiritual). São ainda generalizadas, particularmente entre os judeus, as mutilações sexuais impostas a menores do sexo masculino sob pretextos religiosos, uma violação grave do direito da criança a preservar a integridade do seu corpo.


O domínio público israelita continua profundamente clericalizado: o casamento, o divórcio e o enterro são competências das comunidades religiosas (judaicas, cristãs ou muçulmanas), que têm os seus próprios tribunais para questões de família, nos quais aplicam as suas anacrónicas leis religiosas (sendo a chária aplicada à comunidade muçulmana, como é evidente). As comunidades reconhecidas pelo Estado são totalmente sustentadas com dinheiro público, embora com discriminação positiva a favor das congregações judaicas. Há escolas diferentes para cada comunidade religiosa, cada uma com a sua religião obrigatória, o que ajuda a manter a segregação social de grupos entendidos como monolíticos. Como se não bastasse, o Ministério do Interior mantém um registo da «nacionalidade» de cada cidadão, que na realidade é um registo da comunidade religiosa a que se pertence pelo nascimento, e os direitos civis são distintos conforme se seja, ou não, considerado judeu pelo rabinato ortodoxo. Está assim dificultado aos cidadãos israelitas o exercício daquela liberdade de consciência básica que já quase tomamos por garantida em Portugal, que consiste em poder renunciar de todo à religião e conduzir a sua vida ignorando os sacerdotes e os seus templos (para nada dizer da privacidade das opções em matéria religiosa). A igualdade entre cidadãos também não existe: o governo discrimina os cidadãos muçulmanos ou cristãos no emprego, na educação e no alojamento, só financia a construção de sinagogas ortodoxas (discriminando negativamente todas as outras confissões religiosas) e tem demolido mesquitas em zonas onde não existe guerra. A comunidade judaica ortodoxa é actualmente a mais beneficiada, tendo mesmo o poder de dizer que imigrantes podem ou não tornar-se cidadãos israelitas. Não admira portanto que a tensão entre laicos e clericais na sociedade israelita seja tão grande que 80% da população tema que descambe para a violência.

A ausência de casamento civil é especialmente problemática para os descendentes de judeus, pois apenas os casamentos efectuados pela corrente mais ortodoxa do judaísmo são reconhecidos. O sacramento religioso (e portanto o contrato público) é negado a quem queira casar com um não judeu, ou a quem não frequente as aulas de preparação para o casamento dadas pelos rabis ortodoxos (também profundamente homofóbicos). Também não existe divórcio civil: uma mulher casada pela lei judaica não se pode divorciar se o marido não quiser, e portanto milhares de mulheres ficam amarradas a casamentos que não desejam. Perante esta situação, não é de admirar que milhares de judeus secularizados optem por casar fora do país, nomeadamente em Chipre.

Nas discussões suscitadas pela guerra actual, argumenta-se frequentemente que Israel é um Estado mais democrático do que qualquer dos seus vizinhos, o que é inteiramente verdade. No entanto, as relações entre Estado e religião em Israel são mais parecidas com aquelas dos seus vizinhos muçulmanos do que com as outras que, felizmente, existem na Europa laicizada.

[Publicação simultânea Diário Ateísta/Esquerda Republicana.]

12 comentários :

Filipe Castro disse...

Nao sei se a televisao portuguesa da noticias a serio sobre o guerra no Libano. A BBC tem sido excepcional a mostrar o que a guerra, de facto, é. Enquato a CNN lambe escandalosamente as botas a Isreal. E eu estou a falar da CNN Europa. Imagino o que sera a CNN America, que nos dias melhores e o orgao oficial do Partido Republicano.

Filipe Castro disse...

Hoje voltaram a mostrar os soldados isrealitas a rezar ao lado dos tanques e eu lembrei-me do video delicioso que esta no Diaro de uns Ateus sobre as oracoes.

Depois de invadirem o Libano uma data de vezes (7?) nos ultimos 30 anos sem ter conseguido resolver minimamente o problema (com Deus do lado deles, bombas e oracoes quotidianas), pergunto-me se ninguem em israel desconfiara que Deus e um bocado duro de ouvidos... ou entao nao existe!

João Miguel Almeida disse...

