segunda-feira, 11 de julho de 2005

Os objectivos da Al-Qaida

O que pretende a Al-Qaida?
  1. Derrubar os governos árabes «seculares» do Médio Oriente (e, secundariamente, de outros países muçulmanos) e substituí-los por formas de governo mais de acordo com a sua concepção, muito extremista, do Islão.
  2. Restaurar o califado, o governo com autoridade sobre todos os muçulmanos, interrompido desde a queda do Império Otomano.
  3. No limite, estender o califado a todo o planeta.

Os jihadistas concluíram, correctamente, que os regimes do Médio Oriente (e Israel) dependem em maior ou menor grau dos EUA e da Europa, e colocaram portanto como objectivos estratégicos de curto prazo a retirada das tropas estado-unidenses da península arábica, particularmente da Arábia Saudita (o que aconteceu na sequência da guerra do Iraque) e o fim de Israel (o que parece estupidamente irrealista). O passo seguinte seria a substituição das ditaduras apoiadas no exército (Síria, Egipto) ou das monarquias (Jordânia, Arábia Saudita, Estados do Golfo) por regimes islamistas. O regime dos talibã no Afeganistão permanece o melhor exemplo do tipo de regime pretendido. Deve notar-se que as motivações apresentadas são inteiramente religiosas (ler a «World Islamic Front Statement - Jihad Against Jews and Crusaders» de 1998) e que não há qualquer componente socio-económica nas reivindicações destes grupos. A esquerda europeia deveria portanto opôr-se ferozmente à ideologia islamista, que constitui hoje a pior ameaça para as liberdades individuais, para os direitos das mulheres e mesmo para o progresso material nos países de população muçulmana.

Alguns ingénuos repetem que o objectivo dos jihadistas seria «destruir as nossas liberdades e o nosso modo de vida». Na realidade, os extremistas islâmicos não têm capacidade para tal. Quando muito, poderão servir como pretexto para os nossos governos limitarem as liberdades, quer através de regimes de excepção (conforme proposto na Itália) quer controlando as interacções privadas (conforme proposto no Reino Unido). A possibilidade de as sociedades europeias serem envenenadas por ódios inter-étnicos agrava-se também a cada atentado. Os combates pela liberdade individual face ao Estado e pela integração dos imigrantes são portanto imperativos.

No entanto, são os países árabes que constituem o objectivo principal das acções jihadistas. O objectivo táctico imediato, presumivelmente, é impressionar as massas muçulmanas com atentados espectaculares, fazendo-as aceitar a sua liderança. Deste ponto de vista, esta estratégia tem-se revelado um fracasso. O apoio às suas acções restringe-se a grupos que representam a direita mais extrema dos países muçulmanos. A estratégia jihadista, apesar da ajuda prestada pelos EUA com a invasão do Iraque (que criou as condições políticas e sociológicas para aumentar o recrutamento, e as condições militares para atacar directamente soldados «ocidentais»), está cada vez mais longe de levar a um avanço espectacular do fascismo islâmico.

O irrealismo dos objectivos continuará a alimentar a brutalidade dos métodos.

10 comentários :

Pedro Viana disse...

É excelente porque identifica claramente o que a Al Qaeda e organizações associadas pretendem: derrubar os regimes instalados no poder nos países islâmicos, em particular árabes, com ênfase na Arábia Saudita, onde existem as duas cidades mais santas do Islão. É excelente porque desmascara a manipulação daqueles (José Manuel Fernades no PUBLICO é um exemplo típico) que tentam convencer a opinião pública que um dos objectivos da Al Qaeda é destruir as sociedades ocidentais. Falso. E é falso porque tal é simplesmente impossível dada a diferença de meios económicos, tecnológicos e militares, já para não falar que tal nunca foi reenvidicado pela Al Qaeda. E qual é a razão da manipulação? Simples: a enorme perda de dinheiro que resultaria para as multinacionais ocidentais se o Ocidente deixasse de apoiar os regimes nos países islâmicos, retirando-lhes o seu sustentáculo económico, político e militar, como resultado duma opinião pública ocidental a clamar por isolacionismo.

O senão advém da opinião do Ricardo Alves de que a Al Qaeda não tem tido sucesso perante as opiniões públicas islâmicas; "O apoio às suas acções restringe-se a grupos que representam a direita mais extrema dos países muçulmanos." Tanta ilusão... basta olhar para as poucas eleições no mundo muçulmano (ex. Irão, Paquistão), e em particular árabe (ex. Hamas), e para estudos de opinião. para perceber que o fascismo islâmico e os seus líderes (ex. bin Laden, Zarqawi) consegue congregar o apoio quer duma fracção significativa da maioria pobre e marginalizada, quer daqueles que se sentem humilhados pela posição proeminente do Ocidente no mundo e a sua interferência nas sociedades islâmicas.

Ricardo Alves disse...

Teste.

Ricardo Alves disse...

Pedro,
o ponto é que o apoio que a extrema direita islâmica tem nos países de população muçulmana é insuficiente para aí tomarem o poder, e que não tem crescido com estas acções. É evidente que na maior parte desses países não há eleições e portanto não podemos concluir com firmeza qual a sua influência real. Mas é um facto que, nos países em que há eleições (Marrocos, Jordânia, Palestina, Turquia, Paquistão, Irão; diferentes graus de «liberdade eleitoral»), os grupos que manifestam simpatia pelo jihadismo quase não têm expressão.
Existem, no entanto, grupos da extrema direita islâmica que têm apoio popular na ordem dos 10%-20% e que partilham o essencial dos objectivos dos jihadistas, embora condenem (com maior ou menor sinceridade) os métodos. Estes grupos merecem um artigo à parte (estou a pensar no Hamas, que o Pedro referiu, e noutros «braços» da Irmandade Muçulmana).

Pedro Viana disse...

"Mas é um facto que, nos países em que há eleições (Marrocos, Jordânia, Palestina, Turquia, Paquistão, Irão; diferentes graus de «liberdade eleitoral»), os grupos que manifestam simpatia pelo jihadismo quase não têm expressão."

Em Marrocos e Jordânia os "grupos que manifestam simpatia pelo jihadismo" são proibidos de se apresentarem a eleições. Na Palestina o Hamas tem obtido grandes vitórias eleitorais. A Turquia é um caso à parte duma sociedade que em grande parte se considera laica, e onde o laicismo é política prioritária de Estado, para além dos turcos sempre se terem gostado de diferenciar dos árabes. No Paquistão há partidos "jihadistas" que têm concorrido a eleições, obtendo lugares no Parlamento e o controlo de certas provincías. O suporte real destes partidos é difícil de estimar dado que há fortes possibilidades de ter havido manipulação dos resultados eleitorais de modo a favorecer Musharraf. Finalmente, no Irão acabou de ganhar a Presidência alguém que apoia fortemente movimentos jihadistas como o Hamas e o Hezbollah.

E devemos nos lembrar do que aconteceu na Argélia. A FIS ganhou num contexto em que o aparente conflito Ocidente vs. Islão não existia. Se uma eleição semelhante (completamente aberta) tivesse lugar hoje no Egipto acho que a Irmandade Muçulmana teria muito mais chances de ter êxito do que há 5 ou 10 anos atrás.

Ricardo Alves disse...

Olhe,
agradeço-lhe os comentários, embora não concorde totalmente.
Por exemplo, na Argélia a FIS viria a ser maioritária no parlamento, mas não era maioritária no eleitorado. E no Egipto, o Pedro está a especular.
Mas é evidente que o apoio recebido por grupos como o Hamas é uma indicação da popularidade dos jihadistas.

Pedro Viana disse...

Ricardo, o meu ponto é que não há necessidade de nos tentarmos iludir quanto às intenções reais das pessoas quando colocadas em certas situações. O ser humano é dado a atitudes extremamente destruidoras quando se sente encurralado. Acho que é extremamente prejudicial tentar obscurecer isso de modo a tentar manter o optimismo. E, neste caso, em particular tentar defender as pessoas de confissão islâmica da acusação generalizada de extremismo. O que é preciso tornar claro é que eles (sejam 1%, 10%, ou 50%) não são extremistas porque o Islão favorece o extremismo, mas porque existem condições propícias (polítcas, económicas, sociais, militares) para que hoje muitas pessoas de confissão islâmica se sintam encurraldas, e assumam (uma parte delas) atitudes destrutivas. Já aconteceu antes milhares de vezes, por exemplo na Europa nos anos 30, com a eleição de governos fascistas. Os recentes sucessos do Partido Conservador nos EUA, em particular de Bush, são em grande parte também ditados por essa mistura de medo e pulsão destruidora daqueles que se sentem encurralados.

Não acho que seja uma atitude benéfica para a Esquerda tentar "dourar" a realidade, com isso evitando que as pessoas reflictam sobre as razões que moldam a realidade em que vivemos, e criem soluções para e ajam sobre os problemas existentes. A transformação verdadeira requer uma conscialização completa.

Ricardo Alves disse...

Pedro,
devo dizer que, embora todas as religiões tenham os seus extremistas, me parece claro que o Islão pode ser mais facilmente usado para justificar a violência política. Maomé conduziu exércitos, massacrou tribos, e as autoridades islâmicas foram, muitas vezes, simultaneamente religiosas e militares, de uma forma muito diferente do que se passou, por exemplo, com os Estados Pontifícios. E existem justificações religiosas para o bombismo suicida que não encontramos no cristianismo (a ICAR, por exemplo, condena o suicídio sem qualquer atenuante).
Portanto, não vale a pena a Esquerda andar a dizer que não há problema algum com o Islão, porque isso não é verdade.
Quanto aos problemas económicos e sociais, que em parte poderão motivar o «desespero» muçulmano, a verdade é que estão ausentes dos documentos da Al-Qaida. Se motivam ou não os terroristas, não o sei. Mas são principalmente da responsabilidade dos governos dos países árabes.

Pedro Viana disse...

As condições de difusão do Islão foram diferentes (mais militares) das do cristianismo em grande parte porque as sociedades onde essas religiões apareceram tinham condições e disposições diferentes para a conquista militar (palestina/Roma em declínio vs. tribos árabes). Aliás, essas mesmas condições fizeram com que a religião muçulmana adoptasse nas suas origens talvez uma atitude mais agressiva na evangelização do que a religião cristã, e a tradição numa religião é tão, ou mais, importante que os princípios de fé. Com isto quero dizer que se por um lado será talvez mais fácil justificar a violência política através da tradição islâmica relativamente à cristã, acho que o mesmo já não se passa com base numa interpretação restrita dos princípios da fé islâmica vs. os da fé cristã.

Quanto ao suícidio, este não é de todo o único método passível de ser utilizado para aterrorizar. Uma acção terrorista não é menos horrível (inclusivé nas suas consequências) por ter sido realizada por um agente suicída. Isso é um.... preconceito cristão.

"Portanto, não vale a pena a Esquerda andar a dizer que não há problema algum com o Islão, porque isso não é verdade."

Claro que há! Há problemas sempre que as pessoas seguem cegamente, sem reflectir, instrucções, sejam dadas por livros sagrados, padres, ideólogos, personagens carismáticas.

"Quanto aos problemas económicos e sociais, que em parte poderão motivar o «desespero» muçulmano, a verdade é que estão ausentes dos documentos da Al-Qaida. Se motivam ou não os terroristas, não o sei. Mas são principalmente da responsabilidade dos governos dos países árabes."

As razões de um acontecimento não são necessariamente aquelas que os próprios envolvidos julgam, e mesmos que eles estejam conscientes das verdadeiras razões podem não achar que é do seu interesse divulgarem-nas, procurando antes apresentar outras razões. A pobreza pode não motivar directamente um terrorista, no sentido de "o meu atentado é contra a pobreza", mas se ele não fosse pobre, e estivesse bem integrado economicamente e socialmente, seria talvez menos provável que estivesse disposto a deitar (literalmente) a sua vida fora. Note-se que o socialmente inclui o sentido de pretença à comunidade onde vive, simplesmente o sentir-se bem nas suas relações com os que o rodeiam.

As condições sócio-económicas nos países árabes são directamente da responsabilidade dos governos árabes, e é aliás por isso que o primeiro objectivo da Al Qaeda é derrubar esses regimes. Agora, indirectamente o Ocidente também tem imensas responsabilidades nessas condições, a começar pelo sustentáculo político, económico, e militar desses regimes, e a acabar no sentido de humilhação árabe decorrente da enorme injustiça que corresponde à atitude do Ocidente para com Israel vs. Palestina. Sem o sustentáculo ocidental é muito mais difícil a mudança de regime nos países árabes, e a Al Qaeda sabe disso, e é por isso que quer um Ocidente isolacionista, e daí a razão principal dos atentados.

Claro, que cada vez mais deixa de se poder ignorar a situação das minorias islâmicas nos países ocidentais. E aqui a "culpa" do seu sentido de exclusão e humilhação é apenas dos governos ocidentais. Este terrorismo "endógeno" é ainda mais nihilista que o da Al Qaeda, e a longo prazo bem mais perigoso para a estabilidade interna das sociedades ocidentais.

Ricardo Alves disse...

Pedro,
estou a gostar do debate. Note que acabo de pôr mais um artigo neste blogue. Passo a comentar algumas divergências que temos.
1) «As condições sócio-económicas nos países árabes são directamente da responsabilidade dos governos árabes, e é aliás por isso que o primeiro objectivo da Al Qaeda é derrubar esses regimes.»
Não. Repito: a Al-Qaida não apresenta qualquer justificação económico-social para as suas acções. Apresenta, isso sim, justificações teológicas. Considera esses governos «apóstatas» e cobardes face ao «Ocidente». É evidente que a Europa e os EUA têm responsabilidades na situação do Médio Oriente, mas as desigualdades locais devem-se mais à corrupção dos governos árabes.
2) Os bombistas de Londres estavam bem integrados socialmente, ao que tudo indica. As suas motivações, por isso, dificilmente seriam socio-económicas. Terão sido político-religiosas.
3) «será talvez mais fácil justificar a violência política através da tradição islâmica relativamente à cristã, (...) o mesmo já não se passa com base numa interpretação restrita dos princípios da fé islâmica vs. os da fé cristã»
Pois. Mas não se pode separar a «fé» da sua herança histórica.

Pedro Viana disse...

Um último comentário antes de passar ao seu novo post. Quando eu falo em condições sociais, implicitamente entra a questão religiosa. O facto de a Al Qaeda considerar os dirigentes sauditas (o que vou dizer também pode ser genericamente aplicado aos países árabes, mas não se deve esquecer que a Arábia Saudita é o ponto fulcral, apesar de cada vez menos) apóstatas resulta em grande parte das condições sociais na Arábia Saudita actual serem de tal modo que faz com que os membros sauditas, e genericamente árabes, da Al Qaeda não se sintam como pertencentes a essa sociedade. O sentimento de exclusão é um dos sentimentos mais negativos que uma sociedade pode provocar num indivíduo. Esse sentimento pode ou não ser justificado, ou resolúvel, esse não é o ponto. O facto é que eles sentem que a sua sociedade os exclui, devido à sua radicalidade, e acham que (1) tal se deve à influência degeneradora da família real saudita com o seu luxo ostensioso e a sua permissão da influência ocidental, que acham perniciosa, no país, e que portanto (2) a família real saudita tem que ser derrubada e a sociedade saudita passar por uma "cura espiritual". Quanto à questão económica, realmente a Al Qaeda nunca a mencionou, exactamente porque os seus membros são em grande parte ascetas, para os quais a riqueza não é para distribuir, mas sim para destruir. Mas é impossível separar completamente as condições económicas das sociais: a exclusão económica gera sentimentos de exclusão social. Finalmente, quanto aos bombistas de Londres, se cometeram os atentados então por definição não estavam bem integrados socialmente. Quem o está não ataca a sociedade em que vive, pois reconhece a sociedade como parte de sua identidade.