domingo, 26 de maio de 2013

Algumas notas sobre o "caso Martim"

Tomo este texto do Daniel Oliveira como base. Li muitas opiniões parecidas de pessoas de esquerda.

"Martim Neves, sem o saber (ou sabendo, é indiferente), atirou por terra tudo que Raquel Varela tivesse para dizer. Porque a historiadora não tinha razão? Porque o salário mínimo dá para viver? Nada disso. (...) O problema de Raquel Varela foi ter escolhido a pessoa errada para ilustrar o seu ponto de vista."
Portanto o problema não é a opinião: é mesmo a Raquel Varela. Reconheço que muitas das opiniões políticas da Raquel (que eu não conheço) são polémicas, mas não é preciso concordar com elas. Parece-me, porém, que o que leva muitas pessoas de esquerda a demarcarem-se da Raquel Varela é o terem medo de serem associados a essas opiniões polémicas. Nada disso, no entanto, se viu no momento da polémica, a questão ao Martim no Prós e Contras. A Raquel não foi agressiva e limitou-se a falar com ele.

Pelos vistos muita gente acha que o Martim não tem idade para responder às questões que lhe foram colocadas pela Raquel. Mantenho-me na minha: qualquer empresário tem que lhes saber responder. O Martim então, se calhar, não terá idade para ser empresário. Espanta-me que ninguém questione isto. Espanta-me que ninguém pergunte ao Martim com que capital começou ele o seu negócio. Espanta-me que toda a gente ache isto perfeitamente natural. E espanta-me (e dececiona-me) que se ache melhor exemplo para o país um menino filho de pais ricos que faz t-shirts que uma académica com trabalho reconhecido. Acresce que na blogosfera e nas redes sociais, sobre este assunto, o que se lê mais são comentários do tipo "David contra Golias", como "o jovem empreendedor deixou sem palavras a doutorada". Até "professora catedrática" já vi chamarem a uma bolseira de pós doutoramento. Tal atitude mesquinha revela um desprezo pela academia e pelo conhecimento que justifica bem como este povo teve um ministro chamado Relvas.

Já o Martim, de acordo com o mesmo texto do Daniel Oliveira, é "um miúdo empenhado, com genica, a querer viver da sua criatividade e do seu trabalho. Não vi um chico esperto, um arrivista, alguém que espezinha os outros para subir na vida. Vi alguém que quer fazer o que gosta e faz por isso. Nada sei sobre ele. Ninguém ali sabia. Logo, o que interessa é o que se viu: um miúdo articulado, despachado, esperto e empenhado." Extraordinário: o Daniel Oliveira não conhece o míudo, mas "viu" isto tudo num vídeo de dois ou três minutos. Teria sucesso a fazer entrevistas de emprego: é rápido a "ver" as pessoas.

Mantenho: não é natural um miúdo de dezasseis anos ser empresário. É normal querer vir a ser. É normal ter ambições e querer progredir na vida. Da minha parte aprecio isso desde que se comece de baixo. E um miúdo que aos dezasseis anos é empresário não começou por baixo.

Há quem refira como uma "virtude" o empreendedorismo de um rapaz que, apesar de não ter necessidade, prefere trabalhar a ficar a ver televisão ou jogar computador. Não concordo. Aos dezasseis anos há muita coisa ainda para aprender e descobrir. Parece-me desejável que se aprenda e descubra algumas dessas coisas mais básicas antes de se começar a trabalhar (principalmente como empresário), mesmo se a trabalhar se descobrem muitas outras coisas. Mas convém estar preparado para elas. Por muito talento que se tenha (e eu não nego o talento do Martim), esse talento será muito melhor desenvolvido com esse conhecimento. Ao elogiarmos a atitude de um rapaz que, por sua livre escolha, e sem precisar, aos dezasseis anos se tornou empresário, estamos a elogiar quem tem como principais, se não únicos valores, o sucesso pessoal, o individualismo e a ganância. Não serei eu a elogiar tal estilo de vida.

Há muitas outras coisas que um rapaz de dezasseis anos pode fazer para se sentir útil, a começar dentro da sua própria casa. Alguém perguntou ao Martim que tarefas domésticas ele realiza? Será que ele sabe cozinhar? Será que ao menos limpa e arruma o seu quarto? Queremos mesmo tomar como exemplo alguém de dezasseis anos que se tornou empresário com dinheiro da família e nunca sequer fez estas tarefas tão simples? Que mundo é o que queremos construir, afinal?

11 comentários :

Ricardo Alves disse...

Filipe,
parece-me que não entendes que a impressão que passa no vídeo que foi viral nas redes sociais é que a Raquel Varela acha que não se deve ser empresário antes de termos resolvido o problema dos trabalhadores da China e do Bangladesh, ou no mínimo antes de subirmos o salário mínimo em Porrtugal (ou até que *nunca* se deve ser empresário). Tu pareces concordar com a Raquel Varela quando afirmas que «qualquer empresário tem que lhes saber responder [a essas questões]». É quase o mesmo que afirmares que antes de se ser operário se tem que compreender o que é a mais-valia e a condição proletária, ou que antes de se ser camponês se tem que entender o minifúndio e o latifúndio (permite-me a redução ao absurdo). Quer a tua posição quer a da Raquel Varela têm essa fragilidade de base que é querer impedir outrem de fazer algo que provavelmente realiza essa pessoa e lhe dá dinheiro - e que não faz mal a ninguém - e de o quererem fazer porque acham que a pessoa em causa não entende consequências muito remotas do que faz.

Haveria outras coisas a dizer sobre o teu texto. Qualquer sociedade em que o sucesso pessoal não seja um valor, está condenada à estagnação e/ou ao carneirismo. Vais dizer-me que não tentas ter sucesso todos os dias? (E continuas a usar «individualismo» com sentido pejorativo, mas vou deixar passar essa). Quanto à «ganância», a verdade é que não tens bases para afirmar que esse é um factor nesta estória.

Concordo contigo que alguém lhe deveria ter perguntado onde conseguiu o capital para o negócio. Mas não foi essa a pergunta que a Raquel Varela fez, pois não?

Filipe Moura disse...

Ricardo, parece-me que não entendes que resolver os problemas dos trabalhadores na China e saber quais são os problemas dos trabalhadores das fábricas têxteis são duas coisas bem diferentes. Se uma pessoa defende que é necessária a segunda dessas premissas, como eu, não tem necessariamente de defender que é necessária a primeira (e não garanto que a Raquel Varela sequer a defenda). Parece-me que não entendes isto, e como tal grande parte do teu primeiro parágrafo não faz sentido.

Ainda assim, só deves estar a ler a direita e o Daniel Oliveira. A questão do Daniel Oliveira e da Raquel Varela são divergências antigas dentro do Bloco, e é disso que o Daniel se quer demarcar. Mas parece-me que não entendes que, mesmo em setores ligados ao PS, há muita gente que vê o que é essencial aqui. Um exemplo (há mais): http://quandooslobosuivam.blogs.sapo.pt/33293.html

Quanto ao teu segundo parágrafo: parece-me que não entendes que há uma grande diferença entre ter o sucesso pessoal como valor (eu tenho-o) e não se preocupar com os efeitos que o seu sucesso possam ter, ou que custo para a sociedade teve. Isto é uma forma de individualismo.

"E continuas a usar «individualismo» com sentido pejorativo, mas vou deixar passar essa."

Obrigado, Mestre. Não te queres queixar à PGR?

Maquiavel disse...

Lapidar, FM, lapidar!

Maquiavel disse...

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/natalia-trabalha-12-horas-por-dia-seis-dias-por-semana-mas-tem-que-pedir-ajuda-para-comer-1595560
Natália trabalha 12 horas por dia, seis dias por semana, mas tem que pedir ajuda para comer
....mas ao menos tem emprego, näo é? :shock:

Ricardo Alves disse...

Filipe,
tu, a Raquel Varela e os que a defendem não percebem que caíram na esparrela. O Martim não é o banqueiro Espírito Santo, o dono de supermercados Belmiro ou o evasor fiscal Soares dos Santos. É apenas um rapaz que montou um negócio unipessoal que lhe deve levar seis horas de trabalho por semana e render umas centenas de euros por mês. Atirar com a cassete dos salários da China ou com o salário mínimo à cabeça de um adolescente daqueles, ou moralizar como tu fazes neste post sobre o que deve ou não uma pessoa da idade dele estar a fazer, acaba por passar a imagem de uma esquerda dogmática que condena toda e qualquer iniciativa «empresarial» como se fosse obra do «demo». (Já agora: o termo «empresário» é excessivo e até ridículo quando aplicado ao Martim.)

Não concordo com o post desse blogue mencionas, mas concordo com alguns comentários que o criticam.

Quanto à segunda parte da tua resposta: não se preocupar com os efeitos que o nosso sucesso tenha nos outros não é individualismo, é egoísmo. Entendes a diferença?

Ricardo Alves disse...

Acho que o desemprego não lhe iria melhorar a situação, Maquiavel.

Maquiavel disse...

Tal como a dos operários cujos patröes violavam mulheres e filhas para lhes manterem os empregos?

Näo entendo como é que a poderia piorar, sinceramente.
É que pelos vistos o emprego é que näo lhe melhorou a situaçäo!

Ainda se dissesses "o filho de 28 anos é que devia ter vergonha na cara e ajudar a mäe", mas com essa do "é melhor comer merda que näo comer merda nenhuma" viro-te as costas.
E depois eu o Filipe, entre outros, é que não percebem que caíram na esparrela. 'tá bem...

Ricardo Alves disse...

Vira-me as costas à vontade. A verdade é que não propuseste nenhuma alternativa realista. Quando eu falei em equilibrar as relações trabalho/capital de uma forma realista - criminalizando os salários em atraso - responderam-me com as PME´s. E entendi que realmente não entendem o que se passa.

Maquiavel disse...

Ai fui eu que te respondi isso relativamente aos salários em atraso?
Muito me contas...

Ricardo Alves disse...

Não, relativamente aos salários em atraso até foste dos que entendeste o que estava em causa. Não entendo é como aches que é melhor ganhar dinheiro, mesmo que seja o salário mínimo, do que não ganhar nenhum.

Filipe Moura disse...

Ricardo, de facto não vale a pena discutir contigo enquanto argumentares com base no que julgas que as pessoas disseram (ou gostarias que tivessem dito), e não no que realmente disseram.

"relativamente aos salários em atraso até foste dos que entendeste o que estava em causa."

É extraordinário como (e os comentários a este post estão aqui para demonstrar), para ti, quem não concorda contigo necessariamente "não entendeu" alguma coisa. Apesar de tudo o João Vasco e os seus "erros" são bem mais divertidos. Acho que isso é falta de hóstias na vossa dieta anticlerical. Recomendo-vos uns ovos moles.