A ausência de um Estado laico em Israel é de facto um obstáculo à democracia, como aliás pensa um dos meus melhores amigos que é judeu. Atenção, eu distingo entre Estado laico e Estado laicizador ou laicizante. O primeiro convive com uma sociedade onde existe a opção religiosa ou de não possuir qualquer fé. O segundo pretende excluir a religião da sociedade.
Só um reparo de pormenor: a circuncisão não é uma mutilação sexual. É praticada por razões médicas. Nos EUA a maior parte da população masculina é circuncisada por razões higiénicas. Segundo me contaram, recentemente esta prática foi elogiada na muito laica série «O Sexo e a Cidade». Não por razões religiosas ou higiénicas, mas por clara preferência sexual de uma personagem feminina.

Ricardo Alves disse...

Caro João Miguel Almeida,
1. Aquilo a que chamas «Estado laicizador ou laicizante» parece-me ateísmo de Estado.
2. A circuncisão pode evidentemente ser feita por razões médicas, mas não deixa por isso de ser uma mutilação.
3. Quanto às preferências das meninas, quem quiser que corte (!). Depois não se queixem se a menina seguinte não gostar (!). ;)

dorean paxorales disse...

Contaram-me de uma menina que gostava tanto que o precedente havia cedido ao seu desejo.

Anónimo disse...

m ponto muito interessante a abordar por quem se interessa pela religião a nível internacional. A verdade é que, quando a sociedade israelita se tornar inteiramente secularizada, poderá talvez perder parte da sua razão de existir... visto ter sido fundada com motivos religiosos, não só interna como externamente...
Jordão
Quarta-feira, 26 Julho, 2006 21:18:37

Filipe Castro disse...

Por acaso li um artigo - admito que a correr - sobre este assunto, que nao me interessa muito. Mas lembro-me que o autor explicava que nos EUA a pratica generalizada da circuncisao masculina datava do final do seculo XIX e se ligava directamente ao horror dos fundamentalistas cristaos pela masturbacao.

Acho que o Dr. Kellog - o dos cereais - ate escreveu um livro contra os excessos sexuais em geral, e a pratica da masturbacao em especial. Como se sabe, alem de fazer crescer cabelos na palma da mao dos americanos, enquanto em Portugal provoca a cegueira, a masturbacao é o caminho mais certo para o inferno.

Lembro aqui que para os fundamentalistas cristaos, excessos sexuais sao todas as praticas sexuais que nao conduzam à procriacao.

A circuncisao dos rapazes deve-se assim ao facto de a masturbacao ser grandemente simplificada pela existencia do prepucio - os meus amigos circuncisados do Texas explicaram-me que, por um lado, sem prepucio a glande se torna muito menos sensivel, e por outro lado, o acto da masturbacao sem prepucio requer um creme lubrificante, aumentando a logistica da operacao.

Portanto, lamento informar, mas tambem nos EUA a circuncisao e uma mutilacao sexual de origem religiosa.

Ricardo Alves disse...

Filipe,
isso é mesmo muito interessante!
Sempre pensei que a circuncisão ser tão generalizada nos EUA se devesse a um excessivo zelo higiénico, mas o que tu contas faz mais sentido...

Ricardo Alves disse...

Jordão,
a questão é mesmo que um Estado tem obrigações mais importantes do que perpetuar uma religião. Tem o dever, por exemplo, de dar a liberdade aos seus cidadãos de escolherem a religião que quiserem. Isto, no meu modo de ver...

Ricardo Alves disse...

Jordão,
Portugal sobreviveu quando renunciou a ser um Estado baseado na religião. E continua a sobreviver, há quase 100 anos.
Israel também pode sobreviver. Há outros valores: a liberdade; a igualdade; a prosperidade; a segurança; etc. Até poderia ser um exemplo naquela zona...

Anónimo disse...

Confirmo que, efectivamente, quem pretenda adquirir a nacionalidade israelita tem que dispôr não apenas dos vulgares documentos de identificação pessoal emitidos pelas entidades Estatais e dos documentos normalmente exigidos pelos serviços diplomáticos do Estado a cuja nacionalidade se candidata, mas também, de um documento designado por certificado de judaismo que é emitido, não pelo Estado de Israel, nem pelo seu corpo diplomático mas, pasme-se, pelo rabino local que, para tal, sugere a frequência de um curso de Judaismo com a duração de aproximadamente 6 meses.

Anónimo disse...

MUTILAÇÕES SEXUAIS MASCULINAS???
VOCÊ É LOUCO???
Isso do que vc está falando é o Brit Milá, ou seja, a circuncisão!!! Homens de diferentes crenças ou ateus estão começando a fazer isso pra evitarem doenças no futuro ligadas à isso cara!!! A circuncizão é uma questão não só religiosa para os judeus, mas como de saúde para todos! Não seja tão ignorante assim, pelo amor de D'us